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Julia fez transição de gênero aos 49: 'Um momento muito revolucionário'

Julia Kaddis se nomeou trans na adolescência, mas desde a infância se entende como uma pessoa feminina - Arquivo pessoal
Julia Kaddis se nomeou trans na adolescência, mas desde a infância se entende como uma pessoa feminina Imagem: Arquivo pessoal

Do VivaBem, em São Paulo

09/08/2023 04h00

A psicóloga Julia Kaddis, 55, se identificava com o gênero feminino desde a infância. Na adolescência, entendeu ser uma pessoa transexual. Mas, até os 49 anos, a transição de gênero nunca foi uma opção, pelas responsabilidades familiares e profissionais. "Não é simples mudar estruturas, mesmo onde há afeto", diz.

Chega um momento que você começa a se perguntar: afinal, eu existo para quê? E as pessoas fazem mudanças muito radicais na segunda metade da vida. Julia Kaddis, durante palestra no Simpósio de Cuidados em Saúde para Pessoas Trans, realizado no final de julho pelo Hospital Sírio-Libanês

Ao VivaBem, Julia conta a jornada até fazer a transição e os desafios de realizar o processo nessa idade.

"Desde os meus 4, 5 anos, tenho a lembrança de me entender como essa pessoa feminina num corpo masculino e vivendo um papel social de menino.

É claro que não tinha consciência dos conceitos de identidade de gênero, mas sabia que estava muito identificada com o universo feminino nas brincadeiras, nas roupas e nos comportamentos que observava nas minhas primas.

Já na adolescência, ao fazer a primeira comunhão, falei para o padre que não entendia por que Deus tinha me feito dessa forma. Passei anos buscando compreender esse paradoxo em várias filosofias e religiões. Você cria um senso de culpa, pensa que Deus tá te castigando.

Foi na adolescência que tive contato com o termo e me entendi trans. Nomeei nessa época, mesmo tendo a noção desde a infância.

Mente feminina em um corpo masculino

Eu ainda vivia o sentimento de dissonância entre a minha mente e o corpo que tinha quando criança, mas percebi que ia ter que conviver com isso. E, como tinha outras fontes de interesse, acabei canalizando. Meu refúgio era a música e passava muitas horas do dia tocando. Toquei em orquestra e tive a vida muito corrida de estudar, tocar e conviver com outras pessoas.

Só que, no fim das contas, sabemos que a adolescência é muito mais difícil para quem não pode se apoiar no senso de igualdade e ir para o mundo, ter a autonomia pra viver a sexualidade que começa a ganhar forma. Por isso, eu não me sentia inteira.

Ilustração representando pessoa trans, transgênero, transexualidade - iStock - iStock
A disforia de gênero, vivida por Julia, é o sofrimento de não se sentir adaptada ao sexo biológico
Imagem: iStock

Sentia que parte de mim não estava pronta para viver, porque não conseguia sair da infância. O mais seguro para mim, como trans, era a infância, já que não se exigia tanto a separação entre meninos e meninas. Com as mudanças típicas da adolescência, o meu corpo não acompanhava o meu pensamento.

Meu corpo não tinha espaço para existir. Ele convivia com as pessoas, mas com uma personalidade que eu criava. Era uma atitude construída. E eu sonhava o que não dava pra compartilhar com os outros.

Eu via a Roberta Close, a Rogéria, e era motivador, mas eu pertencia a uma família muito tradicional e sabia que seria escandaloso transicionar. Um desapontamento grande, que não teria coragem de causar a eles.

Vista como um homem gay

Sem eu cogitar a transição de gênero, abriu-se caminho para uma vivência homoafetiva. Afinal, eu tinha necessidade dessa troca. As pessoas me viam como um homem gay delicado, e apenas alguns amigos sabiam que eu tinha a identidade de gênero feminina.

Era esquisito ser olhada como um homem, desejada como um homem. As situações são mais suportáveis se são superficiais, mas quando há vivência íntima, não há como sustentar o papel. Você tá na intimidade e precisa lembrar de se comportar como um menino.

