'Operei para tirar cisto no ovário e acabei perdendo as pontas dos dedos'
De VivaBem, em São Paulo
25/08/2023 04h00Atualizada em 25/08/2023 09h22
Jaine Silvestre enfrentou uma luta para conseguir retirar um cisto de seis centímetros que estava em seu ovário. Mas a cirurgia que deveria dar fim às fortes cólicas foi o início de uma nova saga para a influenciadora: uma das incisões feitas para chegar ao corpo estranho perfurou o intestino da jovem. O erro causou uma infecção que necrosou suas extremidades e fez Jaine perder a ponta dos dedos das mãos.
Tudo começou em 2014, quando Jaine tinha 19 anos e um médico encontrou o cisto no corpo dela. Demorou três anos para que o plano de saúde liberasse sua remoção, dando início ao trauma que passou muito tempo escondido por ela.
"Eu ia em um ginecologista que recomendou a cirurgia por vídeo e me indicou um outro médico, que usava esse método. Foi uma recomendação para evitar ficar com cicatriz", lembra a influenciadora, que hoje tem 28 anos.
O método usado na cirurgia foi a videolaparoscopia, técnica "minimamente invasiva" que permite uma recuperação mais rápida. Pacientes que passam por cirurgia bariátrica também podem ser submetidos a esse tipo de procedimento, em que o abdômen é inflado com gás antes da câmera ser inserida pelo umbigo, por meio de um corte bem pequeno, de cerca de 1 centímetro.
Eu só tive uma consulta com esse outro médico e não gostei muito, mas não suportava mais aquele cisto e optei por fazer a cirurgia. Segundo ele, eu teria alta no dia seguinte. Fiz a cirurgia em uma segunda-feira e algumas horas depois fui para o quarto, já com muita dor, não conseguia nem respirar direito". Jaine Silvestre
Em vez de se preparar para sair do hospital, Jaine passou a enfrentar uma maratona de medicamentos para dor.
O ginecologista responsável pela cirurgia foi visitá-la apenas na terça-feira, quando afirmou que o incômodo era efeito do gás usado para inchar seu abdômen.
Eu comecei a tomar morfina, mas o médico disse que era só fazer algumas caminhadas que eu ia me recuperar. Ele não fez exames e só na quarta pediu uma tomografia."
Apesar do encaminhamento, Jaine não conseguiu realizar o exame. Ela acabou desmaiando a caminho da tomografia. Com as complicações, a decisão da equipe foi levá-la para o centro cirúrgico, já três dias depois da retirada do cisto.
Usando o mesmo furo da primeira operação, a câmera dos médicos encontrou um cenário bem diferente no corpo da paciente: dessa vez, sua cavidade abdominal estava tomada por fezes.
"Foi quando eles viram que tinha acontecido uma perfuração no intestino e eu já estava com infecção generalizada. Ali mesmo eu tive que fazer uma lavagem e fui pra UTI", lembra Jaine.
A jovem ainda passou por outras lavagens, mas a infecção persistiu. Para tentar poupar seu corpo, os médicos decidiram colocá-la em coma induzido — um período de duas semanas em que ela disse ter vivido uma experiência "estranha".
Durante o coma eu tive uma experiência horrível. Eu via as enfermeiras e sabia que eu estava no hospital, mas não sabia o porquê. Achava que estava sofrendo uma perseguição ali dentro, que as enfermeiras queriam me matar."
Enquanto Jaine vivia o coma, seus rins paravam de funcionar. Em meio às hemodiálises, o ginecologista conversou com a família da jovem e afirmou que ela tinha apenas 1% de chance de sobreviver.
Tiraram a sedação para que eu voltasse do coma, só que eu não voltei. Cogitaram abrir um protocolo de morte encefálica, porque meu cérebro não estava reagindo, e queriam separar a documentação para doação de órgãos também. Minha família entrou em desespero, mas falou que não ia deixar."
