Fragmentado? O que explica boom de tiktokers com 'múltiplas personalidades'
Já ouviu falar em TDI? A sigla para Transtorno Dissociativo de Identidade tem sido utilizada como hashtag por vários jovens no TikTok que dizem conviver com o distúrbio.
Em linhas gerais, eles afirmam que têm várias identidades e que cada uma delas assume o protagonismo de suas vidas em determinado momento.
Uma jovem, por exemplo, aparece em um vídeo, com centenas de curtidas e visualizações, como uma pessoa muçulmana e, depois, alterna para um homem gay — duas das identidades que ela diz assumir.
Nos comentários, algumas pessoas perguntam se o "transtorno" é semelhante ao mostrado no filme Fragmentado (2016), que narra a história de um homem que convive com 23 identidades.
Especialistas em saúde, no entanto, são céticos em relação aos relatos do transtorno nas redes.
Embora não seja possível descartar nem comprovar diagnósticos sem uma investigação cuidadosa, eles afirmam que o transtorno em si é raro e se manifesta de forma diferente da apresentada no TikTok. Por exemplo, é pouco provável que uma pessoa com TDI consiga induzir automaticamente outro estado de personalidade.
A onda de TDI no TikTok, no entanto, levanta debates sobre a necessidade de mais estudos sobre o tema — e sobre o impacto dos relatos de transtornos mentais nas redes sociais.
Alter e front
Vídeos no TikTok sobre TDI têm linguagem própria, compartilhada pelos jovens que se identificam com o transtorno.
Eles se autodenominam "sistemas" e falam por meio de um alter, que seria o responsável por passar informações. Cada alter deve assumir o front (a frente) para responder às questões dos seguidores. Eles têm uma história e personalidade diferentes da do host — o "anfitrião". Além dos nomes, podem ter idades, gênero, sexualidade, etnia, gostos e religiões diferentes.
Há também quem diga que o alter pode não ter forma humana, assumindo-se como vampiros ou objetos. A tese, no entanto, é questionada por especialistas, que afirmaram desconhecer casos de personalidades não humanas na literatura médica de TDI.
TDI nos EUA
Nos Estados Unidos, o "boom" de TDI no TikTok preocupa especialistas desde o ano passado.
Além da ridicularização que pessoas que discutem a própria saúde mental nas redes podem sofrer, há ceticismo sobre a forma como os debates são levantados, e temor pelos efeitos desse tipo de conteúdo.
O adolescente tem personalidade em formação e é mais vulnerável a questões de saúde mental e emocional. É mais fácil esses rótulos e diagnósticos gerarem complicação maior nessa população
Rodrigo Martins Leite, coordenador do programa de psiquiatria social e cultural do IPq (Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP)
Nas redes, os algoritmos são treinados para mostrar conteúdos semelhantes aos que foram vistos anteriormente. Assim, se há uma procura por temas relacionados à saúde mental, o usuário receberá uma enxurrada de vídeos na mesma linha.
Pessoas com certas características psicológicas podem ser mais sugestionáveis e, portanto, apresentarem fenômenos ou vivências dissociativas (de múltiplas personalidades, por exemplo), quando expostas a informações sobre isso. Com as redes sociais, mais pessoas têm acesso a estas informações e pode existir essa sugestão -- mais voltada ao contexto cultural do que a um aumento do número de casos de transtorno
Antonio Paulo Rinaldi Asciutti, psiquiatra voluntário no Ambulatório de Transtornos Somatoformes do IPq
Nos comentários de vídeos sobre TDI no TikTok, algumas pessoas afirmam que se consultaram com psiquiatras, mas não receberam o diagnóstico. No entanto, segundo elas, o conteúdo teria ajudado a "identificar" por conta própria o transtorno.
"Meu psiquiatra me deixou muito confuso depois que afirmou que eu não tinha TDI, apesar dos alters (...). Virei a internet atrás de um vídeo assim e encontrei. Obrigado", afirmou uma pessoa, em uma das mensagens.
O que é TDI
O Transtorno Dissociativo de Identidade é condição rara, em que existe alteração da percepção da própria identidade.
Não há muitos estudos brasileiros sobre o TDI e prevalência no país. Nos Estados Unidos, estima-se que 1,5% da população conviva com o distúrbio.
Quem tem TDI normalmente não consegue distinguir que tem esse transtorno, uma vez que sofre amnésia dissociativa, ou seja, um "apagão" quando outra identidade assume.