Eu não tinha muita vivência afetiva sexual, já que não era um homem gay. Era difícil viver a sexualidade de onde eu estava, você fica mais assexuada. Sempre tive vínculos profundos no amor fraterno, mas nunca tive muitas possibilidades de vivê-los no amor romântico.

Por mais que tivesse um espaço para expressar a natureza feminina, eu vivia um papel criado para corresponder a expectativa do outro. Aí você vai se perdendo de quem é. E quando se acostuma com essa experiência parcial, as realizações também são parciais, assim como o significado da vida.

Ilustração representando pessoa trans, transgênero, transexual - iStock - iStock
Julia tinha vínculos profundos no amor fraterno, mas nunca muitas possibilidades de vivê-los no amor romântico
Imagem: iStock

Interesse pela transição na vida adulta

Me interessava pela música, mas meu pai disse que não era profissão. Então quis fazer psicologia, pelo desejo de entender mais sobre a psique. Na faculdade, estudando gênero, conheci grupos de pesquisa sobre transexualidade no Hospital das Clínicas, em São Paulo.

Entendi que podia transicionar, mas achei que seria radical. O processo no Brasil ainda era bastante novo. Fora o enfrentamento à pressão. Eu precisaria ter força, certeza e apoios que eu não tinha.

Nem a terapia dava esse suporte. Lá, essa dissonância de gênero era vista como algo distorcido. Na visão da época, eu tinha que aprender a viver com o meu corpo. Eu deveria adaptar a psique ao corpo, e não mudá-lo, deixar o feminino ser secundário.

Fui fazer mestrado na Inglaterra, dos 26 aos 30 anos, e tive a chance de fazer a transição, mas não fiz. Teria que passar mais tempo e eu queria voltar pro Brasil. Também faltou coragem, mais uma vez. Tinha o apego à família muito religiosa, que ainda não sabia.

Quando eu voltei, investi muito na profissão. Isso me consumia, e a sexualidade foi ficando para um segundo plano, esperando uma oportunidade. Me acostumei a um lugar mais impessoal, da pessoa assexuada, que tinha um monte de amigos, que as pessoas gostavam, que eu era chamada para ser paraninfa.

Com isso, já não via mais possibilidade de fazer a transição, porque também assumi responsabilidades na família, e os meus pais estavam envelhecendo.

No fim, não é simples mudar estruturas, mesmo onde há afeto. Não me sentia uma pessoa frustrada. Eu sabia que todas as escolhas implicavam em uma perda, e fui seguindo, trabalhando bastante. Essa vida tinha sentido também, um valor louvável. Eu sentia que cumpria algo especial.

Quando tudo mudou: 'Tive um impulso muito forte'

Só que eu fiquei exausta, vivendo essa adaptação de ser generosa, estar disponível para as pessoas, a família, os pacientes. Eu precisava me alimentar de um lado mais humano e me dei conta de que negligenciava muito o corpo.

Sempre brinquei que é como se sentisse a vida só do coração para cima. E eu não sentia o meu corpo, meu desejo, a vontade de me relacionar. Ter noção de todos os corpos para o senso de totalidade é importante, e uma parte significativa ficou de lado. Aos 50 anos, eu já me sentia com 70. E tinha uma tendência à estafa, porque sentia que tinha uma pressão que eu segurava em mim.

saúde mental, ansiedade, depressão - iStock - iStock
Julia diz que sentiu um impulso muito forte para fazer a transição aos 49 anos
Imagem: iStock

Aos 49 anos, no processo de começar o doutorado, fui à palestra de um psiquiatra, em que ele atualizou os avanços da transição nas últimas décadas e tive um impulso muito forte, do fundo da alma. Senti uma força poderosa e falei: 'Agora eu consigo', porque coincidiu com outras mudanças da minha vida.

Eu não estava tão comprometida com demandas, estava me mudando do interior para a capital paulista, me desligando dos pacientes que tinha lá. E a minha preocupação sempre foi a consequência dessa transição, principalmente para a família e para os pacientes. Finalmente estava em um momento propício.

Ainda trabalhei o tema da transgeneridade no doutorado, o que despertou tudo junto. Era um momento muito revolucionário, que me deu essa força para atravessar os limites de adaptação.

