Topo

Saúde

Sintomas, prevenção e tratamentos para uma vida melhor


'Apaguei e acordei como se estivesse em 2003. Não sabia que estava casada'

Edneide Melo ao lado da filha Natália, do marido Thiago e do cachorrinho Conan - Arquivo pessoal
Edneide Melo ao lado da filha Natália, do marido Thiago e do cachorrinho Conan Imagem: Arquivo pessoal

De VivaBem, em São Paulo

24/07/2023 04h00Atualizada em 24/07/2023 13h53

A gerente de RH Edneide Melo, 44, acordou de uma cirurgia sem se lembrar de onde estava nem do próprio marido, com quem era casada há anos. O ano era 2017 e ela tinha sofrido um AVC. Para ela, porém, o mundo ainda estava em 2003.

Com apoio da família e de uma psicóloga, Edneide começou a se readaptar à vida que havia construído na última década —e até hoje não sabe se um dia vai retomar os 14 anos de memória que se apagaram.

A VivaBem, ela, que já havia falado ao projeto Historias de Ter.a.pia., disse que resolveu contar sua história para apoiar outras pessoas que enfrentam problemas semelhantes.

"Em 2017, fiz uma cirurgia para tirar pólipos no nariz. Quando acordei no pós-operatório, sentia muita dor de cabeça. Parece que reclamei com a médica, mas não lembro. Tudo o que sei é o que me contaram.

A dor de cabeça persistiu até eu ir para o quarto. Meu marido, Thiago, chamou o suporte diversas vezes. Me medicaram até aparecer um neurologista, mudaram a medicação e apaguei.

Quando acordei [no mesmo dia], não lembrava mais de nada. Estranhei o ambiente e não reconhecia meu marido. Ele era uma pessoa de quem eu tinha vaga lembrança de um processo seletivo de que a gente participou.

Minha primeira reação foi perguntar: 'Bati o carro?'. Ele disse que não e explicou o que estava acontecendo.

Tive um surto, gritei, coloquei ele para fora do quarto. Dizia para ele não colocar a mão em mim, que ele era louco. Foi uma situação de terror. Olhava sem ter referência nenhuma sobre ele.

Eu tinha voltado para 2003. Estranhei o ambiente em que estava. Morava antes em São Paulo e, depois do meu casamento, vim para Santo André. Não reconhecia o hospital.

Pedi meu celular, que na época [em 2003] era um Nokia azul, com aquele jogo de cobrinha. Então me deram um telefone fino, em que conversava com a pessoa por imagem. Não sabia o que era aquilo. Fiquei assustada e disse que não era meu, mas acabei ligando para meus pais.

Quando eles entraram no quarto, estavam grisalhos e diferentes do que 14 anos atrás. Questionei por que estavam assim e eles sem saber o que estava acontecendo.

Um médico me fez algumas perguntas. Disseram que eu estava com uma alergia da anestesia geral, uma disfunção cognitiva pós-operatória, que meu organismo ia expelir e tudo ficaria bem.

Só que o Thiago não aceitou esse resultado e pediu para vir um neurologista. Fizeram uma angiorressonância, que estuda o sistema vascular, e veio o diagnóstico de que eu tinha sofrido um AVC isquêmico. E, em decorrência disso, teria fragmentado a memória.

Quando tive alta, a esperança era retomar a memória em 30 dias, mas já são 6 anos. Era uma mulher de 38 anos que voltou a ter 25. Tinha atitude de 25, estava casada com uma pessoa que não sabia quem era, com uma filha de 12 anos sem nenhuma memória da maternidade.

Exercia uma profissão que nem sabia por onde começar porque não era da minha área. Tive de conviver com pessoas que faziam parte do meu círculo social e eu não sabia quem eram.

'Queria ir para casa'

Tive várias crises de ansiedade. Me culpava porque as pessoas diziam: 'não é possível que ela não se lembra'. Mas eu não me lembrava de nada mesmo.

E, durante essa fase, ainda tive um segundo AVC, que atingiu a parte motora. Fiquei quase dois anos na reabilitação, mas os movimentos voltaram.

Não queria morar com o Thiago, e a casa onde eu morava, com meus pais, já não era mais deles. O médico disse que eu deveria ficar na minha casa, entender que essa era minha vida. Meus pais, então, foram para minha casa ficar comigo.

Quando entrei no apartamento, meu pai falou: 'Filha, essa é a sua casa'. Me desesperei tanto que ajoelhei no pé do meu pai, dizendo que não reconhecia nada.

Me doía ver as pessoas chegando e eu sem saber quem eram. As pessoas choravam e eu entrava em desespero.

Entrei em depressão e comecei a fazer terapia. Tinha de aprender a conviver com meu marido. Durante dois anos, ele acordava na esperança de eu me lembrar dele — o que não acontecia.

Muitos amigos o aconselharam a me largar. Eu ainda tinha surtos dizendo que não gostava dele, que não queria estar casada com ele. Mas ele sempre dizia que ficaria até o fim comigo.

E 99% da minha recuperação eu devo a ele e à Natália, minha filha.

A Natália tinha 12 anos quando tudo aconteceu. Ela viveu a adolescência com uma mãe que não se lembrava dela.

