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Medo de fantasmas: quando a aversão é considerada fobia? Dá para tratar?

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Do VivaBem, em São Paulo

22/05/2023 04h00

Adolfo* nunca conseguiu dormir sozinho. Quando terminou a faculdade, o irmão com quem dividia quarto se casou e ele demorou menos de um ano para começar um relacionamento e se casar também. Nesse meio tempo, tentou dormir com os pais, que não aceitaram a ideia.

Andrea* compartilha da mesma sensação: após o pai morrer e a mãe mudar de cidade, não conseguia viver sozinha no apartamento em que morava com eles desde a adolescência. Passou a vagar à noite pelo bairro e até entrar em uma balada para não ficar em casa sozinha.

Adolfo e Andrea têm espectrofobia, ou fobia do sobrenatural. De maneira simples, ao deitarem sozinhos no escuro, temem que espíritos e fantasmas apareçam. Ruídos estranhos e sensações desconhecidas no ambiente trazem o medo necessário para não pregarem os olhos.

Esse ciclo recomeça toda noite, explica o neurologista Ricardo de Oliveira Souza, mestre pela UFF (Universidade Federal Fluminense) e que em 2018 publicou um compilado de casos sobre o tema no periódico Frontiers in Psychiatry —os relatos de Andrea a Adolfo integram a coletânea.

Souza notou os primeiros casos em seu consultório, há mais de 25 anos. Um deles era João*, de 41 anos. Ele tinha aversão a filmes de terror desde a infância e dormia com os pais se visse ou ouvisse alguma história parecida. Quando se tornou pai, não conseguia pegar no sono caso a esposa dormisse com o filho. O jeito era encontrar alguma desculpa para trazê-la de volta ao quarto.

Essa história atiçou o meu radar, e eu entrei em detalhes sobre como era o medo. Eu vi que o medo do sobrenatural se enquadrava nos critérios de uma fobia simples. Ricardo de Oliveira Souza, neurologista

João, que também era paciente com quadro depressivo, começou o tratamento para o transtorno e, conforme melhorava dos sintomas, percebeu também que o medo de fantasmas e de assistir a filmes de terror desapareceu.

As fobias simples, ou específicas, citadas por Souza, ocorrem quando há aversão a algo definido —é o caso do medo de altura, de objetos pontiagudos ou de aranhas.

A pessoa não precisa temer aquilo que já viu ou viveu: ela pode ter aversão a animais que nunca encarou, experiências que não são frequentes.

Não é necessário elemento visual, ou seja, ela tem reações exacerbadas de medo apenas ao imaginar o objeto de sua fobia. Daí o encaixe da espectrofobia, já que muitas pessoas que relatam tê-la nem sequer viveram uma experiência sobrenatural.

O medo é uma emoção que normalmente é acompanhada de uma reação de evitação do estímulo que o provoca. É uma emoção que te protege e tem uma base cerebral muito bem conhecida. Mas, em algumas pessoas, esse circuito está hiperativo, funcionando demais, e aí passa a ser mal adaptativo. Isso configura uma fobia. Ricardo de Oliveira Souza, neurologista

Entenda a espectrofobia

O que é? Essa fobia é definida pelo medo do sobrenatural (espíritos ou fantasmas). Ela não tem status oficial de doença, por isso não há estatísticas sobre sua frequência no mundo ou até em qual fase da vida é mais comum —relatos indicam que ela geralmente começa na infância ou na adolescência.

Qualquer medo de fantasmas é fobia? Não. Para algumas pessoas, as aflições existem, mas não prejudicam em nada a vida e não precisam de tratamento.

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Aflições ao sobrenatural são comuns na infância, mas algumas pessoas podem ter reações exacerbadas de medo para sempre. Isso limita a qualidade de vida
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O medo se torna tão intenso, que ele passa a controlar a vida daquela pessoa. Quando a gente começa a notar prejuízos na vida dela e, mesmo com isso, ela não consegue controlar aquele medo, a gente já tá na esfera da patologia. Daniel Martins de Barros, psiquiatra do Instituto de Psiquiatria do HC-USP (Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo)

Como se expressa? Em muitos casos, a pessoa entende que esse é um medo irracional: nunca teve visões ou ouviu fantasmas, nem acredita que esses ou outros seres sobrenaturais existam. É comum que a pessoa tenha outras fobias ao mesmo tempo.

