Ele coreografa cenas de sexo em séries da Netflix: pilar básico é consenso
David Thackeray é coordenador de intimidade da Netflix e responsável pelas séries "Sex Education" e "Heartstopper", Ou seja: ele é a mente por trás de toda essa "coreografia" das cenas de sexo e pegação. Mas não só isso. É ele quem decide como a intimidade será mostrada ao público, até mesmo se for um simples toque na mão.
Uma das preocupações de David é garantir que os atores se sintam bem e prontos para simular sexo em frente às câmeras. Após o movimento #MeToo, sua função passou a ser ainda mais valorizada, pois garante que há alguém no set que evite qualquer situação de desconforto e crime no trabalho.
"O coordenador de intimidade não é terapeuta. Mas existem pessoas com as quais eles podem falar, caso precisem. Minha função é tirar a ansiedade e as preocupações do processo", disse David em entrevista exclusiva a VivaBem.
Ensaios, figurinos e proteções para que não haja nenhum tipo de atrito entre quem filma é responsabilidade de David. Na entrevista ele conta um pouco como é seu dia a dia no set e como trabalha para que o bem-estar dos atores seja mantido o tempo todo.
VivaBem: Como você descreveria o trabalho de um coordenador de intimidade para quem nunca ouviu falar da profissão?
David: Sou a pessoa que abre os caminhos no processo de comunicação e transparência com toda a produção, não apenas com o elenco. O pilar principal do meu trabalho é o consenso e respeito aos limites.
Começa comigo dando uma olhada em todas as cenas que requerem intimidade do roteiro, conversando com o diretor e produtor sobre esses momentos e o que eles esperam que aconteça, se teremos cenas de nudez ou não, e depois falando com os atores para entender quais são as suas preocupações e dúvidas.
Para entender se eles estão confortáveis, o que eles precisam usar de proteção para cenas de nudez... Levo as ponderações para a equipe de figurino.
Existe algum tipo de preparo psicológico com os atores que vão gravar essas cenas?
O coordenador de intimidade não é terapeuta. Mas existem pessoas com as quais eles podem falar, caso precisem.
Minha função é tirar a ansiedade e as preocupações do processo. Quebrar o mistério que existe em torno de gravar essas cenas. É dar o apoio dizendo que o ator vai estar naquela posição, que terão ensaios, pessoas limitadas no set, que será acordado antes onde pode ser tocado e onde não.
E quando falarem 'corta', estarei lá com o roupão para protegê-lo. Quando você começa a trabalhar nas cenas que simulam sexo percebe rapidamente que é tudo muito técnico.
Você percebe que sua perna vai ficar em uma posição por um longo período, que vai existir espaço entre a região genital dos atores e barreiras para que ninguém se encoste. O elenco também sabe onde as câmeras estarão e quando tudo termina. É uma ginástica.
Quando começamos a filmar os atores percebem que estão confortáveis ali e checam se os parceiros estão bem também. A ideia é que seja como fazer qualquer outro tipo de cena.
E como você ajuda os atores a focarem mentalmente nessas cenas que são mais delicadas de gravar?
É dando a eles o roteiro da cena e o roteiro da coreografia que vão fazer em frente às câmeras. Assim eles sabem onde o corpo estará, como o personagem está emocionalmente naquele momento, o que precisa dizer.
E eles sabem quanto tempo vão precisar simular o sexo, porque está coreografado. Sabem quando está chegando ao fim. A atuação também tem a parte de entender por que aquela cena está acontecendo, por que o beijo, por que o toque é importante...
Todas as cenas são ensaiadas antes de serem gravadas?
Sim, ensaiamos tudo para entender onde há o consenso do toque e onde os atores preferem não serem tocados. Queremos ouvir eles dizendo 'não' para que o 'sim' seja, de fato, aquilo que se sentem bem. Podemos mudar as posições levemente e aí coreografamos todos os momentos, passo a passo.
É quase como uma cena de luta ou de dança. Na hora de gravar, deixamos uma quantidade limitada de pessoas no set. É uma loucura, mas o pilar principal é o consenso.
E como você se prepara para essas cenas? Em "Heartstopper", por exemplo, estamos falando de primeiro beijo e toque na mão. Já em "Sex Education" em práticas que os adolescentes querem testar na cama?
O processo é o mesmo. A diferença é que, em "Heartstopper", o elenco era muito jovem. E a série toda é sobre intimidade e descoberta daquele relacionamento. Conversei muito com Alice [Oseman, autora do livro que inspirou a série], Eros [Lyn, diretor] e Patrick [Walter, produtor], o que ajudou bastante.
Nosso foco era a qualidade do beijo. Eles estão em um relacionamento? Eles já beijaram alguém antes? Vai ser a primeira vez que eles se tocam? O que vai significar?
Já em "Sex Education", além da intimidade, tem também um toque de comédia. Como transformar aquele momento em algo engraçado? A melhor parte dessa série é que as cenas existem por um motivo, seja para uma aula ou para a jornada de desenvolvimento do personagem. Tem uma história.
Então é divertido trabalhar com essas cenas. E também tem o caso das posições sexuais que vamos escolher para cada momento e o que é certo para o personagem naquele momento da história.
E se alguém congelar e não conseguir seguir o roteiro?
Tudo bem. A gente corta a cena e espera. Procuramos entender o que aconteceu para que o ator pedisse para parar. Isso acontece o tempo todo. Pode ser porque alguma proteção saiu do lugar, porque a posição está estranha... É só parar, analisar e depois continuar.
Não sei como era isso antes do movimento #MeToo, mas você considera importante sua presença no set? Para a proteção dos atores?
Muito. A mudança que você vê nos sets e os cuidados com essas cenas está muito melhor. Muitos atores me falaram que se sentem mais confortáveis e que gravar essas cenas ficou mais fácil com a minha presença. Até me agradecem. Até os diretores concordam que é melhor ter alguém pensando especificamente nessa cena. Eu acho que é uma posição necessária hoje em dia.
Você é ator e diretor. Como se tornou um coordenador de intimidade?
Ainda tento equilibrar essas três funções. Sou formado como ator e depois me tornei diretor. Mas ser coordenador de intimidade realmente toma a maior parte do meu tempo.
Tive um papel bem pequenininho em "Heartstopper" e foi legal voltar a atuar. Nesse momento estou dirigindo um curta-metragem e o episódio piloto de uma nova série de TV. É gostoso continuar fazendo de tudo um pouco. E é um privilégio, como coordenador de intimidade, trabalhar com atores, diretores e séries tão incríveis. É algo que sempre sonhei em fazer.