Esclerose múltipla: a 8 meses de um Ironman, ele teve pior surto da doença
"Hoje é um péssimo dia para desistir." Essa frase motivacional é quase um mantra na vida do empresário e palestrante Gildo Afonso, 30. O significado dela vai muito além do incentivo: ele convive com a esclerose múltipla desde os 23 anos e, mesmo assim, conseguiu completar um Ironman —prova que consiste em 3,8 km de natação, 180 km de ciclismo e 42,195 km de corrida.
Doença inflamatória e autoimune que atinge quase 3 milhões de pessoas no mundo todo (no Brasil são cerca de 50 mil), a esclerose múltipla é considerada uma das doenças neurológicas mais comuns que afeta o sistema nervoso central —ou seja, o cérebro e a medula espinhal.
O transtorno provoca uma espécie de curto-circuito nas células de defesa do corpo, que passam a atacar as células nervosas e danificam a mielina —um material gorduroso que reveste as fibras nervosas— e impedem seu funcionamento normal.
O resultado é uma dificuldade de comunicação entre nervos e cérebro, o que dificulta funções corriqueiras como caminhar, falar e enxergar.
A esclerose múltipla pode causar visão dupla, desequilíbrio, dificuldade para andar, alterações de sensibilidade no corpo e problemas de coordenação motora. Alex Machado Baêta, neurologista da BP - A Beneficência Portuguesa de São Paulo
"Na verdade, esses sintomas dependem da área do sistema nervoso que a doença atingiu com mais força", diz o especialista.
A maioria dos pacientes são diagnosticados entre 20 e 50 anos, como foi o caso de Gildo —que sentiu os primeiros sintomas durante uma viagem ao Peru, em 2017, com 23 anos.
"Eu havia acabado de me formar em direito e passado no concurso dos meus sonhos", relembra. "Decidi colocar uma mochila nas costas e ir viajar pelo Brasil e pela América Latina escalando montanhas."
Em Machu Picchu, no Peru, ele começou a sentir dificuldade para se movimentar e ficou incapacitado até de escrever o próprio nome. "Saí sozinho, com mochila nas costas, e voltei sem nem conseguir carregar minha mala", afirma.
O diagnóstico
Em casa, Gildo saiu de Rondônia rumo a São Paulo para confirmar o diagnóstico de esclerose múltipla, uma doença que, para ele, era nova.
"Fiquei em uma cadeira de rodas, achava que minha vida tinha terminado e caí em depressão", lembra.
Na época, a mãe e a irmã o apoiaram incondicionalmente. "Minha mãe disse: 'Se precisar, vendo nossa casa, nosso carro, para você ter o melhor tratamento'. E isso fez toda a diferença, esse apoio", revela.
Gildo estava sofrendo com o primeiro surto da doença —ele teve 10 até agora.
"Surtos" são crises em que a doença se manifesta de forma mais evidente e atinge funções importantes, debilitando o paciente.
Nem todos os sintomas dos surtos são definitivos. "No início da doença, pacientes podem ter surtos graves e se recuperarem prontamente", afirma Baêta.
"No entanto, é preciso fazer os tratamentos corretos para evitar que fiquem resíduos", alerta o médico.
"Resíduos" são possíveis sequelas que não são recuperadas, como perda de sensibilidade em alguma parte do corpo, por exemplo.
Dependendo da agressividade da doença, até mesmo os pacientes que estão em tratamento podem perder funções neurológicas importantes de forma definitiva.
No caso de Gildo, a doença é considerada agressiva e, a cada surto, são as funções motoras que mais sofrem. "Nunca é algo leve", afirma.
Mesmo com a gravidade do quadro, o empresário se dedicou ao tratamento, feito com medicação tradicional e muitas sessões de fisioterapia.
"No meu caso, isso funcionou, mas cada paciente é único e o tratamento deve ser individualizado", reforça ele, que não gosta de dar detalhes sobre seu tratamento justamente para não dar falsas esperanças aos pacientes da doença.
Acompanhado por um preparador físico, Gildo aos poucos voltou a andar, com alguma dificuldade. E, depois de alguns meses, ele já estava correndo. Foi quando decidiu que iria correr uma maratona.
Quando vi que era possível, pensei: 'Quero participar do Ironman'. Gildo Afonso
A ideia, que não foi "comprada" por ninguém de imediato, só cresceu: Gildo vendeu o carro, fez um empréstimo e comprou uma bicicleta para participar da prova.
Antes da prova, o susto
Em pleno preparo, oito meses antes do Ironman de 2022, Gildo sofreu um novo surto, considerado por ele o pior da sua vida até hoje.
Ao todo, foram 22 dias de internação e diversas medicações aplicadas diariamente para reduzir a inflamação no corpo do empresário. De volta à cadeira de rodas e mais gordo, ele não sabia se conseguiria concretizar seu sonho.
Meus amigos estavam treinando com corridas de quilômetros e eu na fisioterapia reaprendendo a andar, sabe. Gildo Afonso
"Só tive certeza mesmo que conseguiria três semanas antes, quando me senti confiante emocional e fisicamente", revela.
Mas não foi fácil: Gildo precisou de sessões de fisioterapia diárias para conseguir voltar à forma. O esforço comoveu toda a equipe, incluindo aí seu médico, o neurologista Guilherme Olival, diretor médico da Abem (Associação Brasileira de Esclerose Múltipla).
"Gildo tem uma das doenças mais graves que já acompanhei", diz. "E, mesmo assim, superou as estatísticas. É muito difícil ter o foco, a determinação e o otimismo dele diante de uma doença tão cruel, mas ele conseguiu e ficou firme o tempo todo", conta o médico, que reforça a importância de se mudar hábitos de vida para conseguir controlar a doença.
"Não é só medicamento, precisa ter uma boa alimentação, suplementação de algumas vitaminas, praticar atividade física", afirma.
Em 2022, contra todos os prognósticos, Gildo conseguiu completar a prova do Ironman. "Liguei para minha mãe e chorei muito. Sem o apoio dela e da minha irmã, não teria feito nada", conta, emocionado.
Atenção à causa
Quando descobriu a esclerose múltipla, Gildo não sabia praticamente nada sobre ela. Desde então, ele participa de eventos e palestras e tenta, de alguma forma, divulgar informações sobre o problema.
Pensando nisso, ele decidiu chamar mais quatro pacientes que convivem com a condição para correr a maratona de Porto Alegre, que aconteceu em 4 de junho de 2023.
Batizado por ele de "5 por 50 mil", o projeto ganhou patrocinadores e teve como objetivo mostrar para as pessoas que estão recebendo o diagnóstico que a doença não é uma sentença de morte.
Correram com ele o baiano Agenor Netto, 49; a curitibana Amanda Peniche, 32; o gaúcho Antônio Salimen, 37; e o curitibano Rayan Sartori, 29.
Exautos, todos cruzaram a linha de chegada. "Juntos, mostramos que é possível ultrapassar nossos limites e inspirar mais pessoas", finaliza, orgulhoso.
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