Passagem, 10 óculos iguais, iPad: os relatos de compras após tomar zolpidem
Talita* tinha 24 anos quando começou a tomar zolpidem, um remédio indutor do sono. Ela, que hoje tem 26, sempre teve dificuldade para pegar no sono, e descobriu que a culpa era da ansiedade e da depressão.
Mas ao invés de ajudar, o remédio trouxe experiências estranhas. Um dia, Talita acordou deitada no chão da cozinha e não se lembrava como foi parar lá. Mesmo com a consciência baixa, conseguiu ir para o quarto e se deitar para dormir de novo. Ao acordar, viu várias chamadas no celular e mensagens da irmã e dos amigos.
O maior susto, no entanto, veio ao abrir o email: sem perceber, em algum momento da madrugada, Talita comprou dez óculos de sol. Iguais.
Quando acordei, como de costume, fui olhar o meu email e lá estavam vários pedidos aprovados de óculos de sol. O curioso é que pedi só óculos de sol. Foram dez óculos comprados, superestilosos. Talita
Ela não quis cancelar a compra, já que "por sorte" os acessórios não foram tão caros. "Fiquei com alguns, mas doei outros para as minhas irmãs, para minha mãe e para minha sobrinha. Mesmo assim, ainda tenho uma boa coleção", diz.
Talita teve mais comportamentos dos quais não se lembra, ao usar a medicação. Ela tomou zolpidem por oito meses e, por vezes, esqueceu-se de como foi parar na cama. "Tirando essa em que comprei os óculos, acordei outra vez no chão da cozinha. Acho que fui pegar algo lá, o meu corpo 'desligou' e caí."
A compra dos óculos e o "desmaio" assustaram Talita. Depois disso, ela conversou com a médica para mudar o tratamento, até porque o zolpidem não melhorava a qualidade do seu sono. "Ele me fazia dormir mais cedo, mas não melhor. Eu acordava sempre querendo dormir mais e com muito cansaço", conta.
Agora, ela toma outro remédio para dormir. Por precaução, desliga o wi-fi ao se medicar para evitar compras e outras "gafes" online. Também adotou medidas de higiene do sono, aquelas que ajudam a dormir melhor, como limitar a exposição às telas. "Hoje, a hora de dormir é sagrada para mim. Uso venda e durmo com o quarto totalmente escuro. Essas práticas têm feito muito bem para mim, acordo mais recuperada."
'Alucinei que estava velejando'
O zolpidem tem efeito rápido, por isso a recomendação é tomá-lo quando for dormir e, de preferência, já na cama. Essa foi, inclusive, a orientação que Talita recebeu de sua médica. Ela conta que o remédio lhe dava a impressão de viver em "outra dimensão".
A sensação é a de ver algo acontecendo com outra pessoa. Não parece você, sabe? Sei que muita gente usa para 'dar um barato', mas é ruim demais quando você precisa de um remédio que pode te deixar em situações totalmente aleatórias para conseguir dormir. Talita
Essa sensação é bastante compartilhada por pessoas que tomam o remédio. A cozinheira Amanda Boeira, 20, por exemplo, diz colecionar "diálogos sem sentido" nos meses em que usou o zolpidem. Ela também tem dificuldade para dormir causadas pela ansiedade e depressão.
"Nesse espaço entre tomar o remédio e eu dormir definitivamente, tive vários episódios de alucinação", afirma Amanda. Entre elas, lembra-se de conversar com o padrasto, ouvir a voz dele, mesmo estando sozinha. "Todas as alucinações foram extremamente reais. Senti meus gatos em cima de mim, mas eu estava na casa de minha mãe, que não tem gatos."
Alucinei que estava em um barco, velejando no mar, senti a brisa, o cheiro de água salgada, o sol batendo na pele e até os sons das baleias. Amanda Boeira
Passagem para o Ceará, roupas e iPad
A estudante de medicina Isabela**, 25, conheceu o zolpidem por amigas. Passou a usar o remédio também para dormir mais rápido.