Em meio à briga entre o diagnóstico e a família de Jaine, uma das enfermeiras notou que a influenciadora estava se mexendo. Uma semana depois, ela começou a despertar do coma, sem sequelas neurológicas.
"Acordei com as mãos amarradas e enfaixadas por causa da necrose"
Mas, apesar da vitória, a jovem foi surpreendida pelo estado de seu corpo, tomado pela necrose nas mãos e nos pés.
O problema foi causado pela grande quantidade de noradrenalina aplicada para combater sua infecção. Vasoconstritora, a substância acabou causando o efeito colateral.
"Eu acordei com as mãos amarradas e enfaixadas por causa da necrose. Os pés também tinham tecido preto e bolhas. Depois de uns dias eles conseguiram fazer uma cirurgia para reconstruir o meu intestino e eu tive alta, após 51 dias entre UTI e quarto", conta Jaine.
"Foi uma recuperação bem dolorosa, principalmente depois que eu fui para casa, porque com o passar dos dias o tecido preto começou a dar lugar aos ossos expostos"
Jaine ainda teve que fazer duas cirurgias, liberadas mais de cinco meses depois de sua volta para casa. Uma delas tentou reparar a ponta dos dedos das mãos. A outra, colocou parafusos em um de seus pés.
A demora para o plano de saúde cobrir os procedimentos foi outro obstáculo, segundo ela.
"Eu estava com os ossos expostos e tinha que pegar ônibus assim, correndo risco de infecção. Além de ser bem complicado para dormir, tomar banho, eu precisava de ajuda dos meus familiares porque isso me limitava bastante", lembra.
Na recuperação, a jovem fez fisioterapia e acompanhamento psicológico para lidar com sua nova realidade, mas disse que enfrentou uma nova decepção ao buscar ajuda na terapia.
"O que eu conversava ele vazava para outros médicos, isso me frustrou bastante. Hoje, eu já não posso mais usar salto muito alto, não posso praticar nenhuma atividade física que tenha muito impacto e, na mão, perdi a sensibilidade das pontas dos dedos", explica.
"Tive que me adequar, reeducar meu cérebro para entender que eu já não tinha mais aquela parte do corpo. Depois de tudo que aconteceu, você renasce, vê a vida de uma forma completamente diferente"
"Não consegui ter ódio do médico, mas tenho medo"
De início, Jaine decidiu não processar o médico responsável por sua cirurgia, mas as frustrações que viveu após ter alta a fizeram mudar de ideia.
Hoje, ela move ação contra ele, o hospital e o convênio — mas prefere não mencionar o nome dos envolvidos no caso, que ainda está tramitando.
"Eu nunca consegui ter ódio ou raiva pela situação, ou pelo médico. O que eu tenho é um certo medo, receio mesmo, de passar por isso de novo, ou até de encontrar com ele", afirma.
"Eu não queria processá-lo, só queria a minha vida de volta, só que eu tive que me humilhar em muitas situações para conseguir o mínimo. Dinheiro nenhum no mundo vai trazer de volta meus dedos ou apagar o que eu vivi naquela UTI, mas eu não quero que outras pessoas passem por isso", justifica Jaine.
Segundo a jovem, o ginecologista nunca se desculpou ou tentou ajudá-la na recuperação. Ela afirma que o profissional não mencionou riscos da cirurgia e, ao falar sobre a piora em sua saúde, definiu o incidente como uma "falha técnica".
As causas da perfuração em Jaine ainda são investigadas, mas, hoje, uma das principais teorias é de que o erro aconteceu já durante a incisão da câmera em seu umbigo.
Ele ainda disse antes da cirurgia: 'erros só acontecem de um em um milhão, tem alguma dúvida?'. Foi bem frio."
Apesar de não mencionar o nome do médico em seus vídeos, Jaine conta que outras pessoas identificaram o nome do profissional apenas pela descrição que ela dá.
"Já aconteceu de três pessoas, aleatoriamente, me procurarem para falar: 'Olha, você fez com tal hospital? Foi com o doutor tal? Por que eu achei ele uma pessoa muito fria.' E com isso elas tiveram a certeza de que não queriam passar por ele", conta.
