Ele tem síndrome pouco conhecida até por médicos: 'O toque de uma pena dói'
Renata Turbiani
Colaboração para VivaBem
15/10/2023 04h04
Depois de fazer uma cirurgia no braço direito em decorrência de LER (lesão por esforço repetitivo), Júlian Mendonça, 35, morador de Itajaí (SC), desenvolveu SDRC (síndrome da dor regional complexa), uma condição de saúde bastante complicada, como sua nomenclatura já entrega, e que ainda é pouco conhecida, inclusive pela classe médica.
Este problema, retratado no documentário "O Mistério de Maya", lançado em junho pela Netflix, afeta um dos membros das extremidades (mãos, pés, braços ou pernas) de forma unilateral e é caracterizado por uma dor contínua e excruciante.
Por causa dele, Júlian foi obrigado a parar de trabalhar e não pode fazer coisas básicas, como correr, lavar louça e cozinhar —muitas vezes, não consegue nem se vestir sem ajuda. No depoimento a seguir, ele conta como sua vida mudou após o diagnóstico.
"Sou portador de SDRC há 5 anos. Passei por uma cirurgia de transposição de nervo ulnar no cotovelo direito por conta de LER e foi isso que gerou a síndrome.
No mesmo dia em que fiz a operação, meu braço inchou e comecei a sentir uma dor horrível, excruciante. Fiquei super assustado.
O ortopedista disse que essa reação não era normal e, quatro dias depois, resolveu 'abrir' novamente o local para ver se havia algum tendão rompido ou outra coisa que pudesse estar causando o sofrimento.
Não havia nada, mas a dor não passava. Eu mal conseguia me mexer e nem dormir por causa dela. O médico investigou o meu caso, foi atrás de informações, conversou com colegas, como ele me contou, e solicitou que eu fizesse alguns exames, como eletroneuromiografia para avaliar a função do sistema nervoso periférico.
Depois de 15 dias saíram os resultados e ele suspeitou que o problema era SDRC. Me encaminhou, então, para um anestesiologista especialista em dor e, depois, para um neurologista, e aí o diagnóstico foi confirmado.
Essa síndrome é pouco conhecida, e muita gente leva anos para descobrir o que tem —às vezes nunca descobre. Neste sentido, eu até que tive sorte.
Início do tratamento
Assim que foi constatado que eu havia desenvolvido a doença, comecei imediatamente o tratamento, só que não existe um específico, não existe uma cura.
Tomo uma série de medicamentos (amitriptlina, prebagalina e metadona) para aumentar o limiar da dor e, de duas a três vezes por semana, faço fisioterapia de reabilitação neurofuncional.
Nos primeiros anos após o diagnóstico, também fiz mais de 10 procedimentos de bloqueio do nervo simpático, mas eles não fizeram efeito. Meu médico tentou todos os tratamentos conversadores que existiam, e eu continuava com dores terríveis, todos os dias, o dia todo.
A sugestão foi que eu tentasse um implante de neuroestimulador medular, colocado na coluna cervical. A SDRC mexe com a modulação da dor e esse implante intercepta o sinal da dor e o troca por um choque ou outro tipo de estímulo.
A cirurgia aconteceu em junho de 2021 e foi bem difícil. Fiquei 13 dias internado, levei seis meses para me recuperar completamente e ainda desenvolvi a síndrome nas costas, por conta do acesso que feito para colocar o dispositivo.
Sigo tendo dor todos os dias —qualquer toque, por mais leve que seja, dói, até mesmo o de uma pena, coberta, roupa—, mas em nível as vezes um pouco menor. Antes, era o tempo todo em intensidade 10, agora, tenho episódios de nível 5 ou 6. O implante não resolve, mas ajuda. Com ele, posso dizer que a minha qualidade de vida melhorou.
Ainda assim, não posso fazer várias coisas, como pegar peso, correr, cozinhar, lavar roupa... Às vezes, preciso até de ajuda para me vestir.
Não saio muito de casa, pois tenho que tomar muito cuidado para não bater o braço e as costas e ter atenção com as outras partes do corpo para não sofrer alguma lesão e desenvolver a síndrome em mais lugares.
Mudança de vida
Junto com o tratamento médico, faço terapia cognitivo comportamental. Ter um acompanhamento multidisciplinar é fundamental para me ajudar a ter condições emocionais de enfrentar a doença.
O fato é que a SDRC mudou a minha vida, foi um divisor de águas. Antes, eu tinha um trabalho que amava —era assistente operacional de logística— e uma rotina completamente normal, mas, de repente, isso acabou.
Não posso mais trabalhar e nem fazer um monte de outras coisas que sempre fiz. Estou tendo que ressignificar tudo.
Por causa dos efeitos da síndrome, entrei em depressão e até cheguei a falar para os meus pais que não queria mais viver. É muito difícil sentir dor todos os dias, ainda mais uma dor intensa e fora do comum como essa e, também, é difícil fazer com que as pessoas, mesmo as próximas, entendam.
Mas, com a terapia e os tratamentos, principalmente o implante, hoje, tenho mais dias bons do que ruins. O começo foi bem desesperador, mas aos poucos aprendi técnicas para gerenciar melhor os gatilhos e exercícios para não ficar focado só na dor e na doença. Encaro cada dia como mais um dia vencido.
Desde que adquiri a SDRC, leio tudo o que encontro sobre o assunto. Aprendi bastante nestes cinco anos e, há alguns meses, decidi compartilhar com quem tem o mesmo problema. Criei um grupo de apoio para poder divulgar informações e oferecer algum tipo de ajuda, de suporte emocional.
