Ela teve 7 AVCs e ficou intubada mais de 20 vezes: 'Sem medo da morte'

Rita Ephrem, 29, já se viu perto da morte mais vezes do que sua própria idade. Ela ficou internada em estado grave devido às complicações causadas por uma doença autoinflamatória rara que ainda não tem nome e, ao longo de três anos e meio, já lhe causou ao menos sete AVCs (acidentes vasculares cerebrais), dezenas de tromboses, paradas cardiorrespiratórias e infecções generalizadas. "Minha vida é um milagre", diz ela. Ao VivaBem, Ritinha, como é chamada pelos quase 40 mil seguidores em seu perfil no Instagram, contou a sua história.

"Eu tenho uma doença ultrarrara ainda não catalogada. Ela é causada por diversas mutações genéticas e sua principal característica é que ela é autoinflamatória. Isso significa que, por conta de um erro inato no meu sistema de defesa, 100% das minhas células atacam todo o meu corpo e causam uma inflamação generalizada.

Como resultado, eu convivo com muitas dores todos os dias, mas o que determina se vou estar no hospital ou recebendo atendimento em casa é qual órgão está sendo afetado pelo processo inflamatório.

Quando eu tinha 25 anos, idade em que recebi o diagnóstico da doença, fui internada porque a situação estava muito grave, mas não imaginava que ia ficar três anos e meio sem sair do hospital.

Costumo dizer que é como se eu estivesse presa sem ter cometido crime algum. O máximo que eu me mudava era da UTI para o quarto.

Foi uma jornada muito difícil. Eu tive sete AVCs, quatro tromboses abdominais, sete tromboses no braço, oito tromboses na perna, além de trombose no fígado e no intestino.

Também tive muitos episódios de meningite —todas inflamatórias—, encefalites, pleurites, pericardite, artrite, colite e peritonite.

O processo inflamatório é tão intenso que altera até o meu sistema metabólico: a minha glicemia atinge níveis absurdos, chega a 800, 900, até 1000. É gravíssimo.

Além da doença, também tenho uma condição chamada imunodeficiência comum variável, o que significa que eu não produzo anticorpos. Então, se eu tomar uma vacina, não vou conseguir produzir anticorpos o suficiente e, por isso, fico muito suscetível a infecções.

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Tive inúmeras sepses [infecções generalizadas], que me levaram a sofrer mais de 20 intubações e cinco paradas cardíacas.

Muitas pessoas passaram por uma infecção generalizada e não sobreviveram, eu passei por tantas e sobrevivi, o que me faz pensar que existe um propósito por trás disso tudo. Posso dizer que, apesar de tudo, a minha história não é triste. É uma história de amor, porque me considero imensamente feliz só por estar viva.

Ritinha ao lado de sua mãe
Ritinha ao lado de sua mãe Imagem: Arquivo pessoal

Minha mãe me conta que, quando eu estava em coma por causa da covid-19, o médico disse para ela 'Manda o mundo rezar pela Rita, porque não está mais nas minhas mãos". Eu fiquei quatro meses intubada em um estado gravíssimo. Hoje, muitos médicos que atuam no meu caso me dizem que tem coisas que a medicina não explica.

Tem o fato de eu ser jovem, mas também tem os fatores psicológico, emocional, espiritual e o extraordinário. Deus é meu melhor amigo durante todo esse processo.

'Meu caso é uma incógnita até para os médicos'

Eu nasci em Belo Horizonte (MG) e me mudei para o Líbano na juventude, porque meus pais são libaneses. Mas só fui receber o diagnóstico da doença quando voltei para o Brasil. Antes disso, nunca tive um diagnóstico certeiro.

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Os primeiros sintomas eram bem básicos, até que foram se agravando. Eu tinha febre alta com frequência, dores nas articulações, diarreia, vômito, oscilações na pressão e aumento dos batimentos cardíacos.

Passei por muitos médicos, mas nenhum sabia dizer o que eu tinha. Um deles chegou a dizer para minha mãe que eu precisava procurar um psiquiatra, porque estava inventando tudo que sentia. É importante compartilhar isso porque as pessoas que têm doenças raras sofrem com esse desconhecimento por parte de alguns médicos, o que acaba atrasando o tratamento.

Reconheço que são doenças raras e difíceis de diagnosticar, mas não gostaria que outras pessoas sofressem o que eu sofri. Se a minha família não acreditasse em mim, eu poderia ter morrido por negligência.

