Pele, olhos e boca podem ser afetados por doenças inflamatórias intestinais
A vida com DII (doença inflamatória intestinal) vai além de tratar os intestinos. É que pela origem dessas condições, outras partes do corpo podem ser afetadas, como olhos, pele e articulações.
Seja doença de Crohn ou retocolite ulcerativa, a extensão do impacto e necessidade de cuidados também comprometem a vida social, profissional e relações interpessoais. Dores intensas, dezenas de idas ao banheiro por dia e períodos de repouso dificultam atividades que para muitos são corriqueiras, como estudar, trabalhar e sair com amigos.
"O mercado de trabalho sempre foi muito difícil", descreve Marialina Fernandes, 33, que se formou em educação física e trabalha com marketing atualmente.
Ela foi diagnosticada com doença de Crohn aos 13, numa época em que pouco se sabia sobre DII. Tanto que consultou 15 médicos até chegar ao diagnóstico. A demora para confirmar a doença, inclusive, é um dos fatores que aumentam o risco de complicações.
A média de tempo entre ter sintomas e fazer exames é de dois anos. Renata de Sá Brito Fróes, gastroenterologista especializada em DII
O coloproctologista Luiz Carlos Nascimento Bertoncello, do Vera Cruz Hospital (SP), explica que as causas das DII ainda são desconhecidas, mas há três fatores potenciais:
- Genética
- Ambiente, incluindo hábitos alimentares, medicações e tabagismo
- Microbioma
"Para ter inflamação do intestino, tem de ter esses três fatores mais a parte imunológica comprometida", afirma o médico.
Do intestino para todo o corpo
Marialina relata que sempre sentiu muita dor nas articulações e chegou a ter manchas roxas nas pernas. Uma investigação confirmou a artrite, uma inflamação nas juntas, cerca de dois anos após o diagnóstico de Crohn.
"De uns tempos para cá, tenho sentido dor articular quando tenho crise forte, que ataca a dor no corpo inteiro", conta. Como numa fileira de dominó em que a primeira peça derrubada faz cair as demais, uma doença autoimune como as DII pode desencadear reações em outras partes do organismo.
Um estudo liderado pelo Gediib (Grupo de Estudos da Doença Inflamatória Intestinal do Brasil), que acompanhou 1.179 pessoas com DII entre 2020 e 2022, mostrou que cerca de 21% delas apresentaram manifestações extraintestinais.
Entre as áreas do corpo que podem ser afetadas a partir das DII estão:
- Pele: inflamações (dermatites) na camada superficial que causam coceira, vermelhidão, inchaço, bolhas e até crostas e descamação.
- Articulações: de acordo com o Gediib, a artrite afeta 30% dos pacientes com Crohn e 5% dos que têm retocolite ulcerativa.
- Olhos: a uveíte é uma das complicações mais comuns da DII, mas não a única. Ela é causada pela inflamação da úvea, camada intermediária da parede ocular. Dor, visão embaçada, sensibilidade à luz e vermelhidão são alguns sintomas. É uma inflamação grave, inclusive com risco de cegueira.
- Ossos: as DII estão relacionadas à baixa densidade óssea, seja porque a absorção de cálcio pelo intestino fica comprometida ou porque os medicamentos provocam esse efeito. A própria inflamação e dificuldade de nutrição podem desencadear problemas como osteoporose e osteopenia.
- Boca: quando pessoas com DII estão em períodos de crises, com inflamação ativa do intestino, podem surgir erupções na boca e aftas.
- Saúde mental: uma meta-análise publicada em 2021 na revista The Lancet mostrou que a prevalência de sintomas de ansiedade em pessoas com DII foi de 32,1%. Já os sinais de depressão têm prevalência de 25,2%.
Segundo José Miguel Luz Parente, supervisor do ambulatório de Doenças Inflamatórias Intestinais do HU-UFPI (Hospital Universitário da Universidade Federal do Piauí), as manifestações extraintestinais podem ter um curso independente ou simultâneo à doença intestinal.
"Em 25% dos pacientes, as manifestações extraintestinais podem iniciar antes mesmo das manifestações digestivas", afirma ele, que é professor adjunto de gastroenterologia da UFPI. Isso pode ocorrer seis meses ou um ano antes do diagnóstico de doença de Crohn ou retocolite ulcerativa.
