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Ele dá aula sobre esquizofrenia: 'Sem soluções mágicas, mas há esperança'

Jorge Cândido de Assis, 59, foi diagnosticado com esquizofrenia aos 24 anos - Arquivo pessoal
Jorge Cândido de Assis, 59, foi diagnosticado com esquizofrenia aos 24 anos Imagem: Arquivo pessoal

Do VivaBem, em São Paulo

26/05/2023 04h00

Jorge Cândido de Assis esperava o metrô chegar, sozinho, numa manhã de domingo, quando ouviu uma voz perturbadora ao pé do ouvido: "Por que você não se mata?". Três dias depois, Jorge acordou em um hospital, sem a perna direita.

Foi quando descobriu que havia perdido o membro ao se jogar na frente de um vagão, na estação Liberdade, em São Paulo. Tinha 21 anos na época. Aquela foi sua primeira crise ocasionada pela esquizofrenia, transtorno mental grave que causa dificuldades para distinguir o que é real do que não é, e afeta 1,6 milhão de pessoas no Brasil, de acordo com o Ministério da Saúde.

Apesar daquela crise, Jorge só foi diagnosticado aos 24 anos, depois de sofrer o segundo surto psicótico, ocasião em que teve mania de perseguição —ideias delirantes o levaram a pensar que estava sendo observado e seguido pelas pessoas. Ele ficou internado por cerca de um mês.

"Na primeira crise, a doença foi camuflada, porque o quadro foi entendido pelos médicos como uma tentativa de suicídio, mas na segunda eu saí do hospital com o laudo médico em mãos", diz o ex-aluno de filosofia da USP, que hoje tem 59 anos.

Jorge atualmente é professor convidado do curso de medicina da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), onde é responsável por uma aula sobre o papel dos estigmas nos transtornos mentais. "Quando você tem esquizofrenia, é como se não existisse socialmente, porque as pessoas se afastam", conta.

Desde 2012, ele fala sobre sua experiência com a doença para os estudantes do terceiro ano, a convite do professor Rodrigo Bressan, psiquiatra e coordenador do Proesq (Programa de Esquizofrenia) da Unifesp. Bressan diz que, na época, a ideia de levar Jorge às aulas surgiu após perceber que muitos alunos ainda reproduziam estereótipos sobre o transtorno, associando-o meramente às alucinações e delírios.

Esses são os principais sintomas da esquizofrenia e, sem tratamento, a doença pode evoluir e se tornar incapacitante para o indivíduo, afetando sua vida pessoal, familiar e profissional. Mas a vida de uma pessoa com a condição não se resume às crises, ressalta o médico.

"As crises causadas pela esquizofrenia são chamadas de episódios psicóticos e fazem parte da fase aguda do transtorno. Os sintomas existem, mas, com o tratamento adequado, não ocorrem o tempo inteiro no curso da doença", explica Bressan, que também é presidente do Instituto Ame Sua Mente.

Dependendo do caso, um surto pode durar desde um dia até mais de um mês. Jorge afirma ter tido quatro crises ao longo da vida —a mais longa durou cerca de um mês. "Levei três anos para voltar a funcionar como era antes da crise", conta. Com o tratamento, que envolve medicamentos e sessões de psicanálise, além de sua rede de apoio, ele diz que está há uma década sem ter nenhum episódio psicótico.

A esquizofrenia é uma parte inevitável da minha vida, mas não é a única. Eu levei de 1984 até 2012 para entender isso. É grave, é difícil, mas dá para ter esperança, uma esperança realista. Não quero dizer pras pessoas 'você é um ferrado, vai ficar assim pra sempre', porque não é verdade. Também não quero dizer que é fácil ou que existe uma solução mágica de cura para a doença. Mas existem remédios e terapias que possibilitam seguir com a vida. Jorge Cândido de Assis.

jorge - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Jorge é professor convidado do curso de medicina da Unifesp, onde é responsável por uma aula sobre o papel dos estigmas nos transtornos mentais
Imagem: Arquivo pessoal

Livro sobre esquizofrenia

A participação de Jorge nas aulas da Unifesp surtiu efeito na percepção dos alunos sobre a esquizofrenia. Bressan percebeu isso depois de dividir as turmas em dois grupos: um contava com a presença de Jorge na aula sobre psicoses, enquanto outro não.

"Depois, a gente fez um 'questionário do estigma', com perguntas sobre o transtorno, e vimos que a presença do Jorge teve um impacto positivo, diminuindo o estigma, porque aí os alunos baixavam a bola e paravam para ouvir alguém que tem a doença", conta o psiquiatra.

Eles se conheceram em 2003, quando Jorge frequentava um grupo de apoio para pacientes com esquizofrenia que era coordenado pelo psiquiatra, na Unifesp.

Em 2008, o médico convidou Jorge para que escrevessem juntos um livro sobre a doença, ideia que resultou no lançamento de "Entre a Razão e a Ilusão, Desmistificando a Esquizofrenia" (GRUA), naquele mesmo ano. O livro teve sua 3ª edição publicada no início deste mês no Brasil e ganhou uma versão em inglês. A obra também é assinada pela terapeuta ocupacional Cecília Cruz Villares.

Segundo os autores, a iniciativa é uma tentativa de transmitir conceitos científicos em linguagem acessível e apresentar perspectivas de superação às pessoas afetadas pela doença.

A contracapa foi escrita pelo médico Drauzio Varella, que define a obra como "uma leitura obrigatória" e "o fruto de 18 meses de diálogo entre uma pessoa que vive com a esquizofrenia, uma terapeuta ocupacional e de família e um psiquiatra e pesquisador, em um ambiente muito frutífero de uma universidade e de uma associação na área de saúde mental".

