Há 20 anos, nascer com AME era sentença de morte; veja avanços e desafios
365, 364, 363, 362... A contagem dos dias restantes de vida era quase inevitável após o diagnóstico de AME (atrofia muscular espinhal). E em meio à regressiva, a dúvida se ela acabaria naquela semana ou no dia seguinte.
"Cada dia era menos um dia e mais uma vitória", lembra Suhellen Oliveira, mãe de Lorenzo, 11, e Levi, 3, ambos com a doença. Essa angústia foi mais intensa quando o primogênito foi diagnosticado, pois não havia tratamento disponível no Brasil na época.
O sentimento e o comportamento se explicam: a AME é uma doença rara, genética, degenerativa e sem cura que afeta os neurônios motores. A prevalência é de um a cada 10 mil nascidos vivos.
Embora tenha sido identificada no final do século 19, a maioria das descobertas sobre a condição são recentes. Só em 2016 foram apresentados os primeiros medicamentos para aliviar a progressão e os sintomas da doença.
Quando Lorenzo nasceu, não havia muita informação sobre AME e o prognóstico era dos piores: expectativa de um ano de vida e nada a se fazer.
História semelhante viveu Aline Giuliani, mãe de Íris, hoje com 19 anos. A menina foi diagnosticada com AME quando tinha 1 ano e oito meses após apresentar sinais como atraso motor e repetidos problemas respiratórios. "Cada vez que ela adoecia, perdia algo mais da parte motora", conta.
Naquela época, a falta de conhecimento sobre a doença também impactou no diagnóstico e tratamento. Diferentes especialidades foram consultadas e muitos exames sem relação com AME foram feitos. Nada.
Uma médica falou que a Íris não ia alcançar os 3 anos. Começamos a contar a partir daí. Aline Giuliani, mãe de Íris
Aline diz que o modo "cruel" como foi tratada deu energia para se informar mais sobre a condição da filha e fazer de tudo para ela se desenvolver. Houve muito investimento em fisioterapia, que ajudou a menina a recuperar os movimentos.
"Lá atrás, tinha muita coisa que podia ser feita, mas a gente encontrava poucos profissionais dispostos e muitos que só iam ver um paciente com AME na vida. Os profissionais de referência hoje são os que olharam para esses pacientes no passado", comenta.
Novas perspectivas, novos desafios
O primeiro medicamento para AME disponibilizado pelo SUS foi o Spinraza, em 2019. Antes disso, as famílias tentavam importar o medicamento por meio de vaquinhas online ou acionando a Justiça para que o sistema público arcasse com os custos.
No começo do ano passado, o Risdiplam foi incorporado ao SUS e, no fim do ano, chegou o Zolgensma —para este último, a expectativa é estar disponível até junho deste ano. Ele também é o mais caro de todos: cerca de R$ 6 milhões.
Mas a incorporação não significa ter acesso. Aline conta que, em algumas cidades do país, o medicamento não é entregue, o que gera um novo desafio para as famílias. São avanços ainda com entraves.
Suhellen descobriu que o caçula tem AME quando ainda estava grávida, por meio de um exame que analisa o líquido amniótico. Apesar do impacto da notícia e do sentimento de culpa, com a saúde mental abalada, ela estava mais preparada e tomou providências.
Com oito meses de gestação, acionou a Justiça para obter uma terapia gênica, com a esperança de que o filho iniciasse o tratamento ao nascer. Mas o processo se arrastou e o medicamento foi liberado quando Levi tinha 1 ano e 3 meses. Antes, com 14 dias de vida, o menino ingressou em um estudo clínico que testava um medicamento.
Ter nascido em cenário mais próspero permitiu que Levi se desenvolvesse mais rápido do que o irmão. Ele se movimenta mais, come pela boca e respira sozinho. "Mas não seria assim sem tratamento, ele também apresentou fraqueza muscular", pontua a mãe.
Já Lorenzo, que começou o tratamento com medicamento específico aos 5 anos, tem uma enfermeira 24 horas por dia com ele para seus cuidados, se alimenta por sonda e precisa de ventilador mecânico para respirar. Os dois meninos precisam de acompanhamento com fisioterapia, terapia ocupacional, psicologia e fonoaudiologia.
União em prol da AME
Há mais de uma década, sem muita informação nem tratamento, as famílias buscavam se amparar umas nas outras como possível. Os contatos se limitavam às redes sociais da época, como MSN, Orkut e um grupo de e-mail em que respostas demoravam uma semana.
Em Recife, Suhellen encontrou acolhimento mútuo quando Lorenzo ficou seis meses na UTI. "Comecei a acolher outras mães, que não eram de AME, e quando fui para casa, comecei a me engajar para encontrar outras famílias de AME", conta.
Ativamente, ela entrava em hospitais e perguntava quem tinha o diagnóstico da doença rara. Em dado momento, ela se conectou com a Donem (Associação de Doenças Neuromusculares), que, apesar de ter cinco famílias envolvidas, não tinha uma atuação constante.
Suhellen se mobilizou, vestiu a camisa —literalmente— da instituição e bateu na porta de hospitais em busca de famílias em vulnerabilidade, agora com mais respaldo. Ali, ela reconheceu sua missão e hoje é presidente da Donem.
Ao participar de congressos no Brasil e nos EUA, encontros de famílias e debates sobre políticas públicas, ela conheceu pessoalmente as mães com quem só falava pela internet, incluindo Aline.
"Encontrei muita informação nesse grupo", lembra Aline, que é fundadora do Instituto Viva Íris. Em 2019, as duas se uniram a outras três mães que estão à frente de ONGs em prol da AME para formar o Universo Coletivo AME. Além de informar, acolher e conscientizar, o objetivo é discutir e construir políticas públicas para os pacientes e suas famílias.
O primeiro empenho da entidade foi pela incorporação de medicamentos no SUS. Com a chegada dos remédios ao Brasil, o foco agora é na triagem neonatal, para que a doença comece a ser rastreada o mais breve possível no teste do pezinho. "Não adianta ter tratamento se não tem diagnóstico", diz Aline.
Em 2021, a doença foi incluída na ampliação do teste do pezinho, mas, de forma escalonada, ficou na quinta e última etapa. A coalizão pressiona para acelerar a cobertura da AME, a fim de que seja posta em etapas anteriores.
A gente luta pelos filhos do amanhã, para ver um futuro sem AME, em que a criança nasce, é diagnosticada, toma medicamento e tem qualidade de vida, que não precisa estar acamada. Aline Giuliani, fundadora do Instituto Viva Íris
Quando começaram a discutir o assunto junto ao governo federal, viram os percalços: programa de triagem neonatal quase parado, falta de conhecimento, ausência de prazos para discussão.
O que a gente faz hoje não é pelos nossos filhos, é para as gerações futuras, é um legado que a gente vai deixar para os próximos caminharem. Suhellen Oliveira, presidente da Donem
Aline destaca a evolução ao longo do tempo, como três terapias de alta tecnologia disponíveis no SUS e a maior quantidade de informações para as famílias —e a rapidez com que chegam.
Mas ainda há muito o que ser feito. "O advocacy tinha de ser de todo mundo, todo cidadão tinha de entender que pode opinar na Conitec, se informar e cobrar mais", comenta. "Hoje, tem pessoas com AME com 20 e tantos anos, o que antes não tinha, e a gente não pode deixar esses pacientes para trás", reforça.
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