Parente fala que algumas manifestações, como a artrite, estão relacionadas diretamente com a atividade inflamatória no intestino. Mas por que as DII levam a outras doenças no corpo?
Acredita-se que há similaridades de alguma parte das células, que dividem a mesma sequência na periferia da célula igualmente no intestino e nessas outras regiões. José Miguel Luz Parente, gastroenterologista da UFPI
Mas da mesma forma que as DII podem levar a complicações em outras partes do corpo, o controle da doença intestinal faz melhorar as demais. Além disso, há medicamentos capazes de atuar na inflamação do intestino e em locais extraintestinais.
"Por isso é importante ter um grupo multidisciplinar que cuida do paciente, como reumatologista, dermatologista, para definir o melhor medicamento", destaca Bertoncello.
O especialista comenta que algumas medicações podem levar a reações alérgicas e cutâneas, semelhantes à psoríase. Porém, somente uma avaliação médica confirmará se é uma resposta ao remédio —que deve ser trocado— ou, de fato, uma nova doença autoimune.
Impacto além do corpo
As DII e as complicações que podem surgir afetam diretamente a vida social e profissional, como mostrou a tese de doutorado de Renata de Sá Brito Fróes. Na pesquisa, ela identificou que as pessoas ficam, em média, um ano afastadas do trabalho, considerando as necessidades para diagnóstico e tratamento.
Marialina concluiu o ensino básico e a faculdade com dificuldades, porque ia para as aulas com dor mesmo ou se ausentava com frequência. Quando chegou ao mercado de trabalho, encontrou novos desafios.
Chegou uma época que eu dava tanto atestado que não conseguia mais ir, tive que sair, porque não tinha uma rotina normal. Marialina Fernandes
Ela sente que é difícil para as outras pessoas entenderem por que ela precisa faltar muitas vezes ou de um repouso maior após o almoço. O que dificulta ainda mais o entendimento é quando a incapacidade devido às DII não é óbvia. Fróes explica:
"Se a pessoa é motorista de ônibus, a incapacidade é óbvia, porque ela não vai ter acesso ao toalete sempre, então não vai ao trabalho. Mas se a pessoa tem um trabalho administrativo, com acesso mais confortável ao banheiro, mesmo indo seis vezes por dia, ele vai trabalhar", ilustra.
Nesse caso, fala-se em presenteísmo —o oposto do absenteísmo—, que é quando o profissional está fisicamente presente enquanto está doente. E o cenário é comprometedor porque a maioria das pessoas acometidas com DII estão em idade produtiva.
O estudo do Gediib também mostrou que, na maioria das vezes, as manifestações mais graves da doença impactam pessoas mais jovens, entre 14 e 35 anos. Embora as DII possam ocorrer em qualquer idade, igualmente em homens e mulheres, a incidência é maior entre jovens adultos.
"O exato motivo pelo qual existe uma prevalência maior e também a incidência, que são os novos casos por ano, não é totalmente conhecido. Esse é um fato epidemiológico, que é uma observação que acontece em todo o mundo", diz Parente, da UFPI.
Tratamento visa qualidade de vida
Como as DII ainda não têm cura, o tratamento deve ser mantido para evitar a recorrência de manifestações clínicas e conter danos. Ao longo das décadas, a revolução com o uso de medicamentos biológicos reduziram hospitalizações, cirurgias e morbidade.
Além de aliviar os sintomas, os objetivos do tratamento incluem redução da atividade inflamatória e cicatrização da mucosa do intestino, levando a uma melhoria da qualidade de vida da pessoa.
É importante também monitorar a adesão ao tratamento para verificar possíveis barreiras, como falta de acesso ao medicamento ou a ideia de que, melhorando, poderia interromper o remédio.
Há também objetivos de curto, médio e longo prazos:
- Curto prazo: alívio dos sintomas nos primeiros meses de tratamento.
- Médio prazo: ao longo de seis meses a um ano, espera-se manutenção da melhora clínica e redução da atividade inflamatória, indicado por exames de sangue. "Isso ocorre mais ou menos em 50% a 80% dos casos, vai depender do tratamento que é feito e da gravidade da resposta biológica do paciente aos medicamentos", diz Parente.
- Longo prazo: acima de um ano de tratamento, o objetivo é uma cicatrização da mucosa intestinal. "Os pacientes que atingem isso vão ter uma possibilidade maior de não ter recidiva nem necessidade de internação ou cirurgias", comenta o especialista.
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