Vício em zolpidem: 'Tomava 40 comprimidos por dia e fui internada 2 vezes'
A bancária Angélica Prado, 34, tem dificuldades para dormir desde a infância. Mas o diagnóstico de insônia crônica só veio em 2014, junto à recomendação de tomar zolpidem, um remédio indutor do sono. Esse foi o começo de uma relação problemática. Angélica desenvolveu dependência ao medicamento e em uma crise de abstinência tomou 85 doses de uma vez. Ao VivaBem, ela compartilha sua história e a jornada para deixar de usar o remédio.
"Eu tenho dificuldade para dormir desde criança, lembro de ficar horas com os olhos abertos no escuro tentando pegar no sono. Tenho trauma até hoje de ficar no escuro e não conseguir dormir.
Em 2014, um médico me diagnosticou com insônia. Nessa época, eu estava dormindo a cada duas noites, e ainda assim, muito mal. A falta de sono me deixava descontrolada no trabalho e com o humor alterado.
O médico também disse que eu tinha depressão e me passou um remédio. Para a insônia, ele indicou o zolpidem. Na primeira vez que tomei, eu já fiquei brisada, me senti drogada. Vi coisas se mexendo, mas depois consegui dormir. Foi ótimo e muito rápido. Fechei os olhos e acordei no dia seguinte. Eu não dormia assim há anos.
Antes de me apagar, o remédio dava uma alegria que nunca senti na vida. Uma sensação súbita de felicidade. Depois da alegria, se não deitasse, eu esquecia o que fazia. Já lavei a cozinha inteira e só vi no dia seguinte; comprei um peru para minha mãe; passei batom pelo corpo todo.
Fiz uso correto do zolpidem por três anos, mas fui criando resistência e aumentei a dose por conta própria. E um dia, indo para a balada, eu quis tomá-lo para me sentir feliz. É muito tentador para uma pessoa com depressão, no meu caso crônica, ter um comprimido que te deixa feliz.
Eu estava indo pra balada e, quando tomava, parecia que tudo ficava bem na minha vida. Ótimo, perfeito. Consegui curtir a festa, porque não deitei para dormir.
A partir daí, passei a usar o zolpidem fora de hora, porque a recomendação era tomar só de noite. Já acordava e tomava dois logo de manhã. Não tinha hábito de tomar remédio antes disso, e acabei ficando viciada pela sensação que tive desde a primeira vez.
No mínimo 40 comprimidos
Tomar só um remédio deixou de fazer efeito, depois dois, quatro, oito, dez. Eu continuava sentindo a felicidade, mas eu precisava aumentar a dose. E fui aumentando até continuar me sentindo bem.
Cheguei a precisar de 40 comprimidos. Tomava 20, e depois mais 20. Foram poucos meses até o vício escalar assim. Nenhum médico sabia que aumentei a dose. Como precisava de mais caixas do remédio, pedia receitas em um pronto-socorro psiquiátrico.
Ligava para perguntar qual médico estava, porque meu psiquiatra também dava plantão lá e não ia quando era ele. Aí, pegava cada vez com um diferente.
O rapaz da recepção me via todo dia, eu não sei o que ele pensava, acho que acreditava que eu tinha muita crise.
'Só vivia para ficar dopada'
Eu tinha consciência de que o consumo do remédio era acima do normal, mas não estava nem aí, porque só queria a sensação. Eu nem pensava que poderia ter overdose, o vício falava mais alto.
Fiquei fechada para o mundo, é como se não tivesse vivido por anos. Tenho poucas lembranças, porque estava sempre tão dopada. Só vivia para ficar dopada.
Eu morava sozinha, mas me mudei para bem perto da minha mãe. Ela me percebia dopada, porque eu tomava outros remédios de dia. Todo mundo notou que esse foi virando o meu estado normal.
Minha mãe não tomou atitude em um primeiro momento, até que busquei ajuda e pedi para ser internada voluntariamente. Falei que precisava, mas descobri que ia ficar quatro meses e entrei em desespero. Reconheci que era um problema, mas me arrependi. Pedi para me tirarem, e a minha família disse não.
Recaída e nova internação
Fiquei internada os quatro meses, sem visita, fazendo videochamada de 10 minutos por semana. Saí, mas recaí. Achei zolpidem na internet e pedi dez caixas. Depois, comprando remédio em uma farmácia, vi que vendiam sem receita.
Voltei a ter necessidade de muitos comprimidos e um dia tomei 85 de uma vez. Vomitei dormindo e só lembro de acordar completamente mole, com a minha mãe me levando para o hospital. O médico nem acreditou na quantidade que tomei e falou que eu estaria em coma.
Mesmo assim, não tive sequelas. Só que fui internada na clínica de novo, dessa vez por seis meses. Fui de ambulância e gritava com a minha mãe de desespero. No começo, não queria nem ligar para ela.
