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Equilíbrio

Cuidar da mente para uma vida mais harmônica


Médicos diziam que ela morreria aos 6 meses por doença rara, mas hoje é mãe

Juliene tem epidermólise bolhosa, doença rara que causa bolhas na pele devido a um defeito na produção do colágeno - Divulgação/Debra Brasil
Juliene tem epidermólise bolhosa, doença rara que causa bolhas na pele devido a um defeito na produção do colágeno Imagem: Divulgação/Debra Brasil

Do VivaBem, em São Paulo

29/07/2023 04h00

A fonoaudióloga Juliene Matos Fernandes, 33, tem uma doença rara que causa bolhas no corpo. Ela nasceu sem a pele das pernas, o que fez os médicos acreditarem ser algo muito grave, e ficou na incubadora até os dois meses. Foi quando recebeu o diagnóstico: epidermólise bolhosa, uma doença pouco conhecida na época e com prognóstico ruim.

"Achavam que eu não passaria dos seis meses, então me mandaram para casa para morrer", diz Juliene.

Após ter alta, com poucos meses de vida, Juliene conseguiu atendimento em um hospital infantil na capital paulista, onde foi tratada até a adolescência. Quando criança, achava ser a única pessoa do mundo com a doença. "Eu fui saber que existiam outras pessoas com a doença quando eu tinha 9 anos. Até então, eu achava que eu era um 'ET' sozinho."

Nessa época, conta, já convivia com o preconceito. "Eu sofri bastante, tiveram momentos que eu não queria mais ir para a escola, mas eu sou filha de empregada doméstica e de porteiro, e meus pais falavam que eu não tinha como fazer outra coisa se não estudasse."

O que é a epidermólise bolhosa

Conhecida pela sigla EB, a doença é caracterizada por um defeito na produção de colágeno. A pele fica frágil e qualquer movimento pode causar ferimentos, em um processo que perdura a vida toda. A condição tem causa genética ou é adquirida —essa última, de relação autoimune.

Juliene tem a EB simples, que afeta a camada mais superficial da pele (epiderme). Esse tipo da doença causa bolhas nos pés e nas mãos, principalmente.

Mas as feridas podem nascer em outros lugares, a depender dos atritos nas áreas.

Em quadros mais graves, a EB gera lesões internas nas mucosas e nos tecidos que revestem os ossos, causando desconforto para engolir e se alimentar e limitando a função dos membros, por exemplo.

Cerca de 1.600 pessoas no país têm a doença, segundo a Debra Brasil, associação de suporte para pessoas com EB.

Medo de morrer e dor todos os dias

Os avanços no cuidado da doença são recentes. "Acreditava-se que as pessoas com EB morreriam cedo, então não se investia nelas", diz Juliene. "A lei diz que pessoas não têm preço, mas isso não é verdade. E as pessoas com doenças raras têm um preço dobrado."

Sem muito conhecimento sobre a doença, Juliene passou boa parte da vida achando que morreria a qualquer momento. Esse era um alerta feito por alguns médicos, inclusive. Ela se sentia uma bomba relógio.

Sendo sincera, toda pessoa com EB vive com medo da morte, porque nossos amigos com a doença morrem, e os filhos deles morrem. As primeiras pessoas com EB que eu conheci não estão mais aqui. A gente fica com aquela sensação: quem será o próximo? É quase uma fila que a gente não sabe a senha. Com terapia e apoio, eu entendi que todos nós vamos passar por essa fila, não só quem tem a doença. Juliene Matos Fernandes

Outro ponto importante é que as pessoas com EB convivem com a dor crônica. O desconforto, somado aos custos do tratamento de alto valor e ao receio sobre a expectativa de vida, são as principais preocupações de quem tem a doença, explica a psicóloga Tauani Vieira. Por isso, diretrizes preconizam o tratamento multidisciplinar, incluindo o acompanhamento psicológico.

