Amizade transformou jornada do câncer e virou projeto que apoia mulheres
Maio de 2022. Numa sala de hospital no Rio de Janeiro, duas mulheres dividem o mesmo aparelho que refrigera as toucas que usam enquanto fazem quimioterapia. Elas estão separadas por uma cortina.
De um lado está Bianca Benedetti, com sua intensa espontaneidade e desejo de conversar e conhecer gente nova. Do outro está Vanessa Almeida, na introspecção da leitura de um livro, querendo apenas silêncio e paz. As duas estão em tratamento de câncer de mama.
Um enfermeiro se aproxima de Vanessa e afasta a cortina até a metade, mas não o suficiente para que elas se vejam. Inquieta, Bianca termina de abrir a divisória e, num ímpeto genuíno, questiona: "E aí, qual o teu nome?".
Vanessa, que tinha recusado a companhia da filha nas sessões, se assusta com a intromissão. Ela só quer ficar quietinha em seu canto, fazendo seus mantras. Mas a "abençoada" ao lado começa a fazer perguntas para as quais ela não tem resposta. Tipo de tratamento. Tipo de químio. Tipo de câncer. Ela só queria focar na cura.
"Bianca mandava entregar delivery de salgadinho e eu tomando sopa para não enjoar. Eu estava assim: 'Meu Deus do céu, essa mulher é maluca?'", recorda Vanessa, 43, rindo. "Vanessa era a lady, toda plena", comenta Bianca, 40.
Mas Vanessa se sente agradecida, porque foi desse encontro improvável que nasceu uma amizade, uma rede de apoio e um projeto para acolher mulheres com câncer. "Ela mudou minha perspectiva do que poderia ser um tratamento oncológico."
Compreender nas entranhas
Bianca e Vanessa sempre tiveram apoio de amigos e família ao longo do tratamento de câncer. Esse é um aspecto considerado importante para 62% de pacientes ou ex-pacientes que tiveram suporte da família nesse momento, segundo pesquisa do Instituto Vencer o Câncer em parceria com a IQVIA.
Mas há medos, angústias e —por que não— felicidades que só quem vive a jornada oncológica sabe. Por mais que haja empatia e compreensão, apenas alguém que vivencia a mesma situação sabe no íntimo o significado de um olhar ou pergunta.
Foi por isso, e por entender a importância do amparo, seja ele de quem for, que as duas novas amigas idealizaram o Projeto Casa Florescer. A proposta é mostrar que existe vida no câncer, que a doença e o tratamento não precisam limitar as mulheres diagnosticadas.
O objetivo maior é ter um espaço físico com serviços psicológicos, nutricionais e de bem-estar, com oficinas de amarração de lenço, aulas de ioga e artesanato. Seria uma casa para acolher pacientes e promover eventos de conexão entre as chamadas oncofriends (amigas oncológicas).
Enquanto isso não ocorre, elas promovem visitas em hospitais às pacientes e realizam encontros em lugares que apoiam a causa. A primeira ação ocorreu em março deste ano, onde elas fizeram o tratamento.
Flores e escuta empática de quem entende a dor do outro foram os recursos entregues a quem estava lá, num gesto de mostrar que já estiveram naquela cadeira e há vida depois dela.
"A gente sentiu na pele como era importante aquele momento de pacientes serem vistas como mulheres, não como pacientes em tratamento", comenta Vanessa. "Era uma gotinha de esperança que a gente ia plantando em cada uma."
Retribuir
A ideia do projeto saiu da mente fervilhante de Bianca. Sem um real para começar, sem saber como fazer, Vanessa topou. "Um pouco do meu surto passou para ela pelo cano que a gente dividia", brinca Bianca.
O retorno dessa loucura tem sido motivador para elas. "O feedback que tivemos foi além das nossas expectativas. Elas falando que a gente mudou o dia delas, a perspectiva, que se encheram de esperança", relata Bianca.
Numa dessas ações, elas foram entregar um presente a um rapaz que fazia quimioterapia. Ele contou que o pai dele costumava ficar ali no hospital tocando saxofone para as pacientes.
"Falei que, na minha última químio, o pai dele tinha tocado para mim. Depois recebi mensagem do pai dele, agradecendo por cuidar do filho. Então, eu retribuí, porque um dia ele cuidou de mim", ela recorda, emocionada.