O livro apresenta as histórias de três personagens —Gabriel, Francisco e Francisca— que têm diferentes experiências com a esquizofrenia. O primeiro segue o tratamento e tem uma boa evolução, ao passo que o segundo não responde bem aos medicamentos convencionais e precisa recorrer a outro remédio utilizado nesses casos (a clozapina). Já Francisca se recusa a aceitar o diagnóstico e seguir o tratamento, uma situação que, segundo Bressan, é comum.

Através das três histórias, o leitor é convidado a entender o que acontece no cérebro de uma pessoa que tem a doença, quais são as implicações disso em seu cotidiano e como é possível conviver com a doença.

Tem várias formas de ajudar uma pessoa com esquizofrenia. A psiquiatria é fundamental, mas também é importante ter um bom vínculo com o terapeuta. E ter uma pessoa na equipe que você consiga se conectar, que é o chamado profissional de referência. Jorge Cândido Assis

remédios - Getty Images/Istock - Getty Images/Istock
Tratamento da esquizofrenia inclui uso de medicamentos e sessões de psicoterapia
Imagem: Getty Images/Istock

Estigma e tratamento

Para Bressan, o estigma em torno da doença mata. "Parece sensacionalista dizer isso, mas é verdade. O estigma atrasa o diagnóstico e o tratamento, porque os pais, por exemplo, sentem muita vergonha da doença do filho e, muitas vezes, deixam de procurar ajuda", diz o psiquiatra.

As causas da esquizofrenia ainda são desconhecidas, mas é sabido que quadros agudos da doença estão ligados a um excesso de dopamina —neurotransmissor ligado à sensação de prazer.

Parentes de primeiro grau de um esquizofrênico têm risco maior de desenvolver a doença do que as pessoas em geral.

Complicações da gravidez e do parto, infecções e outras doenças que possam ter modificado o desenvolvimento do sistema nervoso no período de gestação também são fatores importantes, assim como o uso de drogas na adolescência.

O tratamento é fundamental para o controle do transtorno e para que o indivíduo possa ter qualidade de vida. A abordagem deve ser multidisciplinar, envolvendo profissionais como psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais e enfermeiros.

As medidas incluem o uso de medicamentos antipsicóticos, que controlam o nível de dopamina no cérebro, e sessões de psicoterapia, para ajudar o paciente a se adaptar às limitações da doença e vencê-las.

No Brasil, o atendimento às pessoas com esquizofrenia passa principalmente pelos Caps (Centros de Atenção Psicossocial). "Faltam serviços específicos para tratar o problema", afirma Bressan.

O psiquiatra ressalta a importância dos serviços de emergência para o chamado PEP (Primeiro Episódio Psicótico). A ideia desses serviços é identificar e investigar casos de episódios psicóticos, dando início precoce ao tratamento e oferecendo acompanhamento aproximado e individualizado aos pacientes.

Essas medidas são vistas pelos médicos como estratégias importantes que podem diminuir o tempo de psicose não tratada e intervenções intensivas. Esse tipo de serviço já foi incorporado à rede de saúde pública de alguns países, mas não é o caso do Brasil.

A importância desses serviços de emergência já foi atestada economicamente por eficácia, ou seja, o custo-benefício é alto. O Brasil já sabe disso faz tempo, mas os únicos serviços disponíveis são na universidade pública. Na Unifesp tem dois serviços e tem mais uns quatro espalhados no país, mas isso tinha que ser política pública. É o fim da picada. Rodrigo Bressan, professor da Unifesp

Estresse agrava transtorno e requer atenção

Jorge carrega no corpo a consequência da primeira crise causada pela doença. Ele anda com uma prótese desde os 21 anos, quando perdeu a perna direita.

A segunda crise aconteceu em 1987, na UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), onde havia ingressado no curso de física. "Fui o primeiro a chegar numa república onde moravam 13 estudantes e a casa tinha sido assaltada, desapareceram coisas minhas e eu não sabia o que fazer. Fomos até a delegacia fazer o B.O., mas esse foi o começo de um caminho de mania de perseguição."

O término com uma namorada e a distância de sua família, que morava na capital paulista, pioraram a situação. "Foram todos fatores que juntos causaram um estresse maior do que a minha capacidade de lidar."

As outras três crises aconteceram em 1992, 2002 e 2012, igualmente impulsionadas por situações de estresse, que aumentam o nível de dopamina no cérebro, como a morte de sua mãe. Ele chegou a estudar cinco anos de física UFSCar e cinco anos de filosofia na USP, mas precisou parar "porque as exigências não se encaixavam com sua realidade na época".

Agora, Jorge conta que está escrevendo um novo livro. "Quero falar sobre minhas experiências e cuidados com a vida." Ele também está produzindo uma pesquisa sobre a relação entre estigma, psicopatologia e história. "Esse vai demorar um tempo para sair", diz.

O professor afirma que está sempre atento ao que está sentindo. No começo do diagnóstico houve um período em que ele deixou de tomar os medicamentos por conta própria, porque achou que "estava bem" —mas sofreu uma crise pouco tempo depois.

Hoje, sua visão mudou. "Quando eu começo a sentir que eu não estou bem, aumento um comprimido e ligo para o meu médico. Se ele disser que precisa aumentar [a dose], eu vou aumentar, não tem problema, desde que seja para o meu bem e com a orientação do psiquiatra."