Sem arrependimentos

Comecei a transição de dentro para fora: estudando e fazendo terapia. Eu não tive dúvida em nenhum momento, mas era difícil comunicar, porque as pessoas têm respostas muito diferentes. Algumas com olhar de empatia, outras de decepção. Era desconfortável e me sentia muito desnuda, frágil.

Me apagava a minha verdade, que era o lugar que me restaurava. E, quanto mais me sentia íntegra e verdadeira, mais fácil era transmitir para as pessoas o sentimento de tranquilidade quando elas pensavam: 'A Julia tá louca, fazendo isso com essa idade'.

Falei para a família e aqueles amigos que não sabiam em doses homeopáticas. Primeiro contei que sou uma pessoa trans, mas não que faria a transição. A família ficou muito assustada, e a maior parte se afastou depois que soube da mudança de gênero. Os mais próximos foram aprendendo a lidar e a entender.

Em nome do amor que as pessoas têm por você, elas refratam, se preocupam. Acham que você tá tomada por um impulso, que não tem noção da consequência das suas escolhas. E na cabeça delas, a adaptação que fiz a vida toda foi positiva. Afinal, eu tinha amigos e sucesso na profissão.

Achavam que trocar isso por arriscar ter uma vida nova já era indicativo de eu não estar na melhor condição psicológica. Mas eu estava e é justamente por isso que tinha força para enfrentar os desconfortos.

Depois da transição, eu escutei muito 'Eu tenho saudades de você antes'. E eu pergunto: 'Mas você tem saudade minhas sofrendo?'.

Também havia os riscos das cirurgias. Meu corpo sempre foi negligenciado. Eu existia muito na mente, mas sempre fui relapsa em cuidar do corpo, nunca pratiquei esportes, por exemplo. Meu corpo é frágil, e foi como fazer reforma em uma casa frágil.

Não foi um processo fácil. Me sentia muito fraca, fiquei anêmica, mas nem por isso me arrependo. Para eu chegar onde queria, ter um senso de unidade, me reconectar com tudo que me compõe, eu escolhi essas intervenções. Fui descobrindo fragilidades à medida que meu corpo teve que suportar tudo isso. E ele suportou.

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Segundo Julia, não foi um processo fácil, mas seu corpo suportou
Imagem: iStock

Um novo corpo

Na primeira fase da transição, deixei o cabelo crescer e fiz laser no corpo todo para eliminar os pelos. Depois, fiz a hormonização [a terapia hormonal para as pessoas trans serem reconhecidas nos limites do gênero com o qual se identificam], que tem um tempo para causar mudanças.

Foi muito interessante observar como é viver no ambiente do estrogênio [o hormônio sexual feminino] pela primeira vez na vida. Ele estimula mais as emoções, a gente tem o sentimento da nossa personalidade, só que com mais cor. Se você é sensível, chora mais. Também suaviza a pele, e a gordura se distribui em lugares diferentes, mas depende de cada organismo e idade.

Mesmo com um tempo de hormonização, ainda vivia no papel de gênero masculino. As pessoas me tratavam no masculino, sabendo da minha identidade, sabendo que estava em transição.

Ainda me apresentava como homem até fazer a cirurgia das mamas e a feminilização da face. Aí me senti mais segura para ocupar o papel social do gênero feminino e me apresentar como mulher.

Também passei a atender os pacientes como uma mulher. Já tinha comunicado eles desde que as mudanças físicas ficaram mais evidentes. Ouvi de alguns que enganei eles, pois queriam se consultar com um homem e eu era uma mulher. Uns escolheram não continuar, outros ficaram, e novos chegaram sabendo que eu estava em transição. Quando terminei as mudanças, comuniquei para a família que passaria a viver em um novo papel.

Hoje, vivo plenamente e me sinto muito adaptada num papel de gênero feminino, me sinto integrada com o meu corpo, às minhas relações.

Tem pessoas que se afastaram, são as consequências das nossas escolhas, mas eu me sinto segura, coerente e mais inteira. Contente e satisfeita, mesmo com todas as vulnerabilidades que esse processo gerou.