Microdose de cogumelo ajuda saúde mental, dizem usuários; ciência não prova

Com depressão desde os 16 anos, a atendente Camila F*, 33, teve dificuldade em seguir com o tratamento quando se mudou para a Alemanha, em 2017. Além de não falar a língua do país, ela esbarrou no alto custo das consultas médicas e na escassez de profissionais de psiquiatria.

Diante das dificuldades e vendo seus sintomas atrapalharem a rotina, ela seguiu a sugestão de uma amiga e resolveu consumir "cogumelos mágicos", que foram adquiridos pela internet.

"Eu tinha muito medo de ter alucinações ou experiências semelhantes, mas pesquisei bastante e resolvi tentar a microdosagem. Apesar de não estar totalmente curada, nunca mais sofri de anedonia [incapacidade de sentir prazer em atividades normalmente agradáveis]", conta.

Ela pediu para que seu sobrenome não fosse revelado devido ao receio, uma vez que a psilocibina, princípio ativo presente nos cogumelos alucinógenos, não é autorizada na Alemanha, tampouco no Brasil.

Na medida em que mais pesquisas demonstram que os psicodélicos podem ser uma alternativa viável —embora ainda não regulamentada— de tratar determinadas condições de saúde mental, o interesse pela microdosagem cresce, com declarações entusiasmadas de pessoas que se automedicam sendo difundidas nas redes sociais. Porém, as evidências científicas ainda são escassas e não sustentam a prática terapêutica.

"Os estudos que atestam alguma melhora no humor e na cognição ou são baseados em relatos pessoais de quem faz esse tipo de uso ou foram feitos sem o controle e rigor científico", explica Nicole Galvão, que é pesquisadora do Instituto do Cérebro da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) e professora do Departamento de Fisiologia e Comportamento da mesma instituição.

Uma pesquisa de 2021 orientou que os participantes incluíssem doses de placebo em sua rotina de microdosagem e mostrou que não houve diferença significativa entre as avaliações, indicando que o efeito placebo se equiparou ao da microdosagem. "Os participantes não sabiam quando estavam tomando a microdose de cogumelo ou quando era somente um placebo e, mesmo assim, os relatos não trouxeram diferenças significativas", diz Galvão.

No entanto, a pesquisadora destaca que o estudo seguiu os participantes por apenas quatro semanas, enquanto a concepção da microdosagem prevê que seja um tratamento de longa duração. "Talvez por isso provavelmente não se viu os efeitos que as pessoas que usam faz tempo relatam naqueles estudos observacionais", destaca.

Para a advogada Rebeca Barros, 47, que tem diagnóstico de autismo, a microdosagem serviu para melhorar o humor e diminuir a ansiedade. "Durante dois meses tomei duas cápsulas com as microdoses por dia. Faço psicoterapia, mas, em momentos de crise, os cogumelos me ajudam muito", relata.

Continua após a publicidade

Para além das questões de saúde mental, os "cogumelos mágicos" também são utilizados na expectativa de crescimento pessoal e espiritual. É o caso da garçonete Marli Silva*, 29, e do fotógrafo Guilherme Ferraz, 31. Adeptos também da ayahuasca, eles relatam uma ampliação da realidade e uma relação mais empática com as pessoas.

"Eu faço a microdosagem a cada dois meses e, com ela, sinto-me mais criativo, focado e alegre", diz ele, que também conta que a microdosagem não trouxe os efeitos negativos dos medicamentos psiquiátricos que já utilizou. "Não muda meu sono, meu peso e minha libido", diz.

Galvão, que junto com outros pesquisadores da UFRN está desbravando a ciência psicodélica no Brasil, diz que estudos com microdosagem são mais complexos devido à necessidade de uma vigilância mais intensa.

"Por exemplo, o participante teria que se deslocar até o laboratório para receber a microdose cerca de três vezes por semana, o que já seria um desafio. Além disso, no Brasil, a psilocibina não é uma substância autorizada, tornando ainda mais complicado fornecer a microdose para que o indivíduo a consuma em sua residência. Nesse cenário, a pesquisa também perde parte de sua credibilidade, uma vez que a ingestão não ocorreria em um ambiente controlado", indica.

O que são 'cogumelos mágicos' e como eles agem

Os cogumelos conhecidos popularmente como "mágicos" ou psicodélicos pertencem ao gênero psilocybe, sendo a espécie Psilocybe cubensis o tipo mais comum. A psilocibina, princípio ativo que está presente nesses cogumelos, atua em receptores neurais localizados em regiões cerebrais associadas a emoções, pensamentos, noção do tempo ou noção do "eu", entre outras.

Continua após a publicidade

Além disso, os efeitos mentais variam de acordo com a quantidade de cogumelo utilizado. "Pode ocorrer desde um relaxamento e alterações sutis de percepção até visualizações bem intensas, características de uma típica 'viagem psicodélica'", afirma a psiquiatra Débora Tavares, que estuda substâncias psicodélicas e fez parte da Associação Psicodélica do Brasil até 2022.

Efeitos corporais também variam de acordo com a dose utilizada e incluem: sedação, alterações de pressão arterial e frequência cardíaca, náuseas, alterações intestinais, sensação de tontura, de frio ou calor, entre outros.

A microdosagem de psilocibina tem raízes que remontam ao século 16, quando as pessoas já ingeriam doses reduzidas de cogumelos com o propósito de experimentar efeitos terapêuticos sem entrar em uma "viagem psicodélica". No entanto, o protocolo moderno de microdosagem foi estabelecido em 2011 pelo norte-americano James Fadiman, que é doutor em psicologia pela Universidade de Stanford, nos Estados Unidos.

Dessa forma, uma microdose equivaleria a cerca de 5% a 10% da quantidade necessária para induzir uma experiência psicodélica completa. "É uma dose baixa o suficiente que permite que a pessoa realize suas atividades normalmente, sem interrupção", diz Tavares.

Riscos da automedicação

A psilocibina não causa dependência e os riscos de fazer a microdosagem são considerados baixos. Por outro lado, pessoas com esquizofrenia, transtorno bipolar e transtorno de personalidade borderline, entre outros, não podem fazer uso devido ao risco de agravamento do quadro.

Continua após a publicidade

As pesquisadoras argumentam que, além de ser proibida no país, a compra de doses da substância pela internet envolve o risco de desconhecer sua procedência, qualidade e dosagem, especialmente porque esses produtos não são autorizados.

Elas também advertem que os pacientes não devem substituir tratamentos de saúde mental, os quais têm eficácia e segurança comprovadas, por uma terapia cuja ciência ainda tem muito que avançar.

*Nome alterado para preservar identidade da entrevistada

Deixe seu comentário

O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.