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Saúde

Sintomas, prevenção e tratamentos para uma vida melhor


Com tecnologia e barco de R$ 300 mil, ONG leva saúde a indígenas amazônicos

Missão da ONG Doutores da Amazônia no Xingu Imagem: Cassandra Cury

De VivaBem, em São Paulo

02/10/2023 04h00

Nossa causa não é só levar atendimento especializado, é lutar pelos povos, denunciar, abraçar e viver a luta indígena. A gente leva cidadania. Caio Machado, fundador da ONG Doutores da Amazônia

É com esse propósito que a organização atua em comunidades indígenas na Amazônia desde 2015. Machado conheceu a região ainda na faculdade de odontologia, em 2003, durante um projeto de extensão que levava atendimento básico a comunidades ribeirinhas.

O vínculo com o espaço se fortaleceu ao passo que identificava como o acesso à saúde era precário. "Por que não, como formado, levar atendimento especializado?", indagou-se num estímulo. Junto com o pai e o irmão, também dentistas, ele iniciou missões para colocar a tecnologia a favor desses povos.

Empresas parceiras emprestam equipamentos portáteis de ponta para consultas e tratamentos, como scanner bucal e aparelho de radiologia.

Soluções que custam R$ 30 mil e estão na boca de famosos são ofertadas gratuitamente às comunidades. Há até uma ótica portátil em que os óculos de grau são feitos na hora.

Imagem: Cassandra Cury

No início, a divulgação das ações numa rede social e o boca-a-boca chamaram a atenção de mais pessoas dispostas a colocar seu trabalho a serviço dos indígenas. Desde 2015, mais de 600 voluntários atuaram nas missões nos estados da Amazônia Legal, dos quais 90% são mulheres.

Com a aderência, foi possível ampliar os atendimentos: além de dentistas, participam profissionais de enfermagem, oftalmologia, ginecologia, infectologia, pediatria e mais.

Em oito anos, a ONG realizou:

  • Mais de 54 mil procedimentos odontológicos
  • 44 mil procedimentos médicos
  • 186 mil medicamentos foram doados

"Não acho que faltam profissionais para voluntariado. Falta apoio para eles irem, mais projetos apoiados", diz Machado. Na ONG, os voluntários pagam uma taxa para participar da missão, que ajuda a manter a organização.

A dentista Sonia Casanova, voluntária desde 2019, se surpreendeu com a tecnologia empregada. "Não era a situação que eu imaginava, de atendimento básico de extrações, forramento provisório. Era reabilitação mesmo."

Aprendendo com o diferente

Um dos grandes mitos que o trabalho da ONG ajuda a quebrar é o de que todos os indígenas são iguais. Cada povo tem sua peculiaridade que o difere dos demais.

"Tem muita coisa que eles fazem por causa da cultura que a gente julga de forma errada. Sempre falo: não leve sua verdade, aprenda a verdade deles", comenta Machado.

Por isso, antes das missões, os voluntários são treinados para entender a comunidade que vão visitar, os costumes, o que podem e o que não podem fazer lá dentro.

Indígena é examinado por Jade durante missão da ONG Doutores da Amazônia Imagem: Arquivo pessoal

Mesmo assim, chegar lá é outra história, um choque de realidade. "É difícil ver uma cultura em que muitas vezes o machismo ainda é muito presente", relata Jade Fernandes de Melo, oftalmologista de Juiz de Fora (MG) que atua na ONG desde 2019.

Sonia compartilha do sentimento. Ela estranhou a prática de manter as meninas isoladas por um ano ou mais após a primeira menstruação.

Para nós, são costumes muito diferentes. Depois que você vai mais vezes, entende que é a forma que encontraram para conduzir a sociedade deles. Sonia Casanova, dentista e voluntária

Jade comenta que as diferenças também estão nos diagnósticos. Numa missão recente, ela identificou grande incidência de ceratocone entre os indígenas, doença que muda o formato da córnea e compromete a visão.

A oftalmologista notou que a região era muito seca, o que levava as pessoas a coçar os olhos com mais frequência —o hábito é a causa mais relevante da enfermidade.

Já em comunidades ribeirinhas, com um pouco mais de acesso a serviços de saúde, condições como retinopatia diabética estão mais relacionadas a má alimentação.

Missões de impacto

Para dar conta dessa diversidade e cumprir o serviço especializado, a ONG tem uma operação robusta, burocrática e cara com planejamento de quatro anos.

Tudo começa na parceria com a Sesai (Secretaria de Saúde Indígena), única forma de entrar nos territórios indígenas para missões dessa magnitude. O órgão tem o registro de cada paciente, faz a articulação e participa das ações.

Em paralelo, é preciso montar uma boa estrutura para levar cerca de 40 profissionais, quatro toneladas de equipamentos e arcar com um barco-hospital de R$ 300 mil. O apoio do governo e de empresas é essencial para que o trabalho aconteça.

