Botox e preenchedores agregam a procedimentos para transição de gênero
Cirurgias de feminização e masculinização costumam ser a primeira ideia de pessoas transexuais que desejam ver no espelho traços que se alinham a sua identidade de gênero. Mas os riscos inerentes, o alto custo e a preocupação de ser algo irreversível afastam a opção.
Outra alternativa, então, são os procedimentos estéticos, como aplicação de toxina botulínica e preenchedores, que podem ajudá-las a chegar ao rosto que lhes agrada. A estratégia torna-se mais viável em diferentes aspectos:
- É menos invasiva, com recuperação geralmente mais tranquila.
- É mais acessível financeiramente, comparada a uma cirurgia que pode custar de R$ 40 mil a R$ 80 mil.
- É reversível, então, por ser feita em etapas, a pessoa pode acompanhar as mudanças, indicar o que está gostando e o que deseja alterar.
Mas é importante destacar que os procedimentos não substituem a cirurgia e vice-versa.
Os injetáveis e as cirurgias têm vantagens. Tudo faz parte do arsenal de tratamento para fazer a transição de gênero, são técnicas que se somam. Bianca Viscomi, dermatologista
Uma revisão de literatura sobre procedimentos faciais em pessoas com disforia de gênero, com 25 estudos analisados, concluiu que as intervenções "promovem a confirmação e a diminuição da incongruência de gênero", o que traz bem-estar e melhora da saúde mental.
Embora alguns indiquem que a cirurgia é essencial nesse processo e seja segura, outros não conseguem afirmar que a cirurgia unicamente é suficiente para melhorar a vida dessas pessoas.
Protocolo específico para pessoas trans
A publicitária Roberta Maria de Pádua, 28, cogitou ir para o centro cirúrgico, mas o preço era inviável. Também, tinha alguns receios. "Cirurgias plásticas acabam te deixando com uma aparência muito distante da original, já que, por vezes, alguns traços identitários são apagados, algo que pode virar um processo de desassociação de identidade", explica.
Em 2019, por indicação de amigos, ela foi conhecer o protocolo desenvolvido por Viscomi, que estava iniciando um estudo com tratamentos estéticos para o público trans. A médica conta que, um ano antes, um paciente a procurou para um tratamento com injetáveis a fim de se parecer mais andrógino.
Ao buscar na literatura médica como poderia intervir, encontrou quase nada. Os poucos artigos científicos que achou não eram específicos para pessoas trans, mas adaptações de pacientes cis. Então, ela resolveu descrever algumas técnicas direcionadas a esse público.
"Comecei com mulheres trans e agora estou trabalhando com mulheres e homens trans", conta a dermatologista. Um artigo com os resultados da primeira experiência, com o relato de cinco casos, foi publicado no ano passado com financiamento da Merz Pharmaceuticals, que forneceu os produtos injetáveis.
Choro de emoção
A produtora de moda e stylist Fedra Fonseca, 31, também foi atendida por Viscomi. Ela conta que nunca tinha pensado com afinco nos tratamentos estéticos porque sempre via rostos padronizados. Mas investiu nos procedimentos da dermatologista por terem uma abordagem mais específica.
Em agosto de 2021, ela iniciou a jornada de cuidados, com aplicação de toxina botulínica, preenchedores e bioestimulador de colágeno. "A maior vantagem foi não ter perdido e valorizado o que acho bonito em mim. Me trouxe muita autoestima", destaca.
A stylist fala de um "efeito colateral positivo" conforme a toxina botulínica foi relaxando os músculos da face. Ela notou que, antes, pressionava muito o maxilar inconscientemente, o que lhe causava dores de cabeça e de dente. "Acabei chorando [de emoção] porque não estava esperando essa sensação", relata.
Fedra e Roberta dizem que os procedimentos, além de fazerem parte da transição, deixaram suas peles mais saudáveis e as motivaram a cuidar mais da saúde como um todo. "Não adianta tratar da pele e comer mal", exemplifica a publicitária.
Harmonização facial e feminização são diferentes?
Ao verem pessoas fazendo harmonização facial, Roberta e Fedra tinham receio de entrar nesse meio e saírem com um rosto padrão, que as despersonalizasse. De fato, seria necessária uma abordagem direcionada, porque esse procedimento difere da feminização ou masculinização.
Quem explica é a dermatologista Ana Cristina França Medeiros, preceptora do serviço de dermatologia do Hospital Otávio de Freitas, no Recife:
Harmonização facial
- A harmonização visa atenuar marcas e preencher regiões onde, naturalmente, as pessoas perdem gordura com o tempo.
