Ele viveu na cracolândia e trata dependência em Caps: 'Amor que ninguém dá'
Francisco Divino da Paz, 62, é dependente químico desde jovem. Em uma madrugada de 2021, ele vagava pela "cracolândia", região no centro de São Paulo que concentra usuários de drogas, quando sentiu que devia pedir ajuda a três policiais. Estava há uma semana sem comer direito e levava seis pedras de crack no bolso. Diz que teve, naquele momento, uma forte intuição de que era a hora de se tratar.
Os policiais o levaram ao Caps Redenção, uma das unidade dos Centros de Atenção Psicossocial para tratar o uso nocivo de álcool e drogas. Ali, começou uma jornada que dura até hoje. Está há dois anos em tratamento e sem usar droga ou beber desde janeiro, quando teve a última recaída.
Francisco conta que, mais do que o cuidado à saúde, recebeu amor e descobriu um novo sentido à vida. Isso foi essencial para manter a sobriedade.
Tudo começa em nós. Antes eu tentava me tratar, mas não acreditava. No Caps, me passaram que eu podia acreditar. Aqui você encontra o amor que ninguém dá. Francisco Divino da Paz
Os Caps funcionam em todo o país para atender as necessidades de saúde mental da população. O primeiro foi fundado na capital paulista em 1987, mas foi a partir dos anos 2000 que as unidades se expandiram para consolidar a nova política de saúde mental —baseada na lei da reforma psiquiátrica, de 2001.
Como diz o nome, esses espaços realizam o atendimento psicossocial, um conceito de atenção integral ao paciente, além dos cuidados médicos. Todas as relações dessa pessoa são levadas em conta e sua condição social também.
"Quando a gente fala de cuidado psicológico, é muito complicado dizer que se limita a uma pessoa, que ela sofre apenas individualmente", diz Wagner Laguna, interlocutor da saúde mental na Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo. "Partimos da necessidade de integração com o meio familiar de quem procura o Caps e usamos nosso papel importante de articulação."
Os Caps têm unidades para adultos, que atendem principalmente casos graves e persistentes, infantojuvenis (Caps IJ) e de álcool e drogas (Caps AD). Todos funcionam com portas abertas: basta ir à unidade para ser atendido.
Esses espaços ainda são divididos pelo volume de população e a complexidade dos atendimentos:
Caps I e II atendem municípios e regiões com população a partir de 15 e 70 mil habitantes, respectivamente, e funcionam de segunda a sexta, das 7h às 19h.
Caps III atendem municípios e regiões com mais de 150 mil habitantes, funcionam 24 horas e têm leitos de acolhimento por até 14 dias para pacientes em crise.
Há ainda o Caps IV álcool e drogas para municípios e regiões com mais de 500 mil habitantes, também com leitos e funcionamento 24 horas. É o caso do Caps Redenção, que Francisco frequenta.
Cuidar no território
Os Caps não são locais para internação. Essa é a principal diretriz da reforma psiquiátrica, movimento que começa nos anos 1980 e consolida a internação como última opção, apenas se os recursos terapêuticos acabarem.
O objetivo é tratar o paciente em seu território, sem tirá-lo do convívio e das dinâmicas da sociedade. Afinal, é para lá que ele volta após o tratamento. Essa abordagem prioriza a preservação dos laços e trabalha os conflitos sem excluir o paciente da "vida real".
É por isso que os profissionais das unidades devem entender as características da região onde trabalham, como as vulnerabilidades e as demandas sociais dessa população.
"O sofrimento psíquico se dá a partir das relações subjetivas e sociais. Estar no território permite chegar ao paciente muito mais rápido", diz o psicólogo Bruno Ferrari Emerich, doutor em saúde coletiva pela Unicamp.
Interferir considerando o território diminui estigmas e ajuda o paciente a exercer a cidadania, porque você vive, cuida, transforma ele e as suas relações no ambiente onde ele vive. Bruno Ferrari Emerich, psicólogo
'A droga veio para devastar a minha vida'
O álcool foi a primeira dependência de Francisco. Ele começou bebendo pouco, aos 23 anos, mas o ato virou companheiro para as alegrias e angústias da vida. Quando notou, já tinha desenvolvido "compulsão" pela bebida.
"Eu tinha que beber dia e noite para lidar com qualquer coisa que acontecia. Aí você perde o sentido moral da vida", afirma. "Costumava beber todo dia um copinho de cachaça antes do almoço para abrir o apetite. Você não percebe que está virando um vício e vai bebendo mais. Já tomei quatro litros de pinga por dia."
Em um ano, foi para a maconha e a cocaína. "Comecei a usar em festas e se estava triste", lembra. "A droga veio para devastar a minha vida. Foi igual ao álcool, você não percebe e vai usando."
Francisco é caminhoneiro e natural de São Paulo, onde a dependência começou. Ele morou por 12 anos com a esposa e os filhos em Santa Catarina, época em que a adicção já era forte e atrapalhava as relações e o trabalho. Em um dos piores episódios, conta que vagou quilômetros por rodovias do estado sob o efeito das drogas e, depois, na fissura pela falta delas.