Precisamos chamar a atenção para essa síndrome, para que os profissionais de saúde saibam reconhecê-la e manejar corretamente. Muitos não sabem do que se trata e não fazem o diagnóstico ou tratam da forma errada, o que acaba piorando o quadro.
O documentário 'O Mistério de Maya', da Netflix, é um exemplo do quanto o esse desconhecimento é perigoso.
Meus objetivos agora são conscientizar sobre a doença para que cada vez mais gente saiba o que é; mostrar que, apesar da dor, existe vida, e brigar por políticas públicas. Mesmo nos meus dias difíceis, tento de todo o coração fazer algo bom com o que tenho aprendido e vivido.
Também estou estudando. Curso terapias integrativas e complementares, mas à distância, pois nem todos os dias estou bem para ir presencialmente, e, depois, pretendo fazer uma pós-graduação em psicologia positiva e neurociência.
Quero aprender mais sobre a doença e ter um respaldo para poder fazer parceria com outros profissionais da saúde e atender quem precisa. Estou tentando fazer uma limonada com os limões que a vida me deu."
O que é SDRC?
A SDRC é caracterizada por uma dor contínua desproporcional ao evento causador, que pode ser um trauma ou uma lesão —até mesmo em decorrência de cirurgia ou doença— e, no geral, afeta um dos membros das extremidades (mãos, pés, braços ou pernas) de forma unilateral.
Essa síndrome é um dos quadros clínicos mais desafiadores da medicina da dor, por causa da sua cronicidade, tendência a agudizações e dores muito intensas. Alexandra Raffaini, coordenadora da pós-graduação de medicina intervencionista da dor do Einstein (SP)
No passado, o problema já teve diversas nomenclaturas —causalgia, distrofia pós-traumática, distrofia simpático-reflexa, distrofia de Sudeck, síndrome mão-pé, algodistrofia, algoneurodistrofia e dor mantida pelo simpático— até que, em 1994, a IASP (Associação Internacional para o Estudo da Dor, em português) adotou uma padronização e a terminologia conhecida atualmente.
A partir daí, foi desenvolvida a sua classificada e feita a divisão em dois tipos: tipo 1, quando ocorre após uma lesão que não danificou diretamente os nervos do membro afetado, e tipo 2, quando ocorre após uma lesão que danificou diretamente os nervos do membro afetado.
Em ambas, os sintomas são bem parecidos, podendo incluir:
- Dor latejante
- Queimação, cãibra, fisgada, formigamento ou sensação de agulhada
- Mudança na temperatura e na coloração da pele
- Anormalidade tróficas (alterações nas unhas, no crescimento dos pelos e na textura da pele)
- Presença de edema (inchaço)
- Sensibilidade extrema
- Diminuição da amplitude do movimento
- Disfunção motora (perda da força, tremor, atrofia, contrações musculares e rigidez)
O paciente deve relatar alguns desses sinais e o diagnóstico é feito por exclusão, afastando todos as demais enfermidades que têm quadros clínicos semelhantes, como doenças reumatológicas e vasculares, infecções de pele, neuropatias, compressões nervosas e fraturas.
Além disso, são levados em conta análise de história clínica e exame físicos, laboratoriais e de imagem.
Segundo Raffaini, é bem comum a demora no diagnóstico. Para exemplificar, ela cita um estudo realizado em 2008 na Coreia do Sul, que mostrou que as pessoas passam por uma média de 5 consultas até a suspeita de SDRC e encaminhamento ao especialista em dor, sendo que algumas chegam a se consultar com 10 profissionais diferentes.
"É um percurso muito longo, que pode levar até dois anos, e isso interfere diretamente na evolução da síndrome. Apesar de ela não ter cura, tem controle, e quanto antes for diagnosticada, melhor será o prognóstico", destaca a médica.
No Brasil, não existem dados sobre a prevalência na população. O que se sabe é que a condição pode ser diagnosticada em todas as idades, embora afete mais pessoas entre 37 e 52 anos, e que o membro superior é geralmente o mais atingido.
Causas ainda são desconhecidas
As causas da SDRC ainda não são tão totalmente conhecidas, por isso, não dá para cravar porque algumas pessoas a desenvolvem e outras não.
A médica do Einstein diz que evidências indicam que quem tem a síndrome apresenta alterações dos nervos periféricos (desbalanço de mediadores pró-inflamatórios e anti-inflamatórios), do sistema nervoso central (mudanças na atividade do córtex sensorial, do córtex motor e de áreas afetivas cerebrais) e nos nervos simpáticos.
Não tem cura e o tratamento é multidisciplinar, com objetivo de reduzir a dor, restaurar a funcionalidade do paciente, preservar a função do membro afetado e melhorar a saúde mental.
As opções terapêuticas iniciais incluem medicamentos (anticonvulsivantes, antidepressivos e opioides são os mais utilizados) e reabilitação física. Nos casos em que eles não resultam em um controle satisfatório da dor, são indicados os procedimentos invasivos: bloqueios neurais e, por último, neuroestimuladores.
Junto a tudo isso, é altamente recomendada a psicoterapia, pois grande parte dos pacientes desenvolve transtornos psiquiátricos, em especial ansiedade e depressão.
"O tratamento é demorado e difícil. Nem sempre o que funciona para um funcionará para outro, então, é preciso analisar cada caso separadamente e buscar novas estratégias. Mas com o diagnóstico precoce e intervenção correta é possível ter um controle e garantir melhor qualidade de vida", completa Raffaini.