Tauani, 28, tem epidermólise bolhosa distrófica recessiva, uma das formas que mais deixa sequelas ao causar lesões em camadas mais profundas da pele. Ela própria convive com ansiedade e depressão, e faz terapia desde pequena. "Os cuidados não têm que ser só para a pele. É preciso cuidado mental, tão relevante quanto os outros", defende.

Fazer terapia desde a infância foi fundamental no processo de aceitação e para me permitir viver, querer fazer as coisas. Tauani Vieira, psicóloga com epidermólise bolhosa

Juliene acreditava não poder ter filhos, mas foi mãe na adolescência

A adolescência foi difícil para Juliene, impulsionando inseguranças em um momento em que já é natural buscar a aceitação dos outros. "Nessa fase, a gente quer muito que os outros nos validem, e essa busca é uma dor. Você fica muito dependente se o outro vai te aceitar com as lesões, com o preconceito."

Aos 17 anos, descobriu estar grávida. Num primeiro momento, recebeu a notícia com choque, pois acreditava não poder ser mãe por conta da EB. Sem educação sexual, engravidou na primeira vez. "E ser mãe adolescente entra de novo na questão de autoaceitação", conta.

A gravidez foi marcada pelas incertezas de ser uma gestante com doença rara. Chegou a ouvir de médicos que ela e a filha morreriam no parto, ou que a criança já nasceria morta.

Eu achei que ia morrer no parto, então eu me despedi da família toda, porque todo mundo também achou que eu fosse morrer. Juliene Matos Fernandes

"No parto, ninguém sabia de nada. Estava todo mundo na tentativa e no erro. E não é muito diferente hoje, só para adiantar. Sabemos que mulheres com EB engravidam e ouvem coisas desde 'que absurdo' até 'você deveria ser castrada para não alimentar a doença em outras pessoas'", diz Juliene.

Juliene Matos Fernandes - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Juliene e a filha, Renara, hoje com 14 anos e que também tem epidermólise bolhosa
Imagem: Arquivo pessoal

Renara nasceu após 12 horas de trabalho, já com lesões da EB nas mãos e nos pés. Testes posteriores indicaram que ela tinha o tipo simples generalizado, que também causa bolhas na epiderme, mas atinge o corpo todo.

A doença impediu Juliene de amamentar a filha, o que foi uma frustração para ela. A menina teve bolhas na boca, e a mãe, nos seios. "Existe uma cobrança para amamentar, dizem que isso vai tornar a maternidade completa. E aí fiquei nesse limbo procurando a maternidade completa, que não aconteceu, pelo menos não do jeito que eu queria."

Quando Renara nasceu, há 14 anos, o conhecimento sobre a doença já era maior, e o atendimento foi mais estruturado do que o de Juliene. A menina foi encaminhada para um ambulatório focado em doenças genéticas da pele, em São Paulo, onde ela se trata até hoje.

Luto materno e culpa

Quando a menina tinha 7 anos, Juliene e o então marido decidiram ter outro filho. Foi uma gravidez planejada e eles consultaram médicos para entender os riscos da criança também ter EB. "Um deles disse que tudo certo eu engravidar, porque um raio não cairia duas vezes na mesma casa. Ele só esqueceu da genética."

Juliene engravidou de um menino, chamado Miguel. A gravidez foi tranquila, e a família estava feliz. Tudo correu bem até o parto —descrito por ela como um trauma. A equipe do hospital não tinha conhecimento sobre a epidermólise bolhosa e ignorou a possibilidade de o bebê nascer com a doença.

Na hora que o Miguel nasceu, a médica levantou ele muito alto e começou a gritar 'o que é isso, o que esse menino tem?'. Eu lembro que falei que era epidermólise bolhosa, mas estava perdendo sangue porque me machucaram bastante e desmaiei. Juliane Matos Fernandes

Juliene Matos Fernandes - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Juliene e a filha fizeram ensaio durante a gestação do caçula Miguel
Imagem: Arquivo pessoal

Juliene lembra de pedir para não colocarem o menino na incubadora, pois o procedimento piora as lesões e prejudica a pele da criança. Mas foi o que fizeram. O bebê era grande para o equipamento, e o atrito constante fez com que ele machucasse muito as mãos e os pés. Isso causou queimaduras misturadas às lesões da doença.

