Comportamentos sexuais durante sono podem ser transtorno; entenda sexsonia
Aviso
As cenas a seguir são baseadas em casos clínicos relatados na literatura científica ou pelas fontes.
Esta reportagem faz menção a violências sexuais, que podem ser gatilho para algumas pessoas. Se você for vítima, denuncie no número 180.
Cena 1
Um casal está dormindo junto. De madrugada, o homem se debruça sobre a mulher e insinua um início de relação sexual. O ato abrupto e desordenado, apesar dos olhos abertos, gera estranheza. A mulher repudia os movimentos e consegue virá-lo de volta para o outro lado. O homem volta a dormir e, no dia seguinte, não se lembra de nada.
Esse é um exemplo dos relatos de casos acerca da parassonia sexual —também chamada de sonambulismo sexual ou sexsonia. Trata-se de um distúrbio do sono em que a pessoa tem comportamentos sexuais enquanto dorme.
Os episódios inconscientes não ocorrem todas as noites e são caracterizados por algumas ações: vão de carícias, vocalização de frases de cunho sexual, gemidos e masturbação até a relação sexual em si e movimentos mais violentos.
O principal ponto é que a pessoa é incapaz de se lembrar do que fez. "Não se sabe neurobiologicamente o que acontece", diz Katie Almondes, psicóloga do sono e vice-coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psicobiologia da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte).
Estima-se que a condição representa 3,1% de todas as parassonias, transtornos que levam a comportamentos ou experiências indesejadas relacionados ao sono. Dos casos relatados na literatura científica, a maioria é de homens adultos mais jovens.
Não há uma explicação para a maior prevalência neles, mas as hipóteses são de que as mulheres reportam mais o comportamento anormal do parceiro e o fato de os homens serem "mais vigorosos" do ponto de vista neurobiológico, pela testosterona, indica Almondes.
Cena 2
O casal dorme. De repente, a mulher começa a se masturbar e vocaliza palavras de cunho sexual. O som é alto, as crianças no quarto ao lado podem ouvir. O marido estranha, porque foge do comportamento padrão dela. A cena é desagradável. Da mesma forma que começou, o ato inesperadamente para.
Os episódios começam e terminam de forma inesperada. Podem ser pontuais, como apenas carinhos no parceiro ou parceira, ou ter início, meio e fim, culminando no ato sexual com penetração. Pode durar de segundos a 40 minutos.
"É um ato involuntário", diz Monica Levy Andersen, doutora em psicobiologia e professora na Unifesp. Segundo ela, o quadro raro faz parte da característica do indivíduo e vai se manifestar em algum momento da vida.
Almondes complementa que se investiga componentes genéticos, mas ainda não é um ponto pacífico entre os pesquisadores. Até o momento, não há relatos de casos na adolescência, por exemplo.
Por ser uma condição ainda pouco conhecida —o primeiro relato na literatura médica é de 1986—, os cientistas não sabem por que ocorre, mas sabem que outros distúrbios do sono podem coexistir com a parassonia sexual, como sonambulismo, apneia do sono e terror noturno.
Além disso, há fatores que podem ser gatilho para os episódios:
- Cansaço;
- Fadiga;
- Privação de sono;
- Estresse;
- Uso de substâncias ilícitas;
- Consumo de bebida alcoólica.
Não significa que qualquer pessoa nessas condições vai ter parassonia sexual. Na verdade, elas podem propiciar ou agravar o quadro.
E quanto mais ela é exposta aos gatilhos, mais frequentes se tornam os episódios. Ainda que tenha uma vida tranquila, o distúrbio pode se manifestar em períodos mais espaçados.
O reconhecimento desse distúrbio do sono, bem como seu correto diagnóstico, é importante para iniciar o tratamento adequado e adotar medidas preventivas. Danos físicos a quem dorme com a pessoa, impactos psicológicos para si e família, além de problemas de relacionamento são algumas das implicações da parassonia sexual.
Sinais de alerta
Como a pessoa não se lembra do que fez durante o sono, os indícios de que há um problema variam:
- Ou é alertada por outra que dorme com ela (cônjuge, amigos, familiares);
- Ou identifica sinais no próprio corpo, como lesões nas partes íntimas e hematomas.
Relatos comuns englobam danos físicos, geralmente ao parceiro de cama, quando é o caso. Sozinhas, as pessoas podem se machucar e até sofrer fratura peniana, além de se sentirem cansadas ao acordar.
Entre casais, o comportamento é diferente de quando a pessoa acorda excitada para transar. "O ato sexual é desordenado, não tem coordenação nem prazer. Não é uma situação sexual engajada", explica Andersen.
"Quem acompanha sabe que tem padrão diferente do que corriqueiramente acontece", aponta Almondes. Ao identificar um comportamento irregular durante o sono acompanhado de amnésia, a especialista indica procurar um neurologista.
Ao presenciar um episódio de parassonia sexual, basta tentar acordar a pessoa ou sair de perto dela. Ela vai ficar desorientada, mas depois é preciso ter uma conversa sobre o episódio. Em casos diagnosticados, é importante manter portas e janelas fechadas para evitar que a pessoa saia de casa de forma inconsciente.
Tratando a parassonia sexual
Além de medicação em alguns casos —acompanhada por profissional do sono—, o mais importante é a pessoa evitar os gatilhos citados anteriormente.
Também é fundamental adotar medidas de higiene do sono:
- Ter regularidade na hora de dormir e acordar, mesmo aos finais de semana;
- Respeitar seu natural ciclo de vigília e sono. Se a pessoa acorda espontaneamente de manhã, não é recomendado ficar acordada até 1h. Se a pessoa é mais vespertina, não adianta se forçar a dormir às 22h;
- Não fazer uso de telas antes de dormir;
- Evitar bebidas alcoólicas e estimulantes antes do sono, como refrigerante de cola, alguns chás e cafeína.