"A gente passa 90 dias por ano em território indígena, tem base de atendimento e voltamos em cada região uma vez por ano, além de fazer acompanhamento via telemedicina", explica o fundador da ONG.

Equipamentos de ponta são usados nas missões da ONG Doutores da Amazônia para atender povos indígenas Imagem: Cassandra Cury

Depois de quatro anos, a equipe avalia o que foi feito e o que precisa melhorar. "Não adianta fazer atendimento pontual", atesta Machado.

As aldeias também contam com agentes de saúde indígena, que participam dos atendimentos. Machado diz que esse envolvimento ao longo do tempo cria um laço de amizade e confiança e faz os indígenas demandarem pelo atendimento.

A Sesai faz atenção básica. Quando os indígenas estão na fila para complexidade, não abrem mão de atendimento especializado. A resistência por parte deles é zero, e quando conhecem o trabalho, abraçam a organização. Caio Machado, fundador da ONG Doutores da Amazônia

Além da saúde

Machado reforça que o trabalho da ONG está intimamente ligado à luta indígena. "Como cobrar preservação da Amazônia se o indígena não consegue andar?", ele provoca.

  • Ao cuidar dos olhos, os povos mantêm a cultura com pinturas, artesanato, caça e pesca.
  • Ao tratar os dentes, as pessoas conseguem se alimentar melhor.

Atender no consultório com luz e equipamento apropriados não me torna uma profissional melhor. Levar oftalmologia onde não tenho todas as condições que tenho na cidade me faz melhor, estou pronta para qualquer adversidade. Jade Fernandes de Melo, oftalmologista e voluntária

O envolvimento com esses territórios também permite uma troca de saberes e a conexão de todo o tratamento tecnológico com a medicina tradicional dos povos, que usa folhas e ervas.

Caio Machado e demais voluntários participam dos costumes e rituais dos povos indígenas que visitam nas missões Imagem: Cassandra Cury

A fotógrafa e documentarista Cassandra Cury, que atua com a ONG desde 2019, relembra um episódio.

Em outubro de 2020, na urgência da pandemia, ela embarcou numa missão em barco-hospital. "Fomos com todo cuidado para levar ajuda, mas fomos todos contaminados [pelo coronavírus]. Os indígenas medicaram a gente e saiu todo mundo bem. A gente levou cuidado, mas nós que fomos cuidados", conta.

A relação criada também ultrapassa as barreiras da comunicação, pois a maioria dos indígenas não fala português —uma pessoa tradutora acompanha as missões.

Imagem: Arquivo pessoal

"Uma cena que sempre me marca é quando o paciente vai buscar os óculos. Ele não fala 'obrigado', mas tem um sorriso lindo que dá um quentinho no coração", relata Jade sobre a comunicação mais genuína que há.

O depoimento de Sonia é semelhante. "Eles sentam na cadeira, a gente trata o dente, eles levantam e vão embora. Não quer dizer que não estão felizes e agradecidos, apenas não sabem falar com você."

A dentista Sonia Casanova em missão pela ONG Doutores da Amazônia Imagem: Arquivo pessoal

Com o tempo, os profissionais aprendem outras formas de se comunicar e perceber as necessidades. A dentista lembra de uma moça que se recusava a abrir a boca para fazer uma extração necessária.

Depois de três dias, intuíram que ela tinha vergonha do profissional homem que iria atendê-la. Ao substituí-lo por uma mulher, a jovem deixou ser tratada.

A fotógrafa e documentarista Cassandra Cury Imagem: Arquivo pessoal

Levante e Lute

Cassandra tem uma relação muito próxima com os indígenas. O tio pantaneiro em Mato Grosso do Sul sempre evocava poesias e canções contando histórias dos povos originários.

Em seu trabalho, ela sempre buscou registrar as culturas e belezas naturais, o que a levou a conhecer um pajé e ser convidada a conhecer sua comunidade.

Foi natural, então, seu desejo de documentar o trabalho da Doutores da Amazônia após conhecer a jornada de Machado e se encantar com a primeira missão, no Parque Indígena do Xingu.

Assim nasceu o projeto Levante e Lute, composto por um livro (com fotografia dela e texto da jornalista Ana Augusta Rocha), que será lançado dia 28 desse mês, e uma ação pedagógica que conecta jovens do povo Kalapalos com estudantes da EMEF do CEU Uirapuru, de São Paulo.

Parte dessa ação envolveu a formação dos meninos indígenas para documentar a história de seu povo e cultura em vídeo. Eles aprenderam a gravar e entrevistar as pessoas que participaram do contato com os irmãos Villas Bôas, idealizadores do parque do Xingu.

"A gente quer que a história dos povos chegue cada vez mais para a população brasileira que conhece pouco", diz.

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