Hormônios maternos podem afetar controle da fome e saciedade no feto
O laboratório do fisiologista José Donato Junior, do ICB-USP (Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo), abriga um "hotel de ratinhos" com uma impressionante diversidade de animais. Ao todo, ele e sua equipe acompanham de perto 1.200 roedores de mais de 40 linhagens e medem os hábitos e as rotinas de cada um deles.
Entre todos os grupos, um chama a atenção: o dos camundongos gordos. Não é por acaso nem por conta de dietas especiais que esses animais ficam com o triplo do peso de um camundongo normal.
Os roedores obesos têm uma alteração genética que os impede de produzir um hormônio que sinaliza para o cérebro a hora de parar de comer. Sem esse hormônio que induz à saciedade, eles ingerem mais alimento do que deveriam e engordam.
O efeito produzido por essa mutação simula um fenômeno que começou a ser mais bem compreendido nos últimos anos e pode explicar, ao menos em parte, por que alguns grupos de roedores —e talvez de seres humanos— têm uma propensão maior a desenvolver obesidade e diabetes: a programação metabólica.
O conceito indica que o ambiente ao qual os filhotes são expostos durante a gestação e pouco após o nascimento influencia o desenvolvimento de certas áreas cerebrais, como as responsáveis pelo controle da fome e da saciedade, e favorecem o surgimento de doenças depois de adultos.
Em um artigo de revisão publicado em abril na revista Nature Reviews Endocrinology, Donato analisou 161 trabalhos sobre o assunto e consolidou as evidências de como esse fenômeno está relacionado ao desenvolvimento de obesidade e diabetes.
A busca pelo entendimento desse conceito é importante porque as doenças cardiovasculares, que têm obesidade e diabetes como fatores de risco, são as principais causas de morte no mundo. José Donato Junior, fisiologista
Como ocorre?
Esses estudos, que incluem dados de experimentos com roedores e observações em seres humanos, indicam que, ao menos no caso do diabetes e da obesidade, a programação metabólica se dá por meio da liberação pelo organismo materno de um grupo de compostos químicos chamados adipocinas.
Produzidas pelas células do tecido adiposo, as adipocinas funcionam como hormônios.
Por meio do sangue, elas chegam ao cérebro do feto em gestação e influenciam a formação das áreas ligadas à regulação da fome, da saciedade e do gasto energético.
Após o nascimento, continuam a modular a maturação dessas áreas cerebrais e de outros tecidos do corpo ao serem transferidas para os filhos via leite materno ou produzidas pelas próprios recém-nascidos.
Nas duas situações, elas podem atuar tanto no nível celular quanto no molecular. No primeiro, as adipocinas modificam as conexões entre as células, alterando a estrutura dos circuitos cerebrais.
No segundo, por mecanismos epigenéticos, ativam ou desligam genes importantes para o funcionamento dessas células.
"Doenças metabólicas também podem ser causadas por marcas epigenéticas, que se formam ao longo da vida e são passadas de geração para geração", comenta a bióloga Patrícia Boer, pesquisadora da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e presidente da DOHaD Brasil (Origens Desenvolvimentistas da Saúde e da Doença).
Das quase dez adipocinas já identificadas, duas —a leptina e a adiponectina— sabidamente desempenham um papel essencial na programação metabólica que pode ocasionar obesidade e diabetes.
Identificada em 1994, a leptina é um dos hormônios que regulam a fome e a saciedade nos seres humanos a partir da infância. Ela sinaliza para o cérebro quando o corpo já ingeriu alimentos o suficiente e está pronto para gastar a energia que acumulou.
Curiosamente, pessoas obesas produzem níveis mais altos de leptina. Isso acontece porque o cérebro perde a sensibilidade à ação desse hormônio —é a chamada resistência à leptina.
Como consequência, o obeso come mais do que deveria e gasta menos a energia armazenada, criando um estoque que se transforma em gordura. É algo bastante similar ao que acontece com a insulina em casos de diabetes tipo 2.
Durante o desenvolvimento do feto, no entanto, esse hormônio age de duas formas:
Quando a gestante é obesa, seu organismo produz muita leptina, que chega em níveis elevados ao feto. Expostas a muita leptina, as regiões cerebrais que deveriam perceber a presença desse hormônio se constituem de maneira insensível a ele. Em princípio, esse organismo estaria programado para ter resistência à leptina e, consequentemente, estocar mais energia na forma de gordura e potencialmente desenvolver doenças metabólicas, como obesidade e diabetes.
Já os filhos de mães com peso inferior ao ideal são menos expostos à leptina na gestação e seu cérebro não aprende a identificar a ação do hormônio. É como se esse hormônio não existisse para eles, assim como acontece com o camundongo obeso do laboratório de Donato. Tanto os filhos de mães obesas quanto os filhos de mães mais magras do que o ideal têm a mesma propensão a se tornarem obesos e a ter diabetes ao longo da vida.
Marcas históricas
O que acontece com os roedores filhos de mães muito magras traz à memória da bioquímica Cristiane Matté, da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), um estudo de acompanhamento populacional de descendentes de gestantes holandesas que sofreram com a fome durante a invasão nazista em 1944.
O grupo coordenado pela epidemiologista Tessa Roseboom, da Universidade de Amsterdã, observou que a restrição alimentar das mães afetou de forma permanente a estrutura de órgãos dos filhos, que, depois de adultos, desenvolveram problemas renais, respiratórios, de saúde mental e metabólicos, especialmente obesidade.