Não é comum o controle sobre as identidades. É pouco provável que uma pessoa consiga automaticamente induzir outro estado de personalidade.
Esses estados, muitas vezes, são desencadeados por emoções intensas ou situações traumáticas. Na maior parte das vezes, isso atrapalha a funcionalidade das pessoas.
Geralmente é o TDI é causado por um trauma ou episódio traumático recorrente. No entanto, para a psiquiatria, só a presença de um trauma não é suficiente para fechar o diagnóstico. É preciso levar em conta outros fatores.
O trauma pode ter ocorrido muitos anos antes do desenvolvimento do transtorno. Não é possível realizar diagnósticos de TDI na infância.
O TDI pode estar acompanhado de depressão e ansiedade. Em decorrência da soma de fatores, o paciente pode viver situações graves, como tentativa de suicídio.
Dissociar é quebrar. A pessoa 'sai do ar' e fará algo de que ela não se lembra. Ela não se reconhece, não sabe quem é. Pode se sentir criança no corpo de adulto, por exemplo. É necessário acompanhamento com terapeuta para não chegar ao ponto de não conseguir lidar com a situação
Danielle H. Admoni, psiquiatra da Unifesp e especialista da ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria)
Como é o diagnóstico?
Por atendimento especializado. Só um profissional é capaz de identificar.
Feito por entrevista com psiquiatra. O contexto cultural ou religioso é analisado para excluir possibilidades, bem como a relação com drogas. Um dos critérios para fechar um diagnóstico de TDI é a perda de funcionalidade. É comum que o transtorno afete as relações pessoais, familiares e há dificuldade de manter um emprego estável.
Personalidades adaptativas não são TDI. Muitas vezes, pessoas desenvolvem personalidades específicas para se adaptar ao contexto. Isso não deve ser confundido com transtorno mental.
Se ela desenvolve uma personalidade para se adaptar em condições que normalmente não conseguiria, como ter maior rendimento no trabalho, não chamamos isso de transtorno. É um fenômeno sociocultural
Antonio Paulo Rinaldi Asciutti
Na cultura popular
O TDI começou a ganhar destaque no debate público quando a jornalista Flora Rheta Schreiber publicou o livro "Sybil", em 1973. Flora narrou a história de Shirley Ardell Mason, morta em 1998, que foi diagnosticada, na época, com múltiplas personalidades pela psiquiatra Cornelia B. Wilbur.
A obra fez com que o distúrbio fosse incluído no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. A história rendeu a Hollywood produções audiovisuais, como um filme homônimo que ganhou diversas premiações.
A trama, no entanto, foi contestada em 2011, quando a também jornalista Debbie Natan publicou o livro "Sybil Exposed".
Outra produção popular que rendeu debates sobre o TDI foi o filme "Fragmentado" (2016), sobre a história de Kevin, que convive com 23 identidades e sequestra três adolescentes. A obra foi criticada por mostrar um personagem violento, estigmatizando o distúrbio.
Redes sociais não são vilãs
O debate sobre saúde mental na mídia pode ter pontos positivos, como orientar pessoas a buscarem especialistas e tratamento. É preciso cautela, no entanto, para evitar estigmatização e a falsa ideia de que é possível se diagnosticar sem especialista.
O diagnóstico é sempre feito por outra pessoa, um profissional. Não é algo que as pessoas podem sair se intitulando, ainda mais quando se trata de um transtorno complexo e raro como o TDI
Rodrigo Martins Leite
Para Leite, o conteúdo na internet deve, sobretudo, motivar a busca por um tratamento.
Se o conteúdo desvia disso, considero que não é adequado. Se é apenas um conteúdo que faz com que alguém se identifique com um diagnóstico e até crie uma coisa identitária sobre ele, considero como negativo
Rodrigo Martins Leite
Além do TDI, outras condições como autismo, depressão, ansiedade também fazem parte das discussões on-line. Há, no entanto, um limite delicado entre o debate e o fetiche.
Há um fenômeno de viver as redes sociais com uma questão estética, de certa glamorização dos transtornos mentais, um fetichismo. As pessoas podem colocar isso como aspecto de destaque sendo que, por definição, o transtorno mental gera sofrimento, disfuncionalidade e desadaptação
Antonio Paulo Rinaldi Asciutti
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