Mesmo também bastante machucada após negligências no parto, Juliene implorou para tirarem seu filho da incubadora, mas não foi ouvida. Ela conseguiu ajuda externa, de um médico conhecido, que pediu para dermatologistas irem até o hospital analisarem a situação. Eles apontaram vários erros, e o menino ficou sob observação por mais três dias até receber alta.

Miguel foi para casa e ficou comigo por quatro dias, até que teve uma parada cardíaca e faleceu. Quando ele morreu, algumas pessoas só faltaram me falar 'bem feito, você já devia imaginar que seria assim'. A gente se sente culpada. Juliane Matos Fernandes

Incentivo para ajudar famílias

Juliene Matos Fernandes - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Juliene é técnica em enfermagem e fonoaudióloga. Hoje, ela atende crianças com transtorno do espectro autista
Imagem: Arquivo pessoal

O luto de Juliene é permanente. Perder um filho causa uma dor que diminui, mas não desaparece, explica. "A gente não supera, e sim suporta e ressignifica. Eu tentei ressignificar evitando que isso seja uma realidade mais comum do que tem sido", afirma.

Após a morte do filho, ela fez um desabafo nas redes sociais. A publicação viralizou e Juliene foi chamada para falar na Câmara dos Deputados, em Brasília. Depois disso, decidiu se engajar na suporte às famílias com EB e chegou à Debra.

"Hoje, eu sou vice-presidente, mas esse trabalho só fez sentido depois de eu perder o Miguel", diz. "Desde então, descobrimos crianças que faziam curativo com folha de bananeira, com cortina da sala, mães que lavavam o curativo e colocavam no varal para usar de novo. Isso me moveu e tem me movido a fazer diferente."

Quando você perde um bebê, você perde mais do que ele. Você perde muitas coisas, inclusive os sonhos: de ser mãe, do que idealizou para aquela família. Meu casamento acabou muito por conta da perda do Miguel. Juliane Matos Fernandes

Quando vale cada bolha?

O ativismo virou também uma forma de inspirar a filha a fazer o quiser. "Ela me vê muito como um espelho. Hoje a gente fala sobre inclusão, suporte, coisa que antigamente não existia." Principalmente com o apoio da terapia, Juliene aprendeu a não se limitar pela EB. Conta que a única coisa que nunca conseguiu fazer foi usar salto alto. De resto, não se prende às limitações: dirige, fez faculdade, trabalha, viaja.

Ela também aprende muito com a coragem da filha, que a inspira de volta. Tempos atrás, por exemplo, notou que Reinara chegava cansada em casa e questionou o motivo na escola. O professor disse que ela pedia para participar das aulas de educação física de uma forma adaptada, pois não queria ficar longe dos amigos. "Por exemplo, ele passava a corda por ela, aí ela passava por cima e achava que tinha pulado", conta. Isso era suficiente para a garota se sentir integrada.

Meses depois, Reinara pediu um skate, mas Juliene foi categórica em não querer dar. Uma amiga, porém, comprou um de presente para a menina. "O que era andar de skate para ela? Subir segurando em algum lugar e pronto. Ela queria viver a experiência dentro da limitação."

Uma vez ela falou uma frase que nunca esqueci: 'Eu vou ter bolha de qualquer jeito, então eu prefiro ter bolha por brincar'. O custo-benefício da bolha é de quando ela brinca. E eu levei isso para minha vida. Eu vou ter bolha no pé de qualquer jeito, mas eu prefiro ter bolha tentando realizar aquilo que eu quero. Juliane Matos Fernandes

Fontes: Ana Lísia Giudice, dermatologista, atua no Hospital Universitário Professor Edgard Santos, em Salvador (BA), e é membro da SBD (Sociedade Brasileira de Dermatologia); Elaine Godoy, enfermeira estomaterapeuta e coordenadora clínica Latam da Mölnlycke.