"Tinha certa dificuldade para dormir, mas mais preguiça de pegar no sono. Tipo, deito na cama e fico com preguiça de me esforçar para dormir. Como tem um remédio que te desliga de uma hora para outra, é mais fácil tomar", conta.
Não demorou até notar que a medicação causava outro efeito nela: "O zolpidem tira o medo de comprar. Você não fica pensando na fatura do cartão". No começo, eram roupas. Mas, com o tempo, os pedidos chegavam em sua casa sem ela saber o que teria nas caixas. "Você compra, acorda no outro dia e não lembra de nada." Estão na lista um iPad e uma cafeteira, por exemplo.
Comprei uma passagem para o Ceará porque acho que estava na promoção. Não tenho família lá, nem conheço ninguém de lá. Outra vez tomei o remédio e quis comer, aí acordei no dia seguinte e tinha geleia pela casa, no teto, na geladeira inteira, eu não lembrava de nada. Isabela
Isabela brinca que comprou quase todas as roupas da internet. "Há algum tempo, inclusive, chegou uma encomenda lá em casa, eu não sabia o que era. Abri e era roupa."
Mas a estudante teve outros problemas causados pelo zolpidem. Conta que percebeu certa dependência no remédio. Diz que o efeito inicial, antes de a pessoa pegar no sono, é viciante, mas se perde rápido com o tempo de uso. Para senti-lo, aumentou a dose sem orientação médica.
"É bom ter aquela sensação inicial, só que depois, conforme você vai usando o remédio, ele perde o efeito e você precisa de cada vez mais", comenta. "Como a gente tem o livre arbítrio, acaba tomando mais do que deveria ou quando não precisa."
Com o tempo, você perde o efeito da alucinação, e a gente busca ter de novo. Aí, você não consegue dormir, porque quer ter aquela sensação. Fica sempre buscando esse efeito, que, querendo ou não, é bom. Isabela
Isabela conta que, se não deitasse para dormir, esquecia de já ter tomado o remédio e usava mais comprimidos do que o recomendado. "Você fica mexendo no celular e esquece, ou acha que não tá com efeito e toma mais."
A gota d'água foi uma vez em que tomou oito comprimidos. Acordou com muito sono, calor e um mal-estar que a deixou com medo. "Me coloquei um limite e falei com a minha mãe. Me assustei, ela também, mais ainda", conta.
Isabela foi ao psiquiatra, que trocou a medicação. Hoje, ela faz acompanhamento mais frequente e está bem. "Consegui me livrar [do zolpidem] e não tenho mais dificuldade de lidar com ele. Inclusive, nem quero mais tomar."
Não podia ter zolpidem em casa, porque sabia que ia tomar. A minha mãe me ajudou. O que fica é para as pessoas terem cuidado. Tomar uma semana tudo bem. Agora, se tomar sempre, ele perde o efeito. E você sempre busca o efeito bom inicial, que não volta. Isabela
Por que isso acontece?
Esquecer o que fez após usar o zolpidem é uma reação conhecida como amnésia anterógrada. É a perda da habilidade de formar memórias depois de algum evento —no caso, após a medicação fazer efeito.
Esse é um efeito adverso descrito na bula como "comum" e que atinge de 1 a 10% das pessoas que tomam o fármaco.
Por que isso acontece? O remédio é um indutor do sono que atua no receptor cerebral GABAA. O mecanismo de ação rebaixa a consciência e pode influenciar na memória, daí o risco de a pessoa não lembrar o que faz após tomá-lo.
"É como se fosse um sonambulismo. Por isso é para tomar e ficar recolhido", alerta a neurologista Dalva Poyares, do Instituto do Sono (SP). Poyares indica ainda que o zolpidem não é aconselhável para tratar insônias crônicas, mas episódios temporários da dificuldade para dormir.
A bula orienta usar o zolpidem por, no máximo, quatro semanas. Mas esse tempo pode ser maior em alguns casos. "Somente o seu médico poderá determinar a duração do seu tratamento, levando em conta o tipo de insônia e seu estado clínico", diz a bula.
*Nome alterado a pedido da fonte.
**O sobrenome foi preservado a pedido da fonte.
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