Depois de três meses, por protocolo da covid, pude receber uma visita de meia hora por mês. Eram momentos ótimos, de esperança. Estava aflita achando que não fosse sair, porque entrei para ficar dois meses e fiquei seis. Pensei que a minha família ia me deixar lá. Em um ano, fiquei dez meses internada. Passei dois Natais seguidos em clínicas. Foi horrível.
Na internação, você vai retomando a consciência, já que começa a pensar sem o remédio. Mas a vida depois de sair é bem difícil. Saí de lá muda, porque era um ambiente muito opressor. Você podia ir para o castigo, tinha gente que ficava amarrada. Vivia em constante alerta para não fazer nada errado. Eu quase não falava com ninguém, nem com a família.
Remédios ficam trancados
Quando saí da internação, igual à primeira vez, voltei a sentir as coisas da vida, e eu achei pesado, difícil, porque eu estava acostumada a fugir. Achei chato, muito chato viver sem tomar zolpidem. Tive duas recaídas depois da segunda internação. Minha família me ajudou, conversou comigo. E aí depois eu não usei mais.
Eu não me sinto segura para lidar com remédio, ainda tenho vontade de tomar doses a mais. Por isso, os meus remédios ficam trancados com a minha mãe, ela me dá a dose na hora certa. O mesmo na casa da minha esposa.
Se os comprimidos estivessem comigo, eu ia acabar tomando além da recomendação.
Eu e minha esposa, Hanna, ainda não moramos juntas, porque somos recém-casadas. Nos conhecemos na minha segunda internação, enquanto ela tratava a dependência em drogas ilícitas. Estamos juntas há dois anos.
Começamos o namoro escondido na clínica. Durante um mês fomos amigas, até que nos beijamos e desde então não paramos mais. Trocávamos cartinhas por meio de uma amiga. Eu saí um mês antes dela e fiquei esperando.
Tem desafios de se relacionar com uma pessoa que é dependente também. Às vezes, uma pensa em recair, às vezes é a outra. A gente tenta se ajudar, mas tem fases em que as duas não estão bem, as duas com muita crise de ansiedade.
Acompanhamento é com psiquiatra e psicólogo
Hoje, passo com psiquiatra e psicólogo especialistas em dependência. Meu objetivo é diminuir a quantidade de remédios e a dose, além de administrá-los, ter controle. Tomo muitos comprimidos, mas agora com acompanhamento médico.
Faço curso de programação, mas é difícil acostumar a estudar, porque faz bastante tempo que não estudava. Ainda não consegui me adaptar à vida normal, porque estou afastada do trabalho há dois anos.
É difícil fazer as coisas, porque além de tudo a depressão tira o ânimo. Não tenho aquela alegria natural das pessoas, de viver a vida, acordar feliz, achar tudo ótimo. É bem desafiador. Até tomar banho é muito difícil às vezes. Tenho que ficar horas enrolando para entrar no chuveiro.
O recado que deixo é para a pessoa levar o tratamento a sério após a internação. Só se internar não resolve casos de dependência, a menos que seja um exemplo grave, em que a pessoa está muito fora de si. A internação desintoxica. Mas o que resolve é enfrentar a vida no dia a dia, ter um bom psiquiatra e um bom psicólogo."
Por que o zolpidem pode viciar?
O zolpidem é um medicamento hipnótico, que induz o sono. Ele age no GABAA, um receptor que, ao ser estimulado, inibe o sistema nervoso central e reduz o estado de vigilância.
O tempo de uso do remédio é de quatro semanas, segundo a bula. Por isso, a medicação não é indicada para o tratamento de insônias crônicas, mas sim episódios transitórios da dificuldade de dormir.
Por ter um tempo de ação rápido, o remédio tem maior risco de dependência, explica o psiquiatra Michel Haddad, pesquisador da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
"O zolpidem tem tempo de ação muito curto. Então, muitas vezes, a pessoa começa a usar com indicação de tratar insônia, toma o medicamento e acorda de novo no meio da noite. Aí, por mau uso, toma outro comprimido", comenta o médico.
Isso causa um processo no qual cada vez mais a pessoa vai precisar de doses maiores para ter o mesmo efeito, e aí vai aumentando a quantidade de comprimidos ingeridos. Michel Haddad, psiquiatra
Como tratar a dependência química em remédios?
Assim como disse Angélica, a internação por si só não resolve casos de dependência, seja ela qual for: drogas, álcool ou remédios, por exemplo. A retomada da vida fora da clínica é sempre um desafio aos dependentes, porque as dinâmicas reais voltam a atingi-lo.
A equipe de saúde indica o melhor tratamento, e o cuidado com a saúde mental é o principal pilar. Esse acompanhamento, inclusive, é necessário para evitar o risco de transferir a dependência para outras medicações.
No caso da dependência em remédios, há retirada gradual dos fármacos. O psiquiatra também pode indicar outros remédios na tentativa de reduzir os sintomas de abstinência.
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