O uso abusivo prejudicou o convívio com a família. O casamento acabou e os filhos romperam contato. Francisco voltou para São Paulo. Em 2009, começou a usar crack. Nessa época, o vício já era tão intenso que ele perdeu boa parte do patrimônio para financiá-lo.
Com pouco dinheiro e sem trabalho, não conseguia pagar o aluguel. Mas ainda tinha um carro e passou a viver nele. Francisco ficou por seis meses no veículo, que parava próximo ao Terminal Parque Dom Pedro 2º, no Centro de São Paulo. Decidiu vendê-lo quando a situação apertou ainda mais. Ganhou R$ 3 mil, que gastou em drogas.
Depois disso, ele se hospedou em pensões até que se juntou ao fluxo da "cracolândia", como é chamado o grande grupo de pessoas que usam drogas nessa região.
Já passei 15 dias dormindo no cemitério da Lapa. E vivi muito tempo na Praça da Sé. Tenho muitas lembranças, as piores são dos amigos que morreram nas ruas. Foram 20. Um deles, bem jovem, teve um infarto fulminante depois de usar droga, porque tinha um problema no coração e não sabia. Francisco Divino Luz
Como é o atendimento no Caps?
Quando uma pessoa chega ao Caps, ela é atendida por uma especialista da equipe multiprofissional, que pode ser assistente social, educador físico, psicólogo ou terapeuta ocupacional. Pacientes em crise são levados para a emergência e, quando necessário, os dependentes químicos passam pela desintoxicação.
As estratégias do tratamento são organizadas no projeto terapêutico singular, ou PTS, uma proposta de cuidado construída em conjunto pelo profissional e o paciente. Algumas pessoas preferem ter a rotina diária normal e passar a noite em um dos leitos do Caps, seguindo o prazo de até duas semanas. É um recurso para seguir fiel ao tratamento no início dele ou em momentos de crise, por exemplo.
"Na saúde mental, o PTS é muito importante, porque a pessoa é constantemente reduzida ao diagnóstico. Ele não nega o sofrimento e o adoecimento, mas considera outras instâncias de vida, como a família, os recursos financeiros e a história de vida", explica Bruno Ferrari Emerich.
Como é feito o PTS?
Interesse. A ideia é entender o que interfere no sofrimento e quais recursos terapêuticos disponíveis na unidade despertam mais o interesse da pessoa.
Singularidade. As escolhas são individuais: alguns pacientes respondem melhor à terapia em grupo do que à individual. Daí a importância de personalizar o tratamento para cada um.
Além da terapia tradicional. Oficinas, como as de artesanato, e práticas de convivência integram o tratamento. Todas as atividades são terapêuticas e acompanhadas por profissionais. No Caps que Francisco frequenta, há uma roda de samba às quintas-feiras, por exemplo.
Pessoa de referência. Cada paciente tem um profissional fixo para procurar se precisar de ajuda, tiver dúvidas ou quiser comunicar algo.
Revisão. Como a construção da estratégia é conjunta, o alinhamento deve ser constante. A ideia é acompanhar o PTS para entender o que é positivo, o que precisa de ajustes e por que, assim como qual o papel do profissional e do paciente na sua execução.
Caps ajudou após perda da avó: 'Vida teve um salto quântico'
As emoções na adolescência podem ser conturbadas e trazer sofrimento, sobretudo após situações adversas. Foi assim com o estudante Giovanne Lucas Belo, 17. Ele perdeu a avó materna em julho do ano passado e não reagiu bem ao luto.
"A perda da minha avó foi um baque. Eu não entendia, a gente tinha uma proximidade muito grande, era uma pessoa muito importante pra mim, que ajudou a me criar. Quando ela faleceu, foi muito complicado e muita coisa aconteceu comigo", conta.
Giovanne começou a ter conflitos na escola, com vizinhos e na família. Ele desenvolveu depressão e teve piora da ansiedade, já diagnosticada antes.
A mãe, Andrea, recebeu a indicação de uma amiga para levá-lo ao Caps. Ela e Giovanne não conheciam o serviço, mas decidiram ir ao Caps IJ II Brasilândia, na zona norte de São Paulo, em setembro do ano passado.
"A gente não tava entendendo o porquê de tudo isso. Fiquei muito mal no final do ano passado. Minha ansiedade atacava mais do que o normal e eu ficava ruim mais rápido do que antes", lembra Giovanne.
Ele começou a fazer terapia individual uma vez por semana, que o ajudou a organizar as emoções. "A terapeuta me fez entender tudo. As questões da perda da minha avó, tudo o que estava acontecendo comigo", diz.
O jovem também descobriu no Caps que tem TDAH (transtorno do déficit de atenção com hiperatividade). Diz que não foi uma notícia fácil, mas que fez sentido pelos sintomas —como dificuldades na escola. Ele conta que enfrenta julgamentos sobre isso, principalmente de colegas de classe, e tenta não se abalar.
"Alguns falam: 'Mas isso é fácil. Tem 17 anos e não sabe fazer?'. Como eu sou muito conhecido na escola, é algo que fica chato pra mim. Não tenho problema nenhum em dizer que tenho TDAH, mas atrapalha porque as pessoas ficam te olhando. Há um julgamento", diz.
