'Tenho uma síndrome e não consigo sorrir nem demonstrar raiva'
Amanda Novo Nascimento, de 26 anos, nasceu com uma condição que dificulta a realização de movimentos na face, como piscar, e a expressão de emoções. Em suas redes sociais, ela resume: "tenho síndrome de Moebius e, por isso, não consigo sorrir".
A síndrome de Moebius é rara e, desde a infância, Amanda enfrenta preconceito por sua aparência — para levar informações a mais pessoas, ela até lançou um livro sobre a condição.
Ao VivaBem, a jovem, moradora de Campinas (SP) e formada em arquitetura e urbanismo, conta sua história.
"Nasci com a síndrome de Moebius, uma doença muito rara, que os médicos demoraram para descobrir.
Com dois dias de vida, ainda na maternidade, a pediatra de plantão observou que eu apresentava estado febril e um leve tremor nos braços. Fui transferida para a UTI neonatal e um neurologista infantil me examinou e fez algumas perguntas aos meus pais sobre a gravidez.
Fiz uma ecografia craniana e tomografia computadorizada de crânio para descartar possíveis deficiências neurológicas.
Como o resultado dos exames foi normal, o neurologista apenas recomendou que eu tivesse um acompanhamento periódico para avaliar meu desenvolvimento.
Com o passar do tempo, como a minha visão e audição não se desenvolveram totalmente, minha boca 'ainda' estava torta e os olhos ficavam muito abertos, meus pais resolveram consultar outros médicos
Só recebi o diagnóstico com 1 ano e 5 meses, após fazer uma eletroneuromiografia [exame que detecta as alterações dos nervos periféricos dos membros superiores e inferiores].
Depois de passar por muitos tratamentos, entre eles, terapia com fonoaudióloga, terapia ocupacional, fisioterapia e bodybrushing (tratamento alternativo com pincel baseado na estimulação corporal), hoje dou uma piscadinha e um sorrisinho de leve, mas quando quero demonstrar raiva ou felicidade, preciso colocar aquele sentimento na minha fala.
Entre 2006 e 2007, fiz duas cirurgias nos olhos, um transplante de córnea no olho direito e uma elevação das pálpebras inferiores em ambos os olhos, para diminuir a exposição das minhas córneas.
Como não consigo fechar minhas pálpebras totalmente, preciso dormir com uma máscara de gel. Quando está muito calor, uso colírio, para evitar que meus olhos fiquem ressecados, e óculos escuros
Como tenho um estrabismo divergente, com o olho se desviando para fora, preciso virar a cabeça para enxergar. Apesar disso, vejo bem, só precisando de óculos quando vou mexer no computador. Mas quero fazer uma cirurgia corretiva de estrabismo para me aceitar melhor e poder dirigir.
'Você é um monstro'
Quando era criança, na escola, as professoras sabiam das minhas limitações e sempre me incluíam nas atividades.
A partir dos 5 anos comecei a sofrer bullying na escola e na rua. Meus colegas de classe estavam acostumados comigo, mas as crianças de outras salas me olhavam diferente, tentando entender o que eu tinha.
Sempre gostei de brinquedos de shopping, mas todas as vezes que queria fazer amizade com as crianças, que já estavam lá brincando, tinha de passar por um tipo de teste.
Perguntavam se enxergava e respondia que sim. Mas não acreditavam e pediam para eu descrever como elas eram, quais roupas estavam usando. Nisso, já se passavam uns 10 minutos.
Outras crianças falavam que eu não poderia brincar com elas porque era feia, tinha olho quebrado, a boca torta. Chegaram até a dizer um dia: 'Você é um monstro'.
Diante da pouca informação sobre a síndrome, resolvi escrever um livro sobre como é viver com essa diferença, em 2014. Explico o que é a síndrome, quais as causas e tratamentos disponíveis, além de contar a minha história.
Hoje em dia, os adultos perguntam com mais cautela o que tenho, para não me magoar. Me olham e falam 'posso fazer uma pergunta? O que você tem? Te achei um pouco diferente e fiquei curiosa, mas não queria que minha pergunta te magoasse'.
