Anorexia alcoólica: condição une excesso de álcool e restrição alimentar
A busca e a idealização do corpo magro e perfeito, associada ao consumo excessivo de álcool, pode levar a um transtorno alimentar ainda não muito divulgado, mas extremamente perigoso para a saúde e que atinge principalmente mulheres mais jovens: a anorexia alcoólica.
O problema tem entre suas características a redução da ingestão de alimentos e a substituição deles por bebidas alcoólicas (qualquer uma delas), com o objetivo de diminuir medidas do corpo, sem precisar parar de beber.
O transtorno ainda não consta como doença no DSM-5 (Manual Diagnóstico de Transtornos Mentais) nem CID (Classificação Internacional de Doenças), ambos referência internacional para diagnóstico e manejo dos casos. Por isso, a anorexia alcoólica não possui critérios bem estabelecidos, o que dificulta a sua identificação e tratamento.
Além disso, por ser um problema relativamente raro (já que se estima que a anorexia nervosa atinja entre 0,5% e 1% das mulheres e a anorexia alcoólica é um desdobramento da anorexia nervosa), ela ainda é pouco estudada.
"O termo drunkorexia é bem recente, surgiu nos EUA. Logo que criaram essa terminologia, tivemos um 'boom' e todo mundo quis saber do que se tratava. Esse tema tem sido discutido mais frequentemente de uns dez anos para cá", comenta Silvia Brasiliano, psicóloga e coordenadora do Promud (Programa da Mulher Dependente Química) do IPq-USP (Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP). O programa completou 25 anos e já atendeu mais de mil mulheres com todo tipo de dependência química.
Como acontece?
Cerca de 30% das mulheres com diagnóstico de alcoolismo têm transtornos alimentares associados. Outras 20% terão uma patologia subclínica, com alimentação desordenada, alguma compulsão, métodos de compensação alimentar inadequados que não chegam a ser classificados como doenças, mas têm sintomas típicos.
Como a anorexia alcoólica é um problema muito novo, a ciência ainda não sabe afirmar o que aparece primeiro: o transtorno alimentar (a anorexia) ou o alcoolismo. Segundo Brasiliano, quando a mulher chega para tratamento, os dois transtornos estão presentes.
Essa paciente tem os dois diagnósticos ao mesmo tempo: o de anorexia e o de beber problemático e/ou dependência alcoólica. São mulheres que bebem excessivamente, mas querem se manter muito magras. Silvia Brasiliano, psicóloga e coordenadora do Promud
A identificação do quadro é bastante complexa e é diferente das compensações alimentares mais comuns, que ocorrem esporadicamente, e não chegam a cumprir critérios diagnósticos para definir um quadro clínico.
Por exemplo: mulheres que bebem muito num dia e fazem jejum alimentar no outro porque não querem engordar e acabam ingerindo só folhas para compensar a bebedeira.
"Não é isso que caracteriza a anorexia alcoólica, essa compensação que ocorre de um dia por outro é comum entre as jovens. O quadro patológico acontece quando a mulher altera absolutamente a sua alimentação com dietas super-restritivas ou faz exercícios físicos excessivamente [mais de seis horas por dia] para conseguir se manter magra e poder continuar bebendo, sem ganhar peso com a bebida", explicou a especialista.
Nesses casos, as pacientes têm pesos muito baixos —característico de pessoas anoréxicas— e se "alimentam" de álcool, porque frequentemente têm uma alimentação muito fraca ou fazem exercícios físicos excessivamente para não engordar.
E a matemática pode ser bem complexa: o cálculo calórico do que elas podem consumir por dia é feito com base no que elas vão poder beber, sem pensar em comer. Em geral, conta Brasiliano, as pacientes fazem jejuns com refeições baseadas em poucas folhas de verduras e alimentos crus sem tempero.
Essas jovens costumam chegar para tratamento com quadros muito graves porque estão absolutamente desnutridas, embora não se sintam assim. Silvia Brasiliano, psicóloga e coordenadora do Promud
Isso porque, apesar de o álcool ser uma bebida calórica, as calorias são chamadas de "vazias" porque não têm poder nutritivo e não se traduzem em nada de bom para o organismo além do acúmulo de gordura e água. "A pessoa não vai se nutrir bebendo, mas a caloria do álcool vai dar a sensação de estômago cheio", explica a especialista.
Mas se o álcool tem muitas calorias e acumula gordura, a pessoa não vai engordar se beber?
"Não engorda porque, por exemplo, a paciente faz umas contas complicadíssimas de quantas calorias ela precisa ingerir naquele dia para poder beber sem engordar. E essa conta é feita com base em dietas muito restritas com poucas calorias [uma alimentação balanceada para um adulto envolve uma dieta, em média, de 2.000 calorias por dia]. Uma paciente que tive, em vez de comer, ingeria 800 calorias de álcool", disse.
Essa dieta extremada, explica Brasiliano, associada com a distorção de peso e imagem, é um dos critérios clássicos para diagnóstico da anorexia, que inclui um peso muito baixo para o tamanho da pessoa; além do fato de ela não se julgar magra.
Quando a mulher junta a isso o desejo intenso de beber —a ponto de ficar embriagada— com uma dificuldade alimentar suficiente para que ela não engorde nada, chegamos ao quadro da anorexia alcoólica.
De forma geral, essa paciente recebe o diagnóstico somente após ter um problema clínico grave —normalmente desnutrição ou hipoglicemia graves e uma infecção que não se curava. O problema se agrava, diz a psicóloga, porque existe um reforço social em torno do corpo magro e perfeito.
O tratamento é multiprofissional, de longo prazo e complexo. Pode incluir o uso de medicamentos, além da psicoterapia e acompanhamento nutricional que deve ser feito com profissional especializada em transtornos alimentares.
"É muito difícil fazer a aderência dessa mulher ao tratamento. Porque muitas vezes ela não tem vontade de parar de beber e não quer engordar. Ela só quer parar de ter problemas e se manter magra", concluiu.
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