Sua psicóloga do Caps o convidou para participar de um grupo terapêutico com outros adolescentes. A ideia é que todos compartilhem vivências e os seus anseios, uma abordagem bastante comum nas unidades. Ele fala que esses encontros foram essenciais para se sentir acolhido e lidar com as angústias.
"Lá, eu vejo eu não sou a única pessoa com TDAH. Você vê que não é o único que passa por problemas dentro e fora de casa", diz. "A terapia em grupo é legal, porque dá para entender como funciona a cabeça das pessoas lá fora. É muito boa para você escutar e ser ouvido. E é um alerta para não refazer a situação que outra pessoa viveu."
A minha vida teve um salto muito quântico do ano passado pra cá. Não vou dizer que não choro, ou que não tenho ataques de ansiedade, mas é muito menos do que antes. Comecei a entender melhor a minha cabeça e como não me machucar emocionalmente. Me sinto muito mais livre, calmo e tranquilo. Giovanne Lucas Belo
Leitos e 'vazio assistencial'
O Brasil tem 2.864 Caps. A região Sudeste concentra o maior número dos serviços:
- Sudeste: 1.056;
- Nordeste: 987;
- Sul: 467;
- Norte: 185;
- Centro-Oeste: 169.
A maioria (1.440) são Caps I, aqueles que atendem casos de menor complexidade em municípios pequenos. Segundo o psicólogo Bruno Ferrari Emerich, isso mostra uma cobertura de assistência importante, porque acompanha as características das cidades brasileiras: 70,6% têm população inferior a 20 mil pessoas, segundo o Censo Demográfico 2022.
No entanto, Emerich afirma existir um "vazio assistencial de Caps III", mais preparados para atender emergências e pessoas em crise. São 138 unidades no país. "Serviços com leito são muito importantes para atender usuários em crise. Isso ainda é desigualmente distribuído pelo Brasil", diz o psicólogo.
Outro desafio atual dos serviços, de acordo com ele, é restabelecer o contato com o território depois da pandemia. Assim como lidar com a maior demanda por cuidado psicológico após a crise sanitária sem prejudicar a qualidade dos atendimentos.
'Dor do desprezo'
Francisco sempre fez terapia individual, em grupo e oficinas no Caps. Hoje, ele vai duas vezes na semana à unidade: faz a sessão só com a psicóloga e um grupo com mais dependentes químicos.
Foram altos e baixos até aqui. A bebida é um dos gatilhos para as drogas. Por isso, redobra a atenção para não ceder à ela. "Se beber, eu uso tudo", diz. A primeira recaída aconteceu no início de 2022. Diz que o acompanhamento com a psicóloga foi essencial para "restaurar a autoestima" e seguir o tratamento.
O Caps é um espaço que você vai interagindo, evoluindo e cada etapa é um tijolinho. Você quer fazer melhor, quer se tratar, mas não consegue nada se não restaurar a sua autoestima. Francisco Divino da Paz
Quando chegou ao Caps, por estar em extrema vulnerabilidade, Francisco foi inscrito em iniciativas sociais da prefeitura de São Paulo —conseguiu vaga em um hotel de acolhimento no centro da capital paulista, onde mora até hoje, e faz parte do POT (Programa Operação Trabalho), que oferece capacitação profissional em busca da autonomia dos participantes.
O tratamento terapêutico e o aprendizado o ajudaram a descobrir prazeres e lidar com a fissura sem as drogas. Visitou museus pelo programa e se encantou pela arte. Motivado pelas aulas do POT, quis criar e se descobriu artesão. Francisco idealizou esculturas de animais, desenhou e usou materiais recicláveis para tirá-las do papel. Suas obras favoritas são as girafas.
Ele se orgulha de mostrar os modelos e de falar que já foram vendidas para vários estados e até outros países. Sonha em vendê-las ainda mais para conquistar a independência financeira e se emociona ao dizer que, por fazer planos, enfim tem expectativas de um futuro melhor.
A dor do dependente químico não é só a dor de perder a família. É a dor do desprezo, de se sentir a escória da sociedade. Esse é o sentimento de quem usa droga. Você quer fazer melhor, quer se tratar, mas não consegue nada se não tiver autoestima e amor. Francisco Divino da Paz
Fontes: Ademir Pacelli, psicólogo e professor da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro); Anderson da Silvia Dalcin, gerente do Caps Adulto Brasilândia; Anderson de Oliveira Silva, gerente do Caps IJ II Brasilândia; Bruno Ferrari Emerich, psicólogo e mestre em saúde coletiva pela Unicamp; Carolina Albuquerque de Siqueira, enfermeira; Estefânia Ventura, enfermeira; Fernanda Senna, gerante do CER II (Centro Especializado de Reabilitação Freguesia do Ó Brasilândia); Iderlange Gomes do Carmo, psicóloga; Jamile Caleiro Abbud, psicóloga; Rodolfo Ramos Santos, técnico de farmácia; Wagner Laguna, psicólogo e interlocutor da saúde mental na Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo.