O que acontece no seu corpo quando você toma uma taça de vinho tinto ao dia
Cristina Almeida
Colaboração para VivaBem
22/08/2023 04h00
Pode ser difícil entender por que uma hora os cientistas dão um "joinha" para determinados alimentos e, tempos depois, apontam o polegar para baixo para sinalizar que ele não faz tão bem como se pensava. Um bom exemplo desse tipo de contradição é o consumo de álcool.
Enquanto a OMS declara que não existe dose segura para bebidas alcoólicas, um padrão alimentar reconhecido como patrimônio da humanidade —a dieta mediterrânea— integra o vinho tinto na lista de ingredientes benéficos para a saúde. Como assim?
Para não se perder na lógica das evidências científicas, saiba que, embora cada alimento possua suas características nutricionais, o papel dele deve ser compreendido dentro de um contexto que considera dieta e estilo de vida. É a partir da interação desses fatores que seus efeitos no organismo serão observados.
Assim como o Guia Alimentar para a População Brasileira, a dieta mediterrânea sugere o resgate do hábito de cozinhar pratos simples, comer em família ou com os amigos, além da prática de atividade física.
A predominância do consumo de alimentos de origem vegetal, in natura e minimamente processados, o baixo consumo de gorduras saturadas, carnes vermelhas e laticínios também são incentivados.
O vinho tinto compõe a proposta, mas tem dose e tempo certos. Embora o consumo possa ser diário, ele deve ser de baixo a moderado, e ainda precisa acontecer durante o almoço e o jantar, acompanhado de boa hidratação ao longo do dia.
Beber vinho, nesse quadro específico, tem sido associado à boa saúde em geral.
Por dentro de uma taça
O vinho é um produto derivado da fermentação do suco de uvas e de leveduras.
É constituído por uma variada concentração de água e compostos fenólicos, entre os quais se destacam os flavonoides (resveratrol, quercetina e tanino), além de álcool etílico, substância psicoativa capaz de causar dependência e impactar negativamente o organismo.
Uma dose padrão é definida pela quantidade de etanol puro contida nas bebidas alcoólicas.
O teor alcoólico do vinho pode variar de 8% a 15%.
1 taça, com 150 ml de vinho, contém 14 g de álcool puro. Consumo acima de 30 g já é considerado excessivo.
Ingestão baixa a moderada corresponde a 2 taças para homens e 1 taça para mulheres (cada taça com 200 ml a 250 ml).
No ano de 2021, o consumo de vinho no Brasil foi de 2,4 litros por pessoa.
O que você ganha com isso?
O uso do vinho para fins medicinais conta mais de 2.000 anos, mas ele passou a chamar a atenção dos cientistas a partir da década de 1990, quando se descreveu o efeito chamado de Paradoxo Francês.
Apesar do estilo de vida francês incluir o consumo de gorduras saturadas, tabagismo, altas taxas de colesterol e sedentarismo, quando a saúde desse grupo foi comparada à de outras nações, observou-se baixa incidência de doenças do coração —um benefício atribuído ao consumo de vinho tinto.
De lá para cá, já ficou estabelecido entre os cientistas que a combinação de compostos fenólicos presentes na bebida e o álcool possui propriedades anti-inflamatórias e antioxidantes que atuam como uma espécie de "assistente" das funções das células e dos tecidos do corpo.
O trabalho do vinho tinto seria facilitar a reparação de algum problema quando isso se faz necessário. Conheça algumas dessas ações:
- Redução do risco de morte por doenças cardiovasculares
- Proteção para alguns tipos de câncer
- Adiamento de perdas cognitivas
- Equilíbrio da microbiota
- Melhor controle das taxas de glicemia
Você dá uma força para as suas artérias
Até o momento, nenhuma pesquisa científica conseguiu provar uma relação de causa e efeito entre beber vinho e ter mais saúde do coração. Isso significa que não é o caso de usar essa desculpa para iniciar esse hábito.
Afinal, álcool em excesso faz mal ao coração, já que pode aumentar a pressão arterial e promover arritmias, entre outros problemas.
O que se sabe é que os polifenóis do vinho e o álcool, juntos, são protetores contra enfermidades cardiovasculares crônicas, em especial a doença arterial coronariana, quando são comparadas pessoas que não consomem esse tipo de bebida ou as que o fazem em excesso.