Esse efeito passou de geração para geração, impactando a saúde pública do país por décadas, como relataram os pesquisadores em um artigo publicado em 2021 na revista BMJ Open.
"Mães que tiveram aporte nutricional extremamente restrito no terceiro trimestre da gestação geraram crianças com um fenótipo econômico", explica Matté, que é pesquisadora do Centro de Estudos em Programação Metabólica da UFRGS e membro da Associação DOHaD Brasil.
"Quando essas crianças nasceram, já tinha passado a guerra, mas o metabolismo delas estava programado para um ambiente de escassez e para aproveitar ao máximo os carboidratos, lipídios e proteínas a que tinham acesso. Cristiane Matté, bioquímica
O conceito de fenótipo econômico foi criado pelo epidemiologista inglês David Barker (1938-2013) depois de observar que crianças que nasciam com peso abaixo do desejável morriam mais tarde de doenças cardiovasculares causadas por outras doenças metabólicas.
Posteriormente, estudos com roedores mostraram que a exposição a baixos níveis de leptina na gestação ou logo após o nascimento, uma situação análoga à vivida por filhos de mães que passaram por privação alimentar severa, gera mudanças que favorecem o surgimento do diabetes e da obesidade na idade adulta.
O outro hormônio destacado por Donato no artigo da Nature Reviews Epidemiology é a adiponectina, que programa o metabolismo do feto de um jeito diferente.
Em vez de influenciar o desenvolvimento do cérebro, como a leptina, a adiponectina atua no acesso aos nutrientes e impacta o tamanho do bebê ao nascer. Ela aumenta a sensibilidade das células do fígado e dos músculos ao hormônio insulina, responsável pela utilização da glicose como fonte de energia.
Grávidas com diabetes geralmente têm baixos níveis de adiponectina no sangue e, consequentemente, altas concentrações de glicose.
Com mais nutrientes disponíveis, seus bebês nascem maiores que o esperado para a idade gestacional.
O oposto ocorre com as gestantes que passam fome. A taxa de adiponectina no sangue é elevada e a de glicose é baixa.
Com menos acesso a esse nutriente, o feto se desenvolve menos e o bebê nasce com peso inferior ao considerado saudável.
Em ambas as situações, no entanto, o desfecho é semelhante: há um aumento importante no risco de desenvolver obesidade, diabetes e doenças cardiovasculares na idade adulta.
Barker foi o primeiro a fazer essa associação —é a chamada hipótese de Barker— entre o tamanho ao nascer e o risco de desenvolver essas enfermidades.
"As alterações de crescimento fetal são importantes para aumentar ou diminuir o risco de doenças posteriormente", afirma Donato. Dados sobre tamanho ao nascer são de fácil acesso em vários países, o que permitiu mais pesquisas sobre essa relação.
Os experimentos feitos com roedores em laboratório, como o de Donato, ajudam a conhecer o que acontece no cérebro humano. "Sabemos que toda a fisiologia da leptina é idêntica em pessoas e em animais", conta o pesquisador.
Uma vantagem dos estudos com roedores é que a gestação de uma fêmea dura apenas 21 dias, o que permite observar em poucos dias ou semanas o que pode levar anos para acontecer em seres humanos.
Esse conhecimento pode ser útil para informar as pessoas de que doenças metabólicas durante a gestação podem ser tão prejudiciais ao feto quanto beber ou fumar.
Não é tão óbvio para a população e saber disso permite aos pais planejarem perder peso e controlar o diabetes antes de terem um filho. José Donato Junior, fisiologista
"É muito importante ter um rigor maior no acompanhamento do peso e da nutrição durante o pré-natal", afirma. No longo prazo, a expectativa é que os estudos possam inspirar novas terapias para prevenir que bebês se tornem adultos com doenças metabólicas.
Programação metabólica não é sentença
Embora possa explicar parte dos casos de obesidade e diabetes na vida adulta, a programação metabólica não deve ser vista como uma sentença definitiva sobre a saúde futura.
Essas doenças são multifatoriais. Podem ser causadas por influências externas, mas também por herança genética ou epigenética.
"Se as causas fossem exclusivamente genéticas, apenas 5% da população deveria ser obesa, por exemplo, mas temos muito mais que isso", observa o endocrinologista Lício Velloso, professor de medicina na Unicamp.
Acesso a alimentação de qualidade também influencia o surgimento de doenças metabólicas e deve ser incentivado por políticas públicas e por profissionais da saúde, defendem os pesquisadores, especialmente para gestantes.
Nem sempre, no entanto, a programação metabólica tem consequências negativas. "Em estudos com roedores, as fêmeas que realizaram exercícios com frequência na gravidez tiveram filhotes que praticavam mais atividade física também", conta Matté, da UFRGS. "Ou seja, exercitar-se pode deixar uma marca para a vida toda. Nesses casos, seria de uma 'programação metabólica do bem'."
Em humanos, os pesquisadores estimam que a programação metabólica pode acontecer até pelo menos o segundo ano de vida. "Os primeiros mil dias de desenvolvimento, que se iniciam na concepção e vão até cerca de 2 anos vida, são efetivamente o período de maior plasticidade e adaptação metabólica dos órgãos a influências do ambiente externo", explica a pesquisadora. "Tudo o que acontece nesse período impacta na saúde do indivíduo ao longo de toda a sua vida", conclui Matté.
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