Medidas relaxantes antes de pegar no sono são bem-vindas, como:
- Ouvir música;
- Meditar;
- Ter conversas tranquilas com uma pessoa;
- Praticar atividades físicas.
Todas essas medidas, medicamentosas ou não, ajudam a ter uma melhor qualidade de vida e de sono para reduzir a frequência dos episódios de parassonia sexual, mas nunca zerar.
Diagnóstico é clínico
Não há exames específicos para diagnosticar parassonia sexual. A polissonografia até pode ser feita, mas é raro captar a cena, porque os episódios não acontecem sempre que a pessoa dorme. Uma tentativa é fazer o exame por dias seguidos e, inclusive, em domicílio.
"O que se sabe dos poucos relatos de polissonografia é que a parassonia ocorre na fase de transição de uma fase do sono para outra", comenta Andersen.
A comprovação se faz, então:
- Pelo relato da pessoa;
- Histórico de vida dela, como hábitos diários e rotina de sono desde a infância;
- Relato de terceiros que eventualmente presenciaram o comportamento.
"A primeira recomendação é que a pessoa com diagnóstico seja proibida de dormir com menores de idade no mesmo ambiente", alerta Andersen. Deve-se evitar também dormir com um parceiro no mesmo quarto.
Cena 3
Um homem desce as escadas de casa. A filha e uma amiga dela dormem na sala, onde ele para e tenta um ato sexual com a visitante. Ele é acordado pela esposa e pela polícia.
Cena 4
Um grupo de amigos dorme na mesma casa. Um rapaz estupra uma jovem. Ele levanta, põe a roupa e se mexe como se fosse um aceno de despedida.
Casos de parassonia sexual podem ter implicações jurídicas e o assunto é extremamente delicado, envolve muitas camadas. Pegando como exemplo um estupro, há um crime, mas a pessoa que cometeu o ato não tinha consciência nem intenção de fazê-lo. Há também uma vítima com impactos psicoemocionais notórios.
O que fazer?
"Movimentos não dirigidos pela vontade humana são considerados uma não ação pelo Direito Penal, então não existe crime. Mesmo que se pratique o ato sexual contra o desejo do outro, se não for orientado pela vontade, a pessoa não pode ser responsabilizada criminalmente", explica Carlos Ribeiro Wehrs, advogado criminalista e professor da FGV Direito Rio.
No Direito Penal, uma ação é caracterizada por ter relevância social e ser orientada pela vontade humana.
Quando um esturpo acontece em meio a um episódio de parassonia sexual, a ação tem relevância social, até porque os critérios que definem o crime estarão preenchidos.
Mas quando se fala de vontade humana, teoricamente a vontade de praticar o ato naquele momento inexiste.
Wehrs compara com alguém que pratica algum ato em condição de sonambulismo ou, hipoteticamente, quando uma pessoa coloca uma arma na mão de outra contra a vontade dela e aperta o gatilho por ela. Não há intenção em ambos os casos.
Provas são necessárias
É de extrema importância uma avaliação rigorosa do caso e da pessoa suspeita. Até porque existem alegações de falsa parassonia sexual quando pessoas cometem violência propositalmente.
Há também casos em que a pessoa tem o distúrbio e é erroneamente considerada culpada. Outro relato vem do Reino Unido, onde Jade McCrossen-Nethercott teve um processo de estupro arquivado após alegarem que ela poderia ter o distúrbio, mas sem provas robustas.
"Esse distúrbio não pode ser banalizado para a pessoa se safar de crimes graves", pontua Wehrs. Mas a condição também precisa ser devidamente caracterizada e conhecida para não incorrer no erro de condenar alguém inocente.
Diante da alegação de distúrbio, o caso deve ser avaliado de forma diferente de quando a prática é voluntária. "O mais difícil é provar que a pessoa estava em situação de inconsciência no ato", aponta a advogada criminalista Fernanda Prates Fraga, professora da FGV Direito Rio.
Segundo ela, tem de haver duas provas: uma de que a pessoa sofre a condição e outra de que o ato foi cometido por conta do distúrbio.
Isso inclui perícia especializada, com neurologistas, psicólogos e psiquiatras, apresentação de histórico médico e de vida, além de possíveis testemunhas. "A polissonografia, que é o padrão ouro de diagnóstico, é fundamental para esses casos", diz Almondes. O problema é que, no Brasil, há poucos especialistas no assunto.
Reunidos os materiais, caberá ao juiz avaliar e determinar culpa ou inocência. Como em todo processo penal, a decisão é subjetiva. "O juiz decide com base na sua livre convicção, mas pode ou não se guiar no laudo da perícia", explica Wehrs.
"Se o juiz tem dúvida quanto à inocência, tem que absolver. Se tem opiniões médicas que atestem parassonia, o juiz deveria considerar isso; poderia até não considerar, mas seria algo estranho", avalia o advogado.
Avaliação é diferente para transtornos mentais
O artigo 26 do Código Penal descreve o conceito de pessoas inimputáveis por condição de saúde mental. Ou seja, a pessoa não pode ser considerada culpada se, no ato, era incapaz de compreender o que estava fazendo.
Nesses casos, entende-se que uma pessoa com transtorno mental tem controle de sua ação e pode agir de forma voluntária e consciente. Porém, ela não tem entendimento de que seu ato é criminoso.
É diferente do sonambulismo ou da parassonia sexual, em que, no momento da ação, não há consciência.
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