Os efeitos benéficos já observados pelos pesquisadores incluem a dilatação arterial, que facilita a circulação sanguínea, além da proteção contra a formação de coágulos (ação antiplaquetária), o que diminui o risco da formação de trombos que podem bloquear os vasos sanguíneos.
Soma-se a isso a ação anti-inflamatória, que facilitaria a inibição dos efeitos do colesterol ruim (LDL), ou seja, mais proteção contra a formação das famosas placas.
Tomar suco de uva poderia ter efeito semelhante. No entanto, parece que é a sinergia entre polifenois e álcool que são mais potentes nesse sentido.
Como os estudos relacionados prosseguem, a recomendação da Sociedade Brasileira de Cardiologia é: o melhor é não beber. Mas se deseja fazê-lo, que o consumo seja de baixo a moderado.
Você dificulta o aparecimento de alguns tumores
O padrão alimentar sugerido pela dieta mediterrânea prevê o consumo de variados tipos de alimentos de origem vegetal, incluindo as oleaginosas. Todos esses ingredientes garantem a ingestão de polifenóis de várias origens, e uma taça de vinho tinto durante as refeições agrega mais uma fonte desses compostos.
Dietas baseadas nesse perfil, quando comparadas a outros padrões alimentares, já foram relacionadas à redução de morte precoce por câncer na população em geral, e por todas as outras causas entre pessoas que sobreviveram ao câncer.
A explicação provável para isso é que esse tipo de dieta reduz o risco de ganhar peso, sobrepeso e obesidade, e o excesso de gordura corporal eleva o risco para, pelo menos, 12 tipos diferentes de câncer.
Dados publicados pelo European Journal of Nutrition também indicam menor risco para tumores colorretal, cabeça e pescoço, das vias respiratórias, gástrico, fígado e bexiga.
Você reduz a marcha do declínio cognitivo
Recentes revisões de estudos que observaram o consumo de vinho tinto e o declínio cognitivo têm concluído que há um possível efeito de proteção neurológica, independente da idade e do gênero.
A advertência dos especialistas é que esses achados também não autorizam aqueles que nunca bebem a começar a fazê-lo com o fim de adiar perdas cognitivas.
Não está totalmente claro para os cientistas como é que se dá esse benefício. As hipóteses se baseiam no fato de que o baixo consumo de álcool está associado à melhora das funções cardiovasculares, redução de eventos cardíacos e maior sobrevida em comparação a pessoas que não bebem ou as que bebem pesado.
Outra teoria aposta na combinação de polifenóis e álcool, que aumentaria os níveis de proteínas que regulam a sobrevivência dos neurônios e a plasticidade das sinapses.
Você colabora para a diversidade da microbiota
Recente revisão de estudos publicada pela revista científica Food Research International concluiu que existe um consenso de que os polifenóis derivados do vinho tinto e do suco de uva podem atuar na microbiota intestinal, contribuindo para a diversidade microbiana.
Uma pesquisa na qual participaram cientistas brasileiros também observou esse efeito. Foi identificada a predominância de micro-organismos dos gêneros Parasutterella, Ruminococcaceae, Bacteroides e Prevotella, considerados essenciais para a saúde geral do organismo, bem como a melhora em processos que evitam o estresse oxidativo que leva à formação de placas de gordura nas artérias.
A hipótese é que tais mudanças na microbiota poderiam beneficiar a saúde cardiovascular. Dados publicados pelo The American Journal of Clinical Nutrition.
Apesar de esses achados serem promissores, ainda não está claro qual é impacto disso na saúde.
Você observa que o nível da glicose está melhor
Estudos associando o consumo de vinho tinto e o diabetes do tipo 2 avançam, mas alguns deles sugerem que, dados os efeitos antioxidantes e anti-inflamatórios do resveratrol, observa-se melhor controle das taxas de glicose, o que auxiliaria na melhora do seu uso pelo corpo e também na secreção de insulina pelo pâncreas.
Como os resultados das pesquisas ainda variam, não está totalmente esclarecida a relação entre o consumo de álcool e o aparecimento do diabetes do tipo 2. No entanto, alguns deles apontam pelo benefício do consumo moderado para grupos determinados.
Esteja atento ao fato de que o beber exagerado e frequente pode ter como consequência o diabetes e o ganho de peso, além de prejuízos na sensibilidade à insulina, no metabolismo e fígado.