Depois de mais de 10 anos de terapia, já consigo responder tranquilamente: falo para a pessoa ficar tranquila e digo que escutei essa pergunta muitas vezes, por isso não tenho mais problema em responder.
Quando vejo uma criança, tento chegar perto, ganhar a confiança e explicar. Porém, ainda existem pessoas que são indelicadas e me perguntam se sofri algum tipo de acidente, se tive um AVC ou fiz alguma reconstrução facial.
Também já sofri preconceito na hora de procurar emprego. Sou formada, mas não consigo trabalho na minha área. Nas entrevistas de que participei, os empregadores perguntaram o que eu tenho, se a síndrome não atrapalharia no desenvolvimento das minhas funções, querendo insinuar que tenho algum problema intelectual.
Conheço minhas limitações físicas e ainda estou em processo de aceitação da minha aparência, que chama muita atenção."
Entenda a síndrome de Moebius
A síndrome de Moebius ou sequência de Moebius é uma condição congênita — quando as pessoas nascem com ela, explica Marina Gallottini, dentista e parceira da Amob (Associação Moebius Brasil) há 27 anos.
A síndrome é caracterizada principalmente pela paralisia de alguns pares de nervos cranianos importantes como facial, trigêmeo (desempenha função sensitiva e motora) e abducente, do globo ocular. Em alguns casos, pode causar deformidades ortopédicas em mãos e pés.
Pode ter outros comprometimentos associados, como a síndrome de Poland (subdesenvolvimento do músculo peitoral maior) e quadros do espectro autista.
Pode afetar os pacientes em diferentes graus, desde as pessoas levemente afetadas, com leve paralisia do nervo facial, até pessoas muito afetadas, segundo explica Marina Gallottini, que também é coordenadora do Cape (Centro de atendimento a pacientes especiais) da faculdade de odontologia da USP.
A condição rara afeta ao menos 600 brasileiros e 5 mil pessoas ao redor do mundo, de acordo com a Amob (Associação Moebius Brasil). Mas esse número pode ser maior, segundo a Gallottini. "Hoje em dia a gente sabe que tem mais do que 600 pessoas com a síndrome. Só para você ter uma ideia, no Cape já tratamos 200 pacientes. Esses dados são subnotificados no país, mas o Brasil é um dos campeões em termos de incidência."
Não há comprometimento intelectual entre as pessoas com a síndrome.
Entre as possíveis causas da síndrome, estão:
- Fatores genéticos;
- Déficit na irrigação sanguínea do tronco cerebral entre a 6.ª e a 8.ª semana da gestação;
- Uso de cocaína durante a gravidez;
- Uso de medicamentos, como misoprostol, que era indicado no tratamento de gastrite e úlcera, talidomida (sedativo), e benzodiazepínicos (tranquilizantes).
Embora existam casos de ocorrência familiar, alguns com alterações cromossômicas, a maioria é de aparecimento esporádico, sem herança de um gene específico que causa a sequência de Moebius, sendo ambos os sexos afetados com igual frequência
Liana Ventura, oftalmologista pediátrica, presidente do conselho curador da Fundação Altino Ventura e membro do conselho diretivo da Fundação Pan Americana de Oftalmologia
Entre as características mais comuns de quem tem a síndrome, estão:
- Malformações de membros e estrutura orofacial (musculatura dos lábios, língua, bochechas e face)
- Estrabismo convergente (olho se desviando para dentro) ou divergente (olho se desviando para fora)
- Dificuldade de mover os olhos
- Ausência de lágrima
- Dificuldades de fala
- Quando bebê, apresenta dificuldade para sugar
- Dificuldade para mastigar
Dependendo do caso, os tratamentos podem envolver diferentes profissionais, entre eles: dentista, psicólogo, fisioterapeuta, oftalmologista, ortopedista, fonoaudiólogo, cirurgião plástico e neurologista.
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