Voltei para o Brasil em busca de ajuda, fiquei internada por um período em Belo Horizonte, mas fui transferida para São Paulo e, por volta dos 25 anos, recebi o diagnóstico, através de um exame de sequenciamento genético, que mostrou todas as mutações genéticas que eu tenho.

Os médicos suspeitam que eu tenha uma síndrome chamada Traps, que causa febre e dores recorrentes. Mas, além dela, eu ainda tenho mais 11 mutações genéticas associadas.

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Imagem: Arquivo pessoal
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A doença é genética, mas não necessariamente hereditária. Minha irmã não tem nenhuma mutação e meu irmão tem uma das mutações, então o quadro dele é brando e ele também já começou o tratamento. Eu sou a irmã mais velha.

Uma hipótese que está sendo estudada pelos médicos é que o casamento entre primos é comum no Oriente Médio e meus avós eram primos, o que pode ter aumentado o risco de doenças genéticas na nossa família.

Mas meu caso ainda é uma incógnita tanto para mim quanto para os médicos. A doença não tem cura, mas a boa notícia é que eles sabem o seu mecanismo de ação e como tratar os sintomas, o que me dá um certo alívio.

Porém, como eu fui diagnosticada tardiamente e recebi muitos corticoides antes disso, hoje também sofro com efeitos colaterais dos medicamentos. Tenho diabetes, colesterol alto, triglicérides alto e pressão alta.

Eu não tenho só a minha doença; também sofro com muitos efeitos colaterais de medicamentos que usei por muitos anos.

'Voltei do treino, dormi e acordei não andando mais'

A doença e o tratamento tardio também me trouxeram muitas sequelas motoras, principalmente dos choques sépticos que eu tive. Hoje, eu não mexo mais meu pé esquerdo. Consigo andar poucos passos, mas com uma órtese, porque meu pé é todo mole.

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Além disso, tenho sequelas respiratórias, faço uso de oxigênio, porque minha saturação é baixa, e também tenho sequelas nas mãos e nas pernas.

No Líbano, Ritinha era atleta de futsal feminino
No Líbano, Ritinha era atleta de futsal feminino Imagem: Arquivo pessoal

Essas mudanças foram muito difíceis de lidar. No Líbano, eu fazia engenharia mecatrônica, ganhei destaque acadêmico e me tornei atleta de futsal da própria faculdade e da seleção libanesa, então rodei pela Jordânia, Dubai e Catar. Tinha corpo de atleta.

Lembro de uma vez que voltei do meu treino, dormi e acordei não andando mais. Foi uma coisa muito assustadora para mim, porque eu era atleta, jogava, tinha uma viagem marcada e, de repente, não conseguia mais andar.

Por conta do uso de altas doses de corticoides, também ganhei 40 kg, minha fisionomia mudou muito. Para eu me olhar no espelho, foi difícil, porque não me reconhecia. Foi um processo complicado até me reconhecer e ver que o que estava mudando era só por fora e que a minha essência continuava, que é possível se apaixonar pela essência.

A terapia me ajudou muito nisso, principalmente durante a internação. Eu faço acompanhamento até hoje. Acho vital e, inclusive, decidi que quero me tornar psicóloga, para também ajudar outras pessoas a lidarem com seus sofrimentos.

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Desafios de acesso ao tratamento

O acesso ao tratamento é uma luta à parte. É um gasto enorme e a gente não consegue tudo pelo SUS. O plano de saúde cobre a internação, mas nem todos os exames e consultas com especialistas. Graças a Deus, tenho uma rede de apoio no Instagram que me ajuda a custear parte desse tratamento.

Durante a internação, também comecei a fazer pinturas para as enfermeiras para passar o tempo e, depois, elas me deram a ideia de começar a vender as telas. Isso me deixava muito feliz e ainda me ajudava a arrecadar um pouco de dinheiro.

Além disso, escrevi um livro chamado 'Você Não Conhece o Poder do Meu Deus', no qual conto várias crônicas que escrevi sobre a minha história e, no final, proponho reflexões para fazer o leitor pensar na própria vida. Atualmente, a venda do livro ajuda no meu tratamento.

Atualmente, Ritinha está em internação domiciliar
Atualmente, Ritinha está em internação domiciliar Imagem: Arquivo pessoal

A gente vendeu tudo, minha mãe largou o trabalho para poder cuidar de mim, e hoje a gente vive da ajuda das pessoas, eu espero que por pouco tempo, porque isso dói em mim, mas é o que me mantém viva e eu sou muito grata a todas as pessoas que me ajudam.