Quando o quadro de diabetes já está estabelecido, o consumo de bebidas alcoólicas requer cuidadoso monitoramento da glicose.
Excessos podem resultar na piora das taxas, especialmente quando isso ocorre fora das refeições, condição que pode levar à hipoglicemia em indivíduos que fazem uso de medicações hipoglicemiantes.
Na dúvida, fale com seu médico para saber se seu quadro de saúde permite que você tome vinho tinto diariamente.
O todo-poderoso resveratrol
Encontrado naturalmente no amendoim, nas uvas, no vinho tinto e em alguns tipos de berries, como o mirtilo e a cramberry, esse componente é classificado pelos especialistas como um tipo de polifenol, e é um dos mais estudados pelos cientistas porque ele também se associa à longevidade.
Entre os principais benefícios já documentados destacam-se:
- Ação anti-inflamatória
- Antioxidante
- Antimutagênico (controle das mutações das células cancerígenas)
- Antineuroinflamatório
- Neuroprotetor
- Controle de toxinas que levam ao déficit cognitivo
- Inibição do efeito do colesterol (LDL)
- Relaxamento das artérias (endotélio)
- Supressão da coagulação
- Proteção contra a formação de placas de gordura nas artérias (aterosclerose)
Na uva, a substância está presente nas cascas e sementes, mas a concentração dela variará a depender de fatores como a origem geográfica.
Vinhos tintos possuem maior concentração desse composto porque eles são produzidos com a fruta inteira, enquanto as casca e sementes são separadas na produção do vinho branco.
Não é para todos
Apesar dos possíveis efeitos benéficos, o vinho tem contraindicações. Ele não deve ser consumido pelos seguintes grupos:
- Gestantes e mulheres que desejam engravidar
- Mulheres que amamentam
- Crianças e adolescentes
- Pessoas que usam medicamentos de uso contínuo e que possam ter algum tipo de interação com o álcool (anti-inflamatórios, antidepressivos, ansiolíticos, etc.)
- Indivíduos que estejam seguindo um programa alimentar que requer restrição de calorias: cada grama de álcool fornece 7 kcal
Saiba identificar sinais de dependência
Quem faz uso nocivo do álcool geralmente começa a ter dificuldades em seus relacionamentos, no ambiente escolar, na vida social e também apresenta alterações na forma de pensar e sentir. Podem estar presentes as seguintes manifestações:
Dificuldade de limitar o uso de bebidas alcoólicas (que pode começar já na adolescência, já que o consumo abusivo entre os jovens aumentou)
Continuidade da prática, apesar dos prejuízos na vida pessoal ou profissional
Necessidade de beber cada vez mais para ter o mesmo efeito (tolerância)
Desejo intenso de beber que impede de se fazer outras atividades
Cerca de 3 milhões de mortes ao ano são atribuídas ao álcool em todo o mundo
E seu uso nocivo é o principal fator de risco para morte prematura e incapacidade de pessoas com idade entre 15 e 49 anos.
Fontes: João Eudes dos Santos Neto, nutricionista especialista em saúde do adulto e do
idoso do HUAC/UFCG (Hospital Universitário Alcides Carneiro da Universidade Federal de Campina Grande), que integra a rede Ebserh (Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares); José Rocha Faria Neto, médico cardiologista, professor da Escola de Medicina e Ciências da Vida da PUC-PR e do Epicenter (Centro de Epidemiologia e Pesquisa Clínica); Patrícia Moreira Gomes, endocrinologista e diretora da SBEM-SP (Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia Regional São Paulo); Protásio Lemos da Luz, professor titular sênior do Instituto do Coração do HC-FMUSP (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), pesquisador e membro da SBC (Sociedade Brasileira de Cardiologia). Revisão médica: José Rocha Faria Neto.
Referências:
- Ministério da Saúde
- CISA (Centro de Informações sobre Saúde e Álcool) - Álcool e Saúde dos Brasileiros - Panorama 2022
- Sisdevin (Sistema de Declarações Vinícolas) da Secretaria da Agricultura, Pecuária, Produção Sustentável e Irrigação do Rio Grande do Sul;
- Agência Fapesp
- AHA (American Heart Association)
- American Cancer Society
- OIV (International Organisation of Vine & Wine Intergovernmental Organisation)
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