- Tudo é feito mantendo as características de gênero.
- Se é homem, as aplicações são mais na lateral do rosto, e o olhar, geralmente, é mais fechado.
- Se é mulher, o foco das aplicações é na parte mais central do rosto, na boca, e o olhar fica mais arqueado.
Feminização e masculinização
- Em homens trans, os preenchimentos deixam o ângulo de mandíbula mais marcado, o queixo mais pronunciado e as injeções evitam a parte central do rosto.
- Para mulheres trans, faz-se o contrário: injeta mais na parte central, deixa o rosto mais redondo, "estrogênico" (relacionado ao hormônio sexual feminino), delicado e não pesa tanto no ângulo da mandíbula.
Mas essas indicações não são regras escritas em pedra. Embora não haja diferença entre o tratamento para pessoas trans e o que é realizado em pessoas cisgênero, o plano é individualizado.
"As técnicas e produtos são os mesmos, o que muda é a avaliação da face correlacionada com o objetivo", explica Viscomi. Ela comenta que a abordagem para uma mulher trans "é totalmente diferente da abordagem de mulher cis que quer tratar envelhecimento".
A literatura científica ainda carece de estudos sobre técnicas de feminização e masculinização, bem como sobre o uso de injetáveis, mas a dermatologista Medeiros afirma que o tema está sendo progressivamente discutido em congressos de dermatologia.
Cada vez mais acreditamos que tem como modificar com injeção, preenchedores e botox. Hoje, o dermatologista está bem capacitado, vem cada vez mais entendendo as diferenças ósseas. Ana Cristina França Medeiros, dermatologista
Viscomi concorda que é preciso desestigmatizar os tratamentos para pessoas trans. Elas devem ser atendidas em consultórios abrangentes, não nichados, com acolhimento e segurança, afirma.
Além da estética
Estudos sobre cirurgia de feminização facial já indicam que, além de auxiliar no processo de aceitação, a estratégia reduz o risco de depressão e ansiedade. O mesmo pode ser considerado para tratamentos estéticos, que ganham mais importância quando a pessoa não se identifica com o gênero que lhe foi atribuído ao nascimento.
"Essas pessoas sofrem muitas violências e preconceito ao longo da vida, e esse tipo de procedimento, mais ou menos invasivo, pode melhorar a saúde mental delas por ajudá-las nessa identidade, a se sentirem melhores consigo", reforça Bruno Branquinho, psiquiatra com enfoque no público LGBTQIAP+, da NuMA Saúde.
Ele lembra que não só pessoas trans buscam essas alternativas. Homens e mulheres cisgênero também recorrem a intervenções para se reafirmar, seja uma condição mais viril ou traços mais delicados.
O "padrão" social, por vezes, influencia pessoas trans a buscarem modificações: no rosto, no corpo, no nome. Mas Branquinho sublinha que ninguém é obrigado a nada.
Esses procedimentos de afirmação de gênero não são requisitos para que as pessoas sejam consideradas trans. Isso não é obrigação, é um direito. Se ela não quiser fazer, vai continuar sendo trans. Bruno Branquinho, psiquiatra da NuMA Saúde
Por conta dessa pressão, por vezes invisível, a pessoa deve estar bem acompanhada por profissionais que não a julguem e a ajudem a definir por quais procedimentos passar, se esse for o desejo. É preciso saber dos riscos, das vantagens, o que é possível mudar e o que não é.
Como escolher o profissional
Viscomi recomenda buscar um profissional médico habilitado, com CRM, e capacitado para as técnicas, o que pode ser conferido no site do CFM (Conselho Federal de Medicina) e de sociedades às quais a pessoa diz pertencer.
Confirme se os produtos utilizados são reversíveis, não definitivos.
Branquinho orienta encontrar um profissional que ofereça acolhimento para discutir tudo o que a pessoa deseja, o que quer, do que gosta ou não em si.
A pessoa deve perguntar e o profissional deve orientar sobre riscos e a possibilidade de o resultado não sair exatamente como o esperado.
O tempo para se chegar aos resultados também precisa ser discutido, uma vez que o processo leva tempo.
"Os procedimentos estéticos são ferramentas que podem ter efeitos benéficos e precisam ser muito discutidas e conversadas para não gerar mais problemas depois", diz Branquinho.
Roberta, que realizou os procedimentos estéticos, alerta para não "tomar os pés pelas mãos". "É muito importante, principalmente no início do processo, entender o seu corpo, o funcionamento dele e no que se baseia sua transição, se é de uma 'caixa' para outra ou se você quer se desgarrar dos padrões", diz.
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