'Esperei 4 meses por um coração, quase morri e hoje sonho em ser triatleta'
Luis Carlos Gouveia, 50, gostava de correr todos os dias de manhã. Na pandemia, o diretor de RH ficou recluso, como tantas pessoas. Para animar o marido, a mulher de Luis deu de presente a ele uma esteira. Foi então que Luis percebeu que não conseguia mais correr como antes.
Ele foi diagnosticado com amiloidose cardíaca, uma doença que causa danos ao coração, e entrou na fila de espera para um transplante do órgão — como aconteceu com o apresentador Fausto Silva. Hoje, a fila do transplante cardíaco tem 386 pessoas.
Depois, Luis ainda teve de fazer um segundo transplante, de medula. Após idas e vindas ao hospital, ele cumpriu em abril —agora de coração novo— a promessa que fez quando estava internado: participar de uma maratona de pessoas que receberam transplante de órgãos. Ao VivaBem, ele contou sua história.
'Achei que era depressão'
"Sempre fui atleta. Há 15 anos, comecei a correr. Antes de ir ao trabalho, corria cerca de 10 km. Na pandemia, tive de parar. Estava trabalhando a distância, mas me sentia diferente. Tinha insônia, me sentia inchado. Até achei que fosse depressão.
O ponto chave para entender o que estava acontecendo foi quando minha esposa, com dó de mim trancado em casa, resolveu me dar de aniversário uma esteira. Quando fui usá-la, não conseguia correr, só andar. Me dava alguma coisa no peito que fazia com que eu parasse.
Ficava inchado, achava que eram gases, mas também percebi que, quando andava, a veia do pescoço saltava. Resolvi ir ao médico.
No hospital, identificaram que estava com embolia pulmonar. Fui internado em agosto de 2020. Trataram a embolia e, no dia da alta, tive uma convulsão e quase morri.
Foi então que descobri uma doença rara, chamada amiloidose cardíaca. Ela faz com que a medula comece a soltar substâncias insolúveis que se depositam em órgãos, como o coração. Isso deixou a parede do meu coração mais dura e ele foi ficando pesado, com maior dificuldade de bater.
Um novo coração
Quando identificaram a doença, em setembro de 2020, me disseram que precisaria de transplante de medula. Fiquei surpreso e então me acalmaram dizendo que seria um procedimento autólogo, ou seja, eu poderia ser meu próprio doador.
Mas foi aí que veio a segunda notícia: antes, teria de passar por um transplante do coração. A doença tinha atacado o órgão e, se eu continuasse com ele, teria uma qualidade de vida terrível.
Tudo isso aconteceu no ápice da pandemia: ninguém ia para o hospital a não ser que estivesse realmente muito mal. Comecei a viver um desafio: enquanto aguardava a doação, a doença atacava meu coração.
Não tinha previsão de quando um coração novo chegaria. No primeiro mês internado, não fiz nada. Não queria sair da cama, era difícil de processar.
Era uma pessoa muito ativa e ainda estava processando as limitações que a pandemia havia trazido quando veio essa bomba. Em menos de dois meses, achava que era um super-homem e, depois, estava acamado.
Só assistia à televisão, não queria falar com ninguém. Não sabia quanto tempo ficaria naquela situação e, por ser pandemia, as doações tinham diminuído muito. Na verdade, não sabia se sairia de lá vivo.
Ficava com remédio 24 horas por dia indo direto ao coração para mantê-lo estável. As visitas eram limitadas. Meu filho tinha 2 anos na época e começou a sentir falta da mãe. Então, decidimos reduzir o número de visitas da minha mulher [ao hospital]. No segundo mês, ficava mais sozinho no quarto.
'Caminhava 2 km no corredor'
Foi então que percebi que, se não fizesse uma programação para tentar viver uma vida normal no hospital, morreria de desânimo. Comecei com pequenas iniciativas. A primeira foi colocar como meta que, se sobrevivesse, como era atleta, representaria o Brasil no World Transplant Games, um torneio internacional de receptores de transplante de órgãos, doadores vivos e famílias de doadores.
Comecei a me preparar. Caminhava 2 km por dia pelo corredor e também iniciei a musculação quando perceberam que eu poderia pegar um peso maior. Isso foi ocupando minha agenda, a fisioterapia era meu horário sagrado.
