'Traficante me ganhou com paçoca e tubaína': a jornada de um ex-dependente
Com brilho nos olhos, Julio Henrique Conceição, 46, apresenta a casa antes da entrevista começar. Conta os planos para aprimorar o espaço onde funciona o mais novo projeto criado por ele, o "Eu Quero Paz".
Nascido em Ibiporã, no Paraná, mudou-se para Cidade Tiradentes, na zona leste de São Paulo, ainda pequeno. Hoje, é pai de quatro filhos e trabalha como terapeuta integral sistêmico e mentor em dependência química. Porém, no passado, vivenciou episódios que mudaram sua vida. Conheça a história dele:
Infância conturbada
"Quando estava na quarta série, meu pai saiu para trabalhar e não voltou mais. Não entendi o porquê, me revoltei. Comecei a dar problema na escola e acabei sendo expulso. Via minhas irmãs passando fome, chorando, e o que tinha na minha rua era o tráfico de drogas. Nessa época, minha mãe nos deixava alguns meses sozinhos, então, assumíamos a responsabilidade da casa. Com 9 anos, comecei a fazer algumas correrias, como levar drogas em alguns lugares. Fiquei até os 19 no crime em São Paulo."
Porta de entrada
"Estava em um bar perto de casa e queria jogar fliperama, mas não tinha dinheiro. Os caras também ficavam lá olhando o movimento e um deles me perguntou se queria jogar e comer. Aceitei. O traficante me ganhou com uma paçoquinha e uma tubaína. Ele entrou na configuração do meu pai. Deixava lavar o carro, dar uma volta no quarteirão, pegar as motos, que sempre fui apaixonado. Aos 11 anos, já dirigia na quebrada. Foi nesse mundo onde vi a oportunidade de sair daquela realidade e ajudar minhas irmãs."
Crimes e drogas
"Quando consegui o meu primeiro revólver, mostrei para um finado parceiro e disse chorando que a partir daquele dia não passaria mais fome. Pratiquei alguns crimes até ser preso, em 1994. Na fuga de um assalto, tomei dois tiros e fiquei internado por três dias. Os policiais me zoavam. Sorte que o médico era muito profissional. Enquanto o Brasil ganhou o tetra, ganhei cinco anos e seis meses de prisão. Minha ficha caiu quando escutei o barulho das grades se fechando. Fiquei por um bom tempo. Depois, cavamos um túnel e fugi para a favela, na Vila Formosa, na zona leste de São Paulo. Não pude voltar para casa, a polícia estava atrás de mim.
No crime, você sobe, ganha dinheiro, mas assim que começa a cair, não para. Foi quando me afundei e iniciei o uso de drogas. O crack estava no auge em São Paulo. As vendas na favela durante a madrugada pareciam filas de mercado.
Soube que meu pai morava em Ibiporã, município da Região Metropolitana de Londrina, e vim. Não fui bem aceito. Tentei morar em Londrina com meus tios, mas não pude. Voltei para a casa do meu pai e dormia no caminhão dele. Comecei a trabalhar na pastelaria de um shopping de Londrina. Menti no currículo, porém, no dia da entrevista, expliquei qual era a minha real situação. Me deram uma chance e ainda arrumaram um advogado. Fui pasteleiro, subgerente e atuei em outras empresas. Conheci a minha ex-esposa, casamos e veio a minha primeira filha. Continuava usando droga, só que a família não sabia. Até que descobriram."
A internação
"O padre Cláudio Romano (pároco da Paróquia Nossa Senhora da Paz, em Ibiporã, na época) me ajudou a assumir que era dependente químico e me apresentou a Fazenda da Esperança [comunidade terapêutica criada em 1983 com unidades espalhadas por 24 países]. Antes de ir, não tinha mais o desejo de viver. Lembro do dia que cheguei na casa da minha ex-sogra e vi minha filha Luiza se escondendo atrás de um pilar. Foi aí que decidi sair dessa vida.
Em 11 de janeiro de 2005, me internei na unidade de Toledo (PR). Era um ambiente difícil. Arrumei minha mala umas 11 vezes, mas concluí. Foi o meu primeiro certificado."
Reinserção na sociedade
"Voltei para Ibiporã animado, só que tomei muita rasteira. Acredito que o processo mais difícil e doloroso é a reinserção. Enquanto passava por outros empregos, já fazia voluntariado. Criei grupos de apoio, projetos sociais, trabalhei no CREAS (Centro de Referência de Assistência Social) e fui co-fundador da Fazenda da Esperança de Ibiporã, em 2008. Até meu apelido virou Julio do Projeto. Daí em diante, não parei mais."
O Julio de hoje
"Durante um tempo, apenas existi. Hoje, vivo. Tenho o prazer de acordar, olhar o sol, tomar sorvete com meu filho mais novo. Escolhi uma vida mais saudável, cuido da minha espiritualidade. Estou em um processo de conhecimento pessoal. Nunca quis me considerar como referência. Agora me considero. Quero deixar um legado para, um dia, meus filhos falarem que têm orgulho do pai deles.
Já atendi mais de 1.500 jovens de vários lugares. Como viajo muito, passo nas fazendas e comunidades. Gosto de falar sobre a minha experiência e os pontos que deram certo na minha recuperação. Também corri atrás de estudo. Estou me especializando."
Aprendizados e ensinamentos
"A maior punição que você tem e carrega para a vida inteira são as escolhas que você faz. É plantio e colheita. Tenha responsabilidade sobre si mesmo. Se quiser se recuperar, aprenda a dizer não e busque ajuda. Perseverança é a chave. Para as famílias, só quem ama de verdade pode ver no outro aquilo que ele nem sabe que tem. Veja o que a pessoa é, não aquilo que ela está fazendo."
Saiba mais sobre a dependência química
O que é? Doença que ocorre quando as pessoas, após usarem drogas por um longo período, estabelecem uma relação de desprazer ao não usar e sentem falta. Isso vem acompanhado de um comprometimento social, psicológico, familiar, profissional, fisiológico, e traz outras comorbidades, como ansiedade, depressão e insônia.
Quais são os tratamentos? Existem alguns tipos, como o que busca a abstinência e a chamada redução de danos, que procura o uso menos nocivo para diminuir riscos. Porém, somente a parte médica não resolve. Psicoterapia, prática de esportes, boa alimentação, sono regulado, apoio familiar e de amigos também são importantes.
Quais são as complicações?
Alterações comportamentais, físicas, respiratórias e, principalmente, neurológicas;
Desenvolvimento de outras doenças;
Perda da autoestima;
Comprometimento da relação familiar;
Menor rendimento no trabalho;
Descontrole financeiro, entre outras.
O SUS oferece atendimento e acompanhamento para pessoas com qualquer tipo de dependência química, em qualquer idade. A APS (Atenção Primária à Saúde) é a porta de entrada em todos os municípios brasileiros. Além disso, conta com centros especializados para casos mais específicos.
Fonte: Arthur Guerra, psiquiatra especialista em dependência química com atuação na Clínica Elibré, professor titular de psicologia médica e psiquiatria da Faculdade de Medicina do ABC e coordenador do Núcleo de Álcool e Drogas do Hospital Sírio-Libanês; Ministério da Saúde.
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