É esse tipo de cuidado que inspira as amigas no projeto, que busca também evidenciar que o câncer não define quem a pessoa é. Mais do que serem cuidadas como pacientes, elas precisam ser cuidadas como mulheres.
"O câncer muda muito nossa concepção da autoestima, então os encontros são para devolver esse olhar de cuidado, amor e carinho", diz Vanessa.
O acaso que transforma
Assim como o encontro que tiveram, Bianca descobriu o câncer de mama por acaso. Ao se secar depois do banho, sentiu um caroço em cima do peito que a assustou um pouco. Como era Carnaval e estava com viagem marcada, resolveu investigar na volta, com um ultrassom.
Quando foi fazer o exame, a médica já sugeriu procurar um mastologista "urgente", pois havia um nódulo suspeito. "Para mim, ali, desabou, porque estava sozinha e, para mim, não era nada demais, só uma ultra", lembra.
O resultado da biópsia saiu em abril do ano passado, confirmando o tumor. Bianca fez 16 sessões de quimioterapia, 15 de radioterapia e retirou a mama esquerda. No final de agosto deste ano, ela fez mastectomia na mama direita por prevenção, pois um teste genético positivo indicou possibilidade de retorno da doença.
"O câncer veio como uma bomba. Toda paciente sente que é uma sentença de morte e começa a rever tudo que queria fazer na vida", comenta. Foi assim com ela, uma urgência de viver com intensidade os momentos mais corriqueiros do dia e, como diz, "não perder tempo com besteira".
Vanessa teve o mesmo sentimento ao receber o diagnóstico. Foi depois de sentir um carocinho ao apalpar o seio que a saga começou. A mamografia e o exame clínico da ginecologista não acusaram suspeita, a ultrassom também não.
Ainda assim, ela foi orientada a consultar um mastologista, que repetiu o último exame e disse que não deveria ser tumor, pois os nódulos não tinham aspecto de malignidade. A última cartada foi fazer uma biópsia. "Esperar o resultado foi dolorido", diz.
Quinze dias depois, o exame confirmou o câncer. Vanessa foi encaminhada para a mesma oncologista de Bianca e seguiu com o tratamento: seis ciclos de quimioterapia, mastectomia e radioterapia. Hoje, faz uso de imunoterapia e bloqueador hormonal.
Em meio às sessões, continuou trabalhando, mas viu a rotina se transformar. "Foi o momento de parar e analisar o que eu queria. Arrumei tempo para terapia, atividade física. Mais de um ano depois, não gostaria de voltar a ser o que era antes."
Acesso a tratamento ainda é muito desigual
O tempo é um fator crucial para o tratamento do câncer de mama. Quando detectado de forma precoce e ainda em estágios iniciais, as chances de cura e controle da doença aumentam significativamente.
Os exames de rastreio como a mamografia são a chave para encontrar o tumor em estágios iniciais, mas além do diagnóstico precoce, é necessário também que o tratamento seja iniciado com rapidez, realidade distante para muitos pacientes.
Uma pesquisa realizada com 1.237 pessoas de todas as regiões do país que já foram diagnosticadas com câncer de mama e estão ou estiveram em tratamento indicou que:
- 51% das pacientes que utilizam plano de saúde iniciaram seu tratamento dentro de 30 dias após o diagnóstico
- 34% das pacientes do SUS vivenciaram uma situação semelhante
- 37% das pacientes do SUS tenham iniciado o tratamento dentro do limite de 60 dias estabelecido por lei
- mas 28% de pacientes enfrentaram atrasos, chegando a até seis meses em alguns casos
- no setor privado, 13% das pacientes também relataram início do tratamento após 60 dias
- todos os dias, cerca de sete novas pacientes chegam ao SUS com o diagnóstico de câncer de mama HER2 positivo, em estágio inicial e com alto risco de recorrência da doença (DataSUS)
Os dados são da pesquisa "Um Olhar Sobre o Câncer de Mama no Brasil", feita pela Roche, em parceria com a Femama e Instituto Oncoguia, e realizada pela Editora Abril. As entrevistas foram feitas através de formulário online em maio de 2023.
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