Também comecei a ler muitos livros e a encarar a situação como um período sabático forçado. Li mais de 4 mil páginas. Entre os livros, estava a biografia do ex-presidente da África do Sul Nelson Mandela, que ficou na prisão por 27 anos. Com a história dele, pegava dicas do que fazer quando se espera por algo que não tem prazo para terminar.
Pedi para minha mulher trazer o violão e colocava a meta de cantar ao menos 10 músicas por dia. Depois, comecei a fazer lives, para estimular a doação de órgãos. Minha vida começou a ficar tão agitada que terminava o dia cansado.
Fui criando uma jornada que, em um momento terrível, na medida do possível, se tornou prazerosa.
Em dezembro, a equipe médica disse que eu era o primeiro da fila de espera para o transplante, mas tínhamos de manter os pés no chão porque nada era garantido. No primeiro Natal da pandemia, tinha a expectativa de sair de lá, mas não veio o coração.
Depois, em janeiro, veio a segunda onda da pandemia e a equipe avisou que os hospitais estavam lotados e que a prioridade não era transplante, mas os pacientes de covid-19. Disseram que teria de aguardar um mês.
Em uma sexta-feira no fim de janeiro, minha mulher veio me visitar. Naquele dia, o médico me perguntou o que eu faria no fim de semana porque... meu coração havia chegado! Fiquei paralisado. Foi um misto de alegria e tristeza.
Já não aguentava mais ficar no hospital, minhas veias estavam cansadas de tantas coletas de sangue, o cateter quase em carne viva, então foi um alívio. Ao mesmo tempo, sabia que, se havia conseguido uma doação, era porque alguém tinha morrido.
O médico foi muito realista e disse que algo poderia dar errado. O coração estava vindo de Santa Catarina, de avião.
Me prepararam psicologicamente de tal forma que disse a mim mesmo que só comemoraria na mesa de cirurgia. Lembro que, enquanto estava deitado, só vi o anestesista com o celular na mão. Virei o rosto para ele e perguntei: deu certo? E ele assentiu, dizendo que sim. Tomei a anestesia e não vi mais nada.
Ao todo, foram 4 meses e 7 dias aguardando no hospital.
A segunda cirurgia
Quando abri o olho, tudo parecia um filme. A memória foi recuperada aos poucos.
Ao notar que a cirurgia havia dado certo, não parei mais de falar. Comecei a agradecer a todo mundo. Foi uma alegria indescritível. Fiquei mais duas semanas no hospital até receber alta. Retornar para casa foi maravilhoso. Comecei a desfrutar das coisas simples, como tomar um café com minha família, dormir na minha cama.
Ainda não podia carregar peso, ou carregar meu filho no colo, mas caminhava bastante. No meio do ano, chegou o momento de fazer o segundo transplante, o da medula. Fiquei de julho a outubro daquele ano tentando. Até que, finalmente, deu certo.
Fui voltando a ter uma vida normal. Também começou uma maior flexibilização da pandemia, saíamos na rua, corríamos no Ibirapuera. Voltar à vida foi uma alegria indescritível.
A maratona dos sonhos
Aprendi nessa experiencia que não dá para olhar no longo prazo. Você ressignifica tudo se quer sobreviver.
Em abril deste ano, embarquei para o World Transplant Games, na Austrália. Foi uma experiência maravilhosa. Fiquei emocionado porque sonhei com aquilo por muito tempo. Toda vez que desanimava no processo, pensava que queria estar lá, correndo. E aconteceu.
Não fui com o objetivo de ganhar, mas para cumprir uma promessa e voltei renovado. Vou no próximo World Transplant Games, na Alemanha. E minha meta é ser triatleta.
Não pensamos muito sobre a morte, mas fiquei tanto tempo em um hospital, em um momento em que tantos brasileiros morriam, que isso me mostrou que temos um prazo. Se eu tiver mais 20 anos de vida, quero ter o maior impacto possível para a doação de órgãos. Não tenho como agradecer à família que me doou o coração, mas quero devolver à sociedade o que recebi.
Estou transformando meu diário [feito durante a internação] em um livro que é um guia prático para quem aguarda na fila. Quero fazer a diferença, ver meus filhos crescerem, respirar ar puro, sair, fazer coisas simples.