Uma coisa que me dói muito é que a primeira vez que a vi, virei o rosto. Disse que ela não tinha nada a ver comigo e que as pessoas estavam loucas de dizer que era minha filha.

Eu ainda nem sabia me comportar como mãe. Assistia a vídeos meus como mãe, mas não sentia nenhuma emoção.

Entendi que ela era minha filha na sua festa de 15 anos. O fato de vê-la ensaiar, conviver com amigos, dançar a valsa... entendi que minha família estava ali, embora eu não conhecesse nada deles.

Em uma das consultas médicas, me orientaram a ter um animal de apoio emocional. Então, veio o Conan [cachorro], em 2018. Ele é o meu equilíbrio.

Também tive problemas no trabalho. Em 2003, trabalhava com suporte técnico e informática. Quando me casei com o Thiago, fui para a área contábil. Tiveram paciência de me ensinar, explicar. Gente que eu ensinei e que, agora, estava me ensinando.

'Não encontrava a Hebe'

Conan - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Edneide ao lado do cachorro Conan
Imagem: Arquivo pessoal

Tinha perdido as referências. Uma vez, estávamos na mesa de jantar, falando sobre política, e disse brincado: 'Agora, o negócio é votar no Enéas [Carneiro, que foi deputado federal]'. Então descobri que ele já estava morto... há mais de dez anos.

Isso foi acontecendo várias vezes. Adorava assistir a Hebe Camargo. Fui procurá-la, mas não a encontrava na televisão. Então o Thiago disse que ela também tinha morrido.

E entrou outro problema — a dos familiares que já tinham morrido. Sofri o luto de novo, e de uma vez. Um amigo muito querido, por exemplo, teve um câncer e morreu. Quando o Thiago me deu a notícia, enlouqueci. Me contaram que fiquei ao lado dele, mas não me lembrava de nada.

Não nos atentamos, mas de 2003 para cá muita coisa mudou. A tecnologia avançou. Não sabia o que era WhatsApp, via as casas com design diferente. Para mim, era uma coisa meio futurista.

Comecei a ter medo de conversar com as pessoas e acabar soltando 'pérolas'. Isso ainda é algo que acontece, ainda me deparo com surpresas.

E a coisa que mais me incomoda é a desconfiança das pessoas. Cheguei a questionar minha psicóloga se posso estar fingindo que estou esquecida e ela me falou que ninguém poderia sustentar uma mentira por tanto tempo. Realmente não lembro das coisas.

'Me apaixonei'

Edneide - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Edneide conta que se apaixonou pelo marido durante o processo
Imagem: Arquivo pessoal

Já tentei fazer terapia de regressão, cirurgia espiritual, até ritual de ayahuasca — e minha memória não voltou. É uma sequela.

Tenho esperança de ter a memória de volta, especialmente pela maternidade, que é algo que me dói muito.

Me faz falta o sentimento de carregar aquele ser dentro de mim. Choro pela tristeza de não lembrar.

Ouvi dizer que era extremamente apaixonada pelo Thiago antes. Aprendi a amá-lo. Especialmente por ter tanto cuidado comigo. Existe maior prova de amor que essa? Ele foi resiliente por todos esses anos e me apaixonei de verdade. Ele diz que se casou por amor e que não vai abrir mão disso, mesmo que eu não lembre dele.

Foram 6 anos construindo um amor mais maduro — e em cima de sofrimento. Hoje, amo o Thiago de maneira mais concreta e madura. Não me reapaixonei por ele porque não lembro do outro amor. O que aconteceu é que eu me apaixonei por esse homem de coração tão bom.

Para o futuro, quero manter minha família, para seguirmos juntos. Minha família está unida na ausência, passando pelo luto de uma pessoa viva e é isso que não quero mais.

Quero cuidar deles também e ser uma referência para pessoas que tenham passado pela mesma coisa.

Espero que, quando leiam minha história, as pessoas tenham um momento de empatia. Não que tenham dó de mim. Isso aconteceu, infelizmente. Por muito tempo achei que era castigo divino, mas hoje entendo que só foi um acontecimento. Perdi várias referências, mas estou aqui e tenho oportunidade de viver muitas coisas ainda."

AVC e memória

De forma geral, o AVC (acidente vascular cerebral) é a interrupção do fluxo sanguíneo no cérebro, que provoca a morte de células na região atingida. Entre as sequelas, o paciente pode perder a memória a curto e longo prazo.

A memória envolve várias áreas cerebrais, mas as principais estão no sistema límbico, no qual os hipocampos são muito relevantes. Um AVC pode interromper a conexão entre as áreas e, assim, impedir o acesso às memórias ali registradas. Se uma memória não é acessível (como um arquivo que não é possível de se abrir no computador), é como se ela não existisse. Paulo Bertolucci, médico e professor em neurologia pela Unifesp

Muitas vezes, há possibilidade de recuperação de parte da memória por meio de reabilitação.

O AVC ocorre de forma súbita. Aos primeiros sintomas é necessário procurar atendimento, para diagnóstico e tratamento rápido. Alterações motoras súbitas, como fraqueza muscular, incapacidade de movimentar parte do corpo e dormência na face, braço ou perna estão entre os sinais mais marcantes do AVC.