Óvulo de uma, barriga da outra: Cristiane e Ana tiveram gestação conjunta
A advogada Ana Paula Garcia, 28, nunca pensou em ter uma família. Até que conheceu a jogadora de futebol Cristiane Rozeira, 38, atual atleta do Santos, que já sonhava em ser mãe solo. O relacionamento ficou cada vez mais sério, e a vontade de terem um filho também.
Tinha para mim que não iria formar família, mas depois que conheci a Cris, começou a vir o desejo. Ana Paula Garcia, advogada
Elas tiveram o pequeno Bento, hoje com 2 anos, por meio de uma gestação compartilhada: o óvulo é de uma, mas a gravidez foi na barriga da outra. "Eu usei os óvulos da Cris, toda a preparação foi no corpo dela, pra depois ter a fertilização no laboratório e colocar o embrião no meu útero", explica a advogada.
Esse tipo de FIV (fertilização in vitro) é o principal método usado por casais lésbicos para engravidar, diz o ginecologista Vinícius Bassega, que atendeu as duas.
O processo começou em 2020, ainda na primeira onda da pandemia de covid-19. Com o calendário do futebol parado, era o momento ideal para Cris usar as medicações necessárias para a retirada dos óvulos. Os remédios, injeções na pele, promovem o crescimento dos folículos, estruturas nos ovários que abrigam os óvulos e são responsáveis pelo amadurecimento deles até a liberação.
Pelo fato de Cris ser uma atleta de alto rendimento, a Fifa precisou liberar o uso dessas medicações.
Confesso que não tive grandes problemas, escrevi para o COB [Comitê Olímpico Brasileiro], que me respondeu e eu tive que mandar para a Fifa. São vários trâmites, mas tive resposta rápida até. Pela parte burocrática, achei que demoraria mais. Vinícius Bassega, ginecologista que atendeu Ana e Cris
Como funciona a gestação compartilhada?
A gestação compartilhada é um método de reprodução assistida com a participação das duas mães.
O primeiro passo é escolher o sêmen do doador em bancos nacionais ou internacionais —nos últimos, a depender do serviço, é possível acessar mais dados dessa pessoa, como fotos da infância, informações de personalidade e até mesmo ouvir a voz.
O processo só é liberado após a chegada do sêmen. Em bancos internacionais, caso da escolha de Ana e Cris, as amostras demoram mais ou menos 50 dias. Elas ficam congeladas até serem usadas.
Depois de a amostra chegar, a mãe que fará a doação do óvulo começa com as medicações. É feito acompanhamento com ultrassons para monitorar o momento ideal da coleta —no caso de Cristiane, o processo levou 10 dias.
Na sequência, a coleta é feita por meio de um ultrassom transvaginal. É como se os óvulos fossem "aspirados", com uso de anestesia, para serem fertilizados com o espermatozoide, que nesse momento é descongelado e processado em laboratório.
A última etapa é colocar os embriões no útero da outra mãe. Eles podem "colar" ou não, indicando o sucesso da gestação.
Os embriões não usados ficam guardados para tentativas futuras (ainda sem limite de tempo). Ana diz que Cris quer ter uma gestação, mas apenas quando encerrar a carreira como jogadora de futebol.
Ansiedade pelo sim
Quando Cristiane começou as medicações para retirar os óvulos, Ana notou mudanças no seu humor e no comportamento. Isso é normal. Muitas mulheres, inclusive, chegam a definir a etapa como uma intensa TPM (tensão pré-menstrual).
É comum sentir dor de cabeça, inchaço, irritabilidade e incômodo no abdome, porque o volume dos ovários aumenta e dá a impressão de existir um peso na região.
Nesse período, é indicado não praticar exercício. Por conta dessa restrição à Cristiane, uma atleta de alto nível que já atuou pela seleção brasileira, o ideal seria conseguir a gestação já na primeira tentativa, pois ela precisava voltar aos treinos. "A Cris tinha período para parar e não teríamos tempo hábil para fazer novamente", explica Ana Paula.
Com os óvulos colhidos, elas conversaram sobre quantos embriões iriam transferir e decidiram apenas um. A decisão é do casal, considerando as indicações do médico responsável, já que gestações múltiplas têm riscos por si próprias. Os embriões não transferidos são guardados para tentativas futuras por meio do processo de criopreservação, uma técnica de congelamento.
Ana tomou medicações para o útero receber bem os embriões. Esse foi um momento delicado, porque o útero dela tinha uma circunferência que prejudicava o deslocamento do cateter. "Esse momento da transferência foi o mais desafiador. Não podia colocar anestesia, porque é um processo simples. Mas dificultou por conta da curvatura, foi doloroso", lembra ela. Após a transferência, veio a ansiedade pelo positivo no teste de gravidez.
Fiz o teste de farmácia em casa porque estava ansiosa. Até me falaram 'Ana, espera, porque às vezes dá falso negativo'. Mas comprei e ter a confirmação do sim foi a maior loucura da minha vida. O momento de maior êxtase. Pensei: 'Agora a minha vida mudou'. Ana Paula Garcia
Após confirmar a gravidez, é preciso identificar o batimento cardíaco fetal. "Daí, segue o pré-natal como qualquer outro. Se tiver gêmeos, é natural que tenha risco maior, por isso o cuidado com o número de embriões para transferir", explica a ginecologista e obstetra Márcia Mendonça Carneiro, professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
Vida com Bento: 'Furacão de felicidade'
Grávida na pandemia, Ana diz que viveu um momento desafiador. Em especial por ainda não se saber ao certo os riscos da covid-19 às gestantes. A solidão durante o período também pesou. "Foi um desafio por ser bem solitário", conta.
A gravidez em si seguiu sem complicações. Mas Ana começou a ficar ansiosa com o parto. "Estava muito tensa, porque foi tudo muito novo. Era extremamente novo o papel de mãe de primeira viagem, não sabia como o meu corpo ia responder, fiquei muito tensa e não consegui curtir", diz.
Bento nasceu às 2h32 do dia 26 de abril de 2021 após uma cesariana e ao som de 'Pais e Filhos', canção do Legião Urbana. No pós-parto, Ana voltou a sentir o impacto do isolamento.
Foi difícil, porque de novo foi solitário. A bisavó veio visitar ele toda encapuzada, por exemplo. Em um mês, a Cris retornou aos jogos, voltou a viajar, e eu ficava sozinha em casa. Além disso, estava com um ser novo no meu núcleo familiar. Estava conhecendo o Bento, e ele estava me conhecendo também. Aprendendo do que ele gosta e me adaptando à responsabilidade de ser mãe. Ana Paula Garcia
Até que percebeu a hora de buscar apoio, porque o desconforto emocional ficou grande. "Eu leio bastante, gosto de me manter informada e percebi que chorava muito, por nada. Por que estava triste? Não conseguia identificar e achei que estava na hora de pedir ajuda", lembra.
Ana consultou o terapeuta indicado por uma amiga, que a diagnosticou com baby blues —também chamado de tristeza puerperal, que pode atingir até 90% das mulheres após o parto. O acompanhamento a fez ficar bem, à medida que também se adaptou à rotina de mãe de primeira viagem.
Se falo do Bento, dá até vontade de chorar. Ele é especial demais, a gente brinca que ele é um furacãozinho, mas é um furacão de felicidade. O Bento tá sempre sorrindo, cantando, pulando, brincando. Não tem tempo ruim pra ele, e ele me ensina muito com isso. Ana Paula Garcia
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