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Conviver com essa doença, além do diagnóstico, é não saber o que vai acontecer amanhã. Mas ter também a confiança plena que existe algo que me protege, que é o extraordinário, que é o próprio Deus. Ele me protege, me dá forças, me dá coragem para lutar se eu parar de andar, parar de falar, parar de enxergar, seja o que for, eu não tenho mais medo dessa doença.

'Ganhei asas para voar'

Minha alta final foi em fevereiro deste ano. Foi inacreditável, como se eu tivesse nascido de novo.

Continuo em internação domiciliar e toda sexta-feira vou para o hospital receber o tratamento. Tomo inúmeros remédios, mas os três principais são a imunoglobulina, que eu reponho semanalmente; os imunobiológicos, que recebo a cada 14 dias; e os corticoides, que tomo todos os dias para controle da inflamação.

Ainda tem toda a questão do cuidado com meu estado, vivo uma vida de idas e vindas para o hospital, mas eu tenho uma vida que eu posso sair com os amigos, ir ao parque, de vez em quando posso receber amigos na minha casa, cuidar do meu cachorrinho, posso ver o sol nascer e também se pôr, ver as estrelas.

Eu me arrepio de vivenciar isso dentro do mundo, e não dentro de um quarto. É como se eu ganhasse asas para voar, agora eu não sou mais espectadora do mundo: eu estou vivendo dentro do mundo.

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Após três anos e meio de internação, Ritinha teve alta em fevereiro de 2023
Após três anos e meio de internação, Ritinha teve alta em fevereiro de 2023 Imagem: Arquivo pessoal

A gente precisa aproveitar o tempo que temos, porque a gente não sabe quando podemos morrer. Eu posso morrer agora enquanto dou essa entrevista. Para mim, a morte não é um tabu, é uma coisa que a gente tem que falar, porque é uma realidade que todos vamos viver.

Eu já estive perto da morte inúmeras vezes e a doença me ensinou a não ter medo dela. Minha vida é um milagre. Quero aproveitar cada segundo da minha vida e acumular memórias para eu seja sempre lembrada não pelo que eu fiz, mas pelo que eu fui e pelo que eu sou. Um dia meu corpo vai embora, mas minha alma jamais irá morrer.

Às vezes bate um medo, mas eu fecho os olhos e consigo sentir a presença de Deus. Ele me acalma e me diz para seguir em frente. E eu vou seguir até quando Deus permitir.

O que é uma doença autoinflamatória?

São condições causadas por problemas no sistema imunológico inato, que nasce com cada um de nós e oferece uma defesa imediata para eliminar as ameaças.

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A doença autoinflamatória seria um defeito na imunidade inata, de forma que, ao invés de atacar vírus e bactérias, o corpo acaba agredindo a si mesmo, causando uma inflamação exagerada, porque não há uma regulação apropriada. Pedro Francisco Giavina-Bianchi Jr., do Laboratório de Imunologia Clínica e Alergia da FMUSP.

Essas doenças são consideradas raras e a maioria delas é causada por mutações genéticas.

De acordo com Giavina-Bianchi Jr., há cerca de 100 doenças autoinflamatórias que já foram catalogadas e muitas outras ainda sem um gene determinado, como o caso de Ritinha.

Os sintomas variam de acordo com a doença, mas geralmente incluem febre sem razão específica, mal-estar generalizado, dor nas articulações, inchaço e lesões na pele. Em casos mais graves, pode levar à inflamação de órgãos vitais como pulmão e coração.

O quadro geralmente tem as primeiras manifestações na infância, mas, segundo o geneticista do Hospital Oswaldo Cruz, os pacientes levam de dez a 15 anos para receberem o diagnóstico, já que ainda há desconhecimento por parte dos médicos sobre as doenças autoinflamatórias e poucos centros de tratamento focados em enfermidades raras.

O diagnóstico é feito a partir da análise dos sintomas e de exames genéticos, que são caros e de difícil acesso.

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O tratamento é focado no uso de substâncias anti-inflamatórias. "A gente tenta evitar ao máximo o uso de corticoides porque eles podem levar a uma série de efeitos colaterais", explica Giavina-Bianchi Jr.

Uma opção de tratamento alternativa aos corticoides são os imunobiológicos, substâncias criadas em laboratório para bloquear parte do processo inflamatório nos pacientes.

Ainda não existe cura para as doenças autoinflamatórias, mas o tratamento ajuda a melhorar a qualidade de vida.

Alguns exemplos de doenças autoinflamatórias já catalogadas incluem a febre familiar do mediterrâneo e a artrite idiopática juvenil.

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