'Fiquei como a Dory': vírus do herpes no cérebro a fez esquecer o passado
Marion Scaranari, de 53 anos, teve o cérebro atingido pelo vírus do herpes — o que causou uma doença rara que a fez perder boa parte de suas lembranças. Hoje, ela tenta reconstruir o quebra-cabeças que sua memória se tornou. "Sou uma viajante no tempo", diz Marion, que mora em São José dos Campos (SP). Ao VivaBem, ela conta sua história.
'Como o pouso de uma nave'
"Tive a experiência de um vírus no cérebro em 2014 e uma doença chamada encefalite herpética. Ele atingiu parte do lobo temporal direito [uma área do cérebro] e fez um estrago: literalmente, apagou minha memória.
Meus familiares contam como foi: estava com muita dor de cabeça, comecei a não falar coisa com coisa, e fui ao hospital. De volta para casa, tive uma crise epiléptica.
Fiquei sete dias em coma e quase um mês internada. Se me perguntar o que lembro disso... Eu não lembro de nada. Quando saí do coma, não lembro de reconhecer meus parentes nem os profissionais que me atenderam.
Esqueci grande parte da minha memória, não sei nem precisar ao certo. Acho que 10 anos ou mais. É como se eu não tivesse vivido esse tempo.
Ainda no hospital, tive um problema de perda da memória recente. Quando saí de lá, não sabia onde morava nem quais eram minhas roupas.
Sabe a Dory, personagem de Procurando Nemo [que tem perda de memória]? Fiquei mais ou menos assim. Não reconhecia ninguém, não sabia onde morava, não sabia de nada. Era como se eu tivesse pousado de uma nave espacial na Terra.
Falo que sou uma viajante no tempo. Quando acordei, não sabia quem era a presidente da República. Senti um impacto grande também com a tecnologia porque, por exemplo, a ideia de cinema com óculos 3D era estranha para mim.
Lembro de ir ao banheiro e não saber usar a torneira, que era acionada com sensor. Via programas na TV e pensava: 'Meu Deus, como está diferente'. Tinha um monte de personagens e atores que eu não lembrava quem eram.
Readaptação
Até tinha uma breve recordação das coisas, da minha família, mas foi tudo muito confuso. Naquela época, eu morava em São Paulo com meu então marido, minha filha e minha mãe.
Da minha filha, consigo lembrar do nascimento, mas não do aniversário de primeiro ano. Não me lembro em quais escolas ela estudou. Casamento eu sei que não tive pelo que me falaram.
Sou advogada, mas depois deste episódio não exerço mais a profissão. Para mim, é difícil retomar todo o conhecimento jurídico, já que a memória recente também ficou estranha e tenho dificuldade de memorizar coisas.
Me lembro do escritório de advocacia em que trabalhei, mas não das pessoas. É um vácuo: como se fosse uma borracha. No exame de ressonância magnética, aparece exatamente uma mancha branca no meu cérebro.
Você é a sua história e, quando essa história é apagada, você fica meio perdida. Por causa disso, passo por muitas situações divertidas, e outras constrangedoras.
Consegui agora retornar ao mercado de trabalho, como atendente de telemarketing. Essa função tem a parte da empatia, de falar com as pessoas. E foi o que me deu um caminho novo para a vida.
Impacto
Nosso cérebro é fantástico e consigo fazer minhas atividades diárias. Ainda me perco bastante: se me pedem para ir a algum lugar, preciso sair duas horas antes, e não reconheço as pessoas.
Faço um acompanhamento neurológico para a vida toda, e tomo medicamento para convulsão. Me viro com meus sentimentos e acessei as redes sociais com vontade de conhecer pessoas que passaram por esse tipo de situação, de perder a memória e saber que a história foi interrompida.
Minha família tem muita paciência. Essa coisa da memória em um primeiro momento é instigante para os outros, mas, no dia a dia, as pessoas ficam de saco cheio. Foi sempre um aprendizado para todos os que convivem comigo.
Os médicos dizem que não tem mais como recuperar esse tempo, essa ausência da história é para a vida toda. Tenho capacidade de trabalhar, de continuar, mas com relação ao que foi perdido, não tem recuperação.
Se vivi os melhores momentos da minha vida naquela época, não terei recordação. É muito louco. Vivo muitas coisas como se fosse a primeira vez e minha história é meio recortada porque é assim que está minha memória."
O que é a encefalite herpética
A encefalite é um processo inflamatório que ultrapassa a meninge e compromete e estrutura do cérebro. A doença pode ter diversas causas. No caso da herpética, é causa pelo vírus do herpes comum.
Quando o herpes ultrapassa a barreira hematoencefálica [que barra substâncias tóxicas], ele se instala no cérebro e tem uma preferência pela região temporal. Essa inflamação provoca a maioria dos sintomas, dentre eles a perda de memória.
Fernando Freua, neurologista da BP - A Beneficência Portuguesa de São Paulo.
Nem toda a infecção por herpes causa encefalite — e, na verdade, essa complicação é rara. Na imensa maioria dos casos, o vírus não chegará ao cérebro, diz o médico. Os fatores de risco para a doença são individuais e também têm origem genética. Os mecanismos que levam o vírus a causar encefalite em algumas pessoas ainda não estão claros.
Nem toda encefalite vai resultar em perda de memória grave. As complicações podem ter relação com o tempo gasto até o diagnóstico correto e o tratamento.
Os sinais e sintomas são: alterações na memória, dificuldade na linguagem e crises convulsivas.
O diagnóstico acontece por meio de exames de imagem, como a ressonância magnética, e do exame do líquor, feito por punção lombar.
A partir da suspeita, a recomendação é tratar o paciente antes mesmo da confirmação do diagnóstico. Se não tratada, a encefalite herpética pode matar. Quanto antes foi iniciado o tratamento, maiores as chances de sobreviver sem sequelas.
O problema é que, às vezes, existe um atraso de tratamento, onde já houve uma lesão que pode deixar algum tipo de sequela. Isso não é incomum.
Situações de perda de memória, como a vivida Marion, não são exclusivas deste diagnóstico. "[Lesões no cérebro] podem acontecer na encefalite herpética, mas também em incontáveis outras entidades neurológicas."
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