O que piora? O medo aumenta quando a pessoa é exposta a algum estímulo (como assistir a filmes de terror ou ouvir alguma história com gatilhos de medo). Esse temor reduz conforme os dias passam, até que ela volta aos níveis normais.

Quais as causas? As causas da espectrofobia são desconhecidas. Ela pode começar com algum medo da infância, após assistir a cenas em filmes de terror que causaram muita aversão e insegurança, por exemplo.

O diagnóstico é difícil? O diagnóstico em si é simples, analisando as queixas do paciente e os impactos disso na sua qualidade de vida. Mas a vergonha em compartilhar o problema costuma ser uma barreira para buscar ajuda. A própria pessoa pode desvalidar esses medos, acreditar que eles são "bobos" ou infantis.

Como tratar? O tratamento é geralmente feito com ansiolíticos e terapia —em especial a terapia cognitivo comportamental.

Os sintomas podem desaparecer por completo ou diminuir de intensidade e deixam de incomodar a pessoa. Ela até tem a ideia, mas aquilo não incomoda mais. É como se ficasse emocionalmente frio ao estímulo. Mario Eduardo Costa Pereira, psiquiatra e professor da Unicamp

Insegurança de ficar só

Nos relatos de caso compilados pelo neurologista Ricardo de Oliveira Souza, há o consenso de que o medo se intensifica durante a noite.

Adolfo, do início da reportagem, se separou da esposa e buscou tratamento aos 54 anos. Admitiu que nunca a amou de verdade e pensou se seria "ousado" o suficiente para viver sozinho ao se divorciar.

Ele é advogado e tem uma boa carreira, mas recusava viagens a trabalho pelo medo de ficar só nos quartos de hotel. Não conseguia dormir e no dia seguinte o seu rendimento era ruim.

Trabalhar além do expediente também era pouco provável, já que o escritório ficava vazio e ele tinha receio de ouvir ruídos estranhos, além da aflição de ver algum espírito. Adolfo não teve sucesso no tratamento com os remédios devido aos intensos efeitos colaterais e não fez terapia por falta de tempo.

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Intervenções para controlar o medo costumam ser eficazes. A maior dificuldade é o acesso ao tratamento, já que o medo de fantasmas é tido como algo "bobo"
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Andrea, por sua vez, apresentou melhora. Em duas semanas de tratamento medicamentoso e terapia, ela se sentiu segura para dormir no seu quarto, contanto que a mãe ficasse em casa. Após três meses ela concordou em morar sozinha. Andrea estava em acompanhamento há três anos quando o estudo foi publicado, sem perda de eficácia das intervenções.

O médico também pediu que uma criança escrevesse sobre os seus medos —ela superou as aflições na puberdade sem necessidade de tratamento.

"Meus medos são sobre coisas sobrenaturais, mesmo não acreditando nelas. É como se as fantasias da minha mente me fizessem imaginar coisas que nunca vi. As portas me dão medo, independentemente de estarem fechadas ou abertas, porque sinto como se algo estivesse prestes a atravessá-las e me perseguir", diz o início do relato.

Uma noite estava chovendo e meus pais estavam trabalhando. Entrei em pânico e liguei para minha mãe porque fui dominada pela sensação de que um ser assustador estava prestes a aparecer diante dos meus olhos e se apoderar de mim. Pela mesma razão, não me sento na cama com os pés pendurados ou apoiados no chão, porque não posso deixar de esperar que mãos debaixo da cama me segurem pelos calcanhares e me arrastem para baixo. Esses medos nunca vêm se eu não estiver sozinha. Relato de uma criança de 11 anos que tem espectrofobia

Como isso prejudica a vida?

Em primeiro lugar, os efeitos são no rendimento. Como demora a pegar no sono ou nem consegue dormir, a pessoa vai ter todos os problemas de uma noite mal dormida:

  • Dificuldades cognitivas: falta de atenção e de concentração;
  • Dificuldades para aprender coisas novas;
  • Maior risco de acidentes;
  • Vontade de comer besteiras.

Se for frequente, a falta de sono causa problemas maiores —incluindo insônia, a dificuldade crônica de dormir, e maior risco a doenças cardiovasculares. Isso reflete negativamente não só na saúde, mas nas vidas sociais e profissionais.

Os exemplos dos relatos mostram isso: se muito intensa, a espectrofobia limita oportunidades e vivências. A boa notícia é que aqueles pacientes que buscam ajuda costumam responder bem ao tratamento.

*Nomes fictícios com base nos relatos reportados no estudo de caso publicado no periódico Frontiers in Psychiatry.