A jovem, que demorou para conseguir contar sua história, decidiu dividi-la nas redes sociais graças ao incentivo da família. Hoje, ela tem mais de 100 mil seguidores apenas no TikTok, onde conta detalhes de sua recuperação e de sua rotina adaptada.
Foi e é uma troca de experiências. Eu vi tudo isso que aconteceu como um milagre mesmo. Teve uma corrente de todas as religiões pra que eu voltasse e isso mexeu muito comigo, porque é como se tivessem atendido um pedido meu para que todo mundo tivesse fé, cada um da sua forma."
Entre as maiores mudanças sentidas pela influenciadora estão as limitações com atividades físicas. Amante de capoeira e balé, ela teve que deixar as modalidades de lado para se concentrar em outros esportes — obrigatórios para sua recuperação.
"Meu metabolismo sempre foi muito acelerado, mas devido aos medicamentos tudo mudou. O médico que fez as lavagens me avisou: 'Depois da sua alta, você vai ter que se cuidar, porque sua tendência agora é ter colesterol alto e ganhar gordura'. Hoje, para ganhar peso é extremamente rápido, eu preciso estar sempre em atividade, mas sem forçar, por causa da minha limitação no pé", lembra.
Tipo de cisto influencia no risco da cirurgia
Jaine recebeu o resultado da biópsia apenas depois de ter alta, quando foi em busca do prontuário para anexá-lo ao processo. Ela conta que teve que pagar para ter acesso aos documentos, que apontaram que ela tinha um cisto simples no ovário esquerdo.
O tipo de cisto e a idade da influenciadora são dois fatores que reduziam os riscos envolvidos na cirurgia, de acordo com o médico Rodrigo Chihara, responsável pelo setor de oncologia ginecológica do Hospital das Clínicas de Botucatu. Em um caso simples, como de Jaine, as chances de complicações ficam entre 2 e 5% — mas não devem ser minimizadas.
"A abordagem por vídeo, principalmente quando a paciente é jovem, é um procedimento bem seguro. Tem várias medidas para entrar na cavidade para diminuir o risco, mas acidentes na primeira incisão, que a gente chama de 'às cegas', existem sim, porque nós não estamos vendo nada ainda", explica o ginecologista.
Apesar dos riscos, Chihara destaca que, na maior parte dos casos, os médicos conseguem perceber erros que acontecem na incisão "às cegas" já durante a cirurgia.
"No caso dela não deve ter sido isso, provavelmente foi durante o procedimento. Pode acontecer de o médico machucar um pouco o intestino e as fezes não saírem na hora e, posteriormente, com a inflamação da cirurgia, acontecer esse vazamento", detalha.
Os riscos aumentam caso a paciente tenha um cisto ligado a um problema de saúde, como endometriose ou um abscesso. Nesses casos, o corpo estranho causa uma inflamação que pode aumentar a aderência entre intestino e ovário, com a proximidade entre eles deixando o procedimento mais suscetível a problemas.
Chihara não descarta também que as complicações de Jaine tenham acontecido por alguma ruptura após a operação, já que o médico poderia ter feito iniciativas simples para evitar o vazamento do intestino caso tivesse percebido o erro durante a cirurgia.
"Geralmente, se você tem alguma suspeita de perfuração, o procedimento de dar um ponto no local machucado é muito simples, então pode ser sim que ele achou que deu tudo certo e teve essa fatalidade depois, quando o intestino voltou a funcionar normalmente", argumenta ele, deixando claro que é importante o médico levar a sério as reclamações no pós-operatório.
Esse diagnóstico no pós operatório é importante. Quando existe uma dor significativa e sintomas como febre a primeira coisa que você tem que pensar é em complicações da cirurgia, e as mais comuns são sangramento ou perfuração. O gás usado no procedimento pode deixar um abdômen mais distendido, mas não causa muita dor no caso da cirurgia por vídeo."