Empresa quer usar IA para conversarmos com mortos; isso ajudaria no luto?
Como amenizar a saudade deixada por alguém que morreu e ainda manter viva sua memória? O ser humano busca soluções para esses duros dilemas há séculos. Monumentos, poemas, canções, fotos, vídeos, tudo isso já foi tentado e, recentemente, muito se tem discutido sobre a criação de aplicativos com funções de biógrafo e avatar. Ou seja, usar a inteligência artificial, ou IA, para, no futuro, acessar dados de alguém e até interagir com ele depois que estiver morto.
Na Califórnia (EUA), a empresa HereAfter AI fala em inventar um "eu virtual" de quem morreu, combinando centenas de respostas pessoais catalogadas enquanto se está vivo (sobre infância, relacionamentos, personalidade, gostos) com a adição de voz, rosto e expressões, recriados fielmente. No episódio "Be Right Back", da série de ficção científica "Black Mirror" (Netflix), acontece algo parecido, mas o desfecho de quem aderiu à ideia não foi dos melhores.
Em um artigo da MIT Technology Review, revista do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (EUA), a tal ferramenta de "imortalidade" é abordada com cautela. Apesar de a tecnologia disponível hoje ainda não fazer réplicas totalmente idênticas (a voz fica um pouco diferente, assim como o jeito de falar), há uma questão ética de usar a voz da pessoa (que pode estar viva ou morta) e o risco de serviços como esses funcionarem como um gatilho para quem está em luto.
O artigo expõe que essas IA podem prejudicar o processo o processo de luto, fazendo com que a pessoa acredite que está realmente conversando com o ente que morreu, ou até mesmo lembrá-la constantemente que perdeu alguém querido.
Do ponto de vista de quem estuda e trabalha com luto, o grande receio em torno do uso da inteligência artificial tem a ver com as propostas irreais e difundidas de se criar um ser "imortal". O uso desses aplicativos poderia prejudicar a compreensão da perda definitiva, pois inviabilizam a vivência da morte, explica Nazaré Jacobucci em seu livro "Legado Digital: Conhecimento, Decisão e Significado - Viver, Morrer e Enlutar na Era Digital".
"Pode trazer complicações para o que eu denomino de sequência no processo de luto", aponta ela, que é psicóloga membro da ABMLuto (Associação Brasileira Multiprofissional sobre Luto).
Gabriela Casellato, psicóloga especializada em luto pela PUC-SP, compara esses aplicativos a falsas e viciantes drogas anestésicas. "Um app usado livremente pelo enlutado estaria a serviço de suas angústias e desespero diante da saudade, impedindo o desenvolvimento de recursos pessoais de enfrentamento."
Para Casellato, por mais difícil que seja conviver com a ausência de quem amamos, disfarçar ou distorcer a realidade pode ser muito perigoso para a saúde mental, pois adia e potencializa a dor e compromete o ajustamento à vida e as relações sociais.
Fragilidade facilita em crença no irreal
Em meio a um luto é esperado querer revisitar passado e bons momentos compartilhados com quem se foi por meio de recordações, como fotos, gravações, peças de roupas. "Mas mexer nessas coisas, que também podem ter pertencido ao falecido, é bem diferente de acreditar em um clone criado a partir da IA e interagir com ele", adverte Eduardo Perin, psiquiatra pela Unifesp. "Fragilizado, pode se sair da realidade."
A depender da "energia" depositada no contato com pertences e das interpretações, também pode se ter problemas. "Quem foca demais no que já viveu ou teve, tende a se tornar alguém recluso e repetitivo sem perceber, podendo achar que a vida de antes era melhor, e desenvolver depressão e compulsões. Por isso, deve ser encorajado para seguir em frente e se abrir para o novo", explica Leide Batista, psicóloga pela Faculdade Castro Alves, em Salvador.
À medida que novos acontecimentos aparecem, o que se viveu de doloroso tende a ficar para trás. Mas, para tirar proveito, por assim dizer, da ação do tempo, é necessário que o sujeito em sofrimento se deixe levar e se distancie dos gatilhos que disparam seu sofrimento. O luto é muito individual, então dores, traumas podem durar de semanas a meses, ou até anos. Com dificuldades, é preciso receber ajuda logo de início, para que esse processo não se prolongue.
Pode ser objeto de estudo
Aplicativos que se propõem a recriar digitalmente quem já morreu deveriam ser experimentados primeiro para se obter informação para compreender, debater e estudar cientificamente esse fenômeno, opina Perin. "Sem intervenção de profissionais de saúde mental, não são indicados para tratar e superar os processos de luto. Mas caso propusessem reflexões, como programas de suporte claramente dispostos a ajudar, talvez tivessem um lado positivo", avalia Perin.
Para a psicóloga Gabriela Casellato, poderia ser uma estratégia útil em casos de perdas súbitas e violentas nas quais não se teve a chance de concretizar a morte e se despedir, mas a pessoa precisaria ser conduzida por um profissional especializado para usar o app na medida certa. Portanto, não dá para afirmar, sem acompanhar os próximos desdobramentos da inteligência artificial na sociedade, de que direcioná-la ao luto será de um todo negativo.
Por ora, sabe-se apenas que não substitui pessoas nem o trabalho sério feito por psiquiatras e psicólogos, que são habilitados, respectivamente, em diagnosticar, prescrever medicamentos, quando necessário, e, na psicoterapia, ajudar pacientes a compreender e vivenciar todos os estágios do luto e lidar com sentimentos de raiva, tristeza, culpa, negação, desesperança. A resolução da perda é complexa e ocorre aos poucos, hoje com muita conversa e escuta reais.
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