'Terapia ou exorcismo?': seminarista faz sucesso falando de saúde mental
Saúde mental dentro das igrejas é tabu, mesmo com um cenário que vem melhorando ao longo dos anos. No entanto, há quem tente abordar o assunto de maneira mais leve nas redes sociais. É só pensar no padre Patrick, que tem quase 6 milhões de seguidores no Instagram, por exemplo, e fala abertamente como foi a busca por ajuda quando teve depressão.
Seguindo esse mesmo exemplo, Kaíque Duarte, 29, é um dos que tentam explorar o assunto e até acolher pessoas que, assim como ele, estão estudando para ser padre: os seminaristas. Quebrando a ideia de que padres são super-heróis, ele compartilha vídeos falando que faz terapia e, mais que isso, incentiva a busca por ajuda e reforça a ideia de que transtornos mentais não são "falta de Deus".
Kaíque atua no Santuário do Pai das Misericórdias, que fica dentro da Canção Nova, em Cachoeira Paulista (SP). Além dos estudos em Teologia durante a semana, o seminarista fica responsável pelos cuidados com a manutenção do templo, na preparação dos ritos religiosos e também na formação das pessoas que estão prestando serviço no local.
"Exorcismo ou terapia?"
Em um dos vídeos que compartilhou no Instagram, Kaíque conta que recebeu a seguinte pergunta: "Não sei mais se estou precisando de terapia ou exorcismo".
Bom, eu ri, claro, é um meme. Mas a chance de você, meu irmão seminarista, religioso, freira, padre, estar precisando de terapia, é muito maior do que a chance de estar precisando de um exorcismo. Cuida da sua mente, do seu interior e pare de espiritualizar tanto. Kaíque Duarte, em vídeo publicado no Instagram
Em entrevista a VivaBem, Kaíque conta que muitos estudantes têm medo de que, ao revelar as dificuldades pessoais e a necessidade de um acompanhamento com profissionais da área, sejam dispensados do seminário.
Acho essencial, entre seminaristas, padres e todos aqueles que estão em sofrimento psíquico, a busca por profissionais adequados, como psicólogos e psiquiatras. Existem questões humanas que precisam do acompanhamento profissional. No meu seminário e comunidade, além do plano médico, há profissionais de psicologia disponíveis para qualquer um de nós.
Em 2020, o estudante já tinha buscado a terapia por iniciativa própria. Mas neste ano, o reitor da faculdade onde Teologia sugeriu o retorno ao consultório.
Desacreditava um pouco que a ferramenta da psicologia poderia contribuir com a minha formação. Cresci em um ambiente familiar, e entorno social, em que a busca por psicólogo era uma alternativa apenas para quem já estava adoecido mentalmente.
Assim como muitas pessoas, o seminarista achou que seria difícil conversar com um "desconhecido" sobre sentimentos profundos.
Como tenho um pouco de dificuldades para expressar meus sentimentos, também acreditava que não conseguiria falar muito de mim para uma pessoa que não conheço.
Terapia como aliada
Com o decorrer da terapia, mudei totalmente a minha concepção, pois tenho experimentado como essa ajuda é útil e enriquecedora. É um processo de encontro comigo mesmo, de autoconhecimento, e isso tem me ajudado muito.
Desde então, o aprendiz se dedica em "espalhar a palavra" da terapia para quem o acompanha nas redes sociais —com foco maior nos seminaristas e religiosos.
"Atendo católicos (e sou católica) e vejo o quanto a autocobrança e a ansiedade vêm crescendo nesse meio! (...) Um católico que se importa com a evangelização também se importa com a saúde do irmão, inclusive com a saúde mental", escreveu uma das seguidoras
"Faça terapia! Muito bom e importante seu posicionamento. Sou estudante de psicologia e estou pensando no meu tema de trabalho de conclusão de curso sobre a saúde mental de seminaristas, padres, etc.", escreveu outra.
Ele vai de bike até a terapia
Semanalmente, Kaíque pedala 40 km para ir e voltar da terapia —por escolha própria. "Passo por uma zona rural, contemplando uma paisagem muito bonita que me faz muito bem. Acho importante os momentos livres, seja de introspecção ou lazer com amigos, para compartilharmos nossas histórias de vida, darmos boas risadas".
Não é novidade que fazer atividade física tem um efeito positivo fisicamente, ajuda a regular os hormônios, inclusive os responsáveis pelo bem-estar, e eu tenho experimentado isso com a bicicleta.
Há vida fora da Igreja
O seminarista também gosta de pescar, fazer caminhadas por trilhas, viajar, ir à praia, sair com meus amigos para conversar, ver filmes e ouvir música. "São momentos de lazer que me ajudam a pôr a cabeça no lugar, lidar com os sentimentos, diminuir o estresse. Posso dizer, com toda certeza, que consigo encontrar-me com Deus também nesses hobbies", diz.
Por fim, o estudante acredita que a psicologia está ganhando cada vez mais espaço dentro dos seminários. Para ele, é algo que vai ajudá-lo quando, enfim, virar sacerdote, previsto para julho de 2026.
É mais um recurso que contribui para a minha formação, o melhor conhecimento de mim mesmo.
Por que saúde mental de líderes religiosos preocupa
Estudos mostram que os padres diocesanos —que vivem de forma independente, podem ter bens e recebem salário— têm 7 vezes mais sintomas de depressão e 5 vezes mais sinais de ansiedade do que a população em geral.
Uma pesquisa feita em 2008, pelo Isma (International Stress Management Association) Brasil, mostrou que padres e freiras ocupavam o topo entre as profissões mais estressantes do país -acima de policiais, motoristas de ônibus, executivos e profissionais do telemarketing.
Por trás disso, há algumas explicações, como:
São homens e, por isso, têm mais dificuldade em reconhecer fragilidades;
Vivem em uma instituição exigente e com estrutura hierarquizada;
Vida extremamente solitária;
Falta de contato com outros padres;
Necessidade de estar disponível por 24 horas;
Excesso de cobrança da Igreja e da sociedade;
Acúmulo de trabalho;
Forte envolvimento com problemas e dificuldades dos fiéis;
São vistos como "super-homens" e, portanto, não conseguem demonstrar fraqueza e pensam que dão conta de tudo.
Os especialistas citam mais medidas que poderiam auxiliar os sacerdotes:
Procurar por ajuda especializada, com atendimento psicológico e de psiquiatras, se for o caso;
Grupo de apoio, em que o padre possa encontrar vivências semelhantes às dele;
Procurar por hobbies fora das atividades da igreja;
Prática de atividades físicas, nem que seja uma caminhada;
Adotar hábitos de vida saudáveis: comer e dormir bem, ter amigos para conversar e saber descansar;
Entender que não são super-heróis e têm fragilidades.
Procure ajuda
Caso você tenha pensamentos suicidas, procure ajuda especializada como o CVV (www.cvv.org.br) e os Caps (Centros de Atenção Psicossocial) da sua cidade. O CVV funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados) pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente. São mais de 120 postos de atendimento em todo o Brasil.