'Cheguei ao hospital com falta de ar e saí sem um braço'
De VivaBem, em São Paulo
21/10/2023 04h00Atualizada em 21/10/2023 18h29
Bárbara Maia, de 27 anos, estava se preparando para começar o internato, a fase de treinamento prático da faculdade de medicina. Mas o estágio no hospital foi adiado depois que a estudante descobriu uma doença autoimune: a síndrome antifosfolípide (SAF), também conhecida como síndrome do "sangue grosso".
A doença provoca a formação frequente de trombos pelo corpo e, no caso de Barbara, tomou seu pulmão, braço direito e cabeça. O que começou como uma falta de ar levou a dois AVCs, uma traqueostomia e a amputação de um dos braços da jovem, que sonha em ser cirurgiã.
A saga da estudante começou em 7 de maio. Diagnosticada com asma há vários anos, Barbara achou que a dificuldade para respirar era mais um episódio da doença, mas decidiu ir ao hospital depois que os remédios de rotina não controlaram a crise.
"Lá eu tomei uma medicação e os sintomas pararam. Fui para casa, mas logo voltei a sentir muita falta de ar, não consegui nem ir pra aula, e decidi voltar para o pronto-socorro", lembra.
Sem forças para pedir um táxi, Barbara pediu ajuda para a mãe, que chamou uma ambulância. Na nova ida ao hospital, os médicos constataram que a jovem precisava de oxigênio, mas não conseguiram estabilizar seu quadro. Foi então que eles decidiram intubá-la.
A mineira, que mora em Belo Horizonte, acordou apenas 36 dias depois, ainda na UTI (Unidade de Terapia Intensiva), já sem o braço direito. Enquanto estava em coma, ela também passou por complicações causadas pela própria internação, como falência renal e hemorragia no intestino. A paciente recebeu 13 bolsas de sangue para repor o que tinha perdido.
Amigos de Barbara fizeram campanha por vaga em hospital
Cliente do convênio Unimed, Barbara foi a um pronto-socorro ligado ao plano, mas descobriu que não poderia ficar internada no hospital a não ser que desembolsasse o valor para um leito particular.
"Meu plano de saúde estava em período de carência, então eu não poderia ficar a não ser que pagasse. A diária era cerca de R$ 15 mil, eu não tinha condições", conta.
O período de carência é o tempo que um conveniado precisa esperar para começar a utilizar os benefícios do plano.
Depois que Barbara postou sua história no TikTok, onde conseguiu mais de 3 milhões de visualizações, muitas pessoas questionaram a carência do plano em casos de urgência, afirmando que o hospital deveria ter aprovado sua internação.
Procurada por VivaBem, a Unimed afirmou que "segue integralmente o que é determinado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS)" e reforçou que Barbara ainda não estava protegida pelos benefícios do plano, mesmo que seu caso fosse urgente.
"A cooperativa esclarece que a paciente recebeu toda a assistência médica em uma unidade de Pronto Atendimento e, em seguida, foi transferida para uma unidade do Sistema Único de Saúde, já que no período o contrato firmado entre plano de saúde e a beneficiária estava em período de carência."
"Meus colegas, professores e uma médica da Unimed se movimentaram e conseguiram uma vaga pra mim na Santa Casa. Eu dou graças a Deus que fui para o SUS", afirma ela, que voltou ao hospital em agosto para visitar a equipe que cuidou do seu caso.
"Eu não conseguia nem levantar o braço"
Depois de acordar do coma, Barbara passou mais seis dias na UTI antes de ser transferida para um quarto na área de cuidados prolongados. Ainda desacordada, ela passou por três cirurgias no braço direito, duas delas para tentar salvar pelo menos parte do membro.
"A primeira tentou revascularizar o braço, mas a pontinha dos meus dedos começaram a ficar pretas e eu tive uma infecção. Aí eles amputaram até metade do braço, mas me deu uma infecção no osso, onde é muito difícil de penetrar antibiótico, foi então que aconteceu a amputação na área do ombro", detalha.
As complicações levaram Barbara a ficar mais 45 dias no hospital, já depois de sair da UTI ela precisou reaprender até mesmo a andar.
"Eu comecei a fazer fisioterapia e terapia ocupacional. Eu não conseguia nem levantar o braço, porque tive dois AVCs e fiquei com o lado esquerdo paralisado", conta a estudante.
Barbara segue com os tratamentos e ainda precisa de ajuda para algumas tarefas, como subir uma escada ou usar o fogão. Canhota, ela ainda está recuperando a força da mão e já voltou para a faculdade no início de setembro.
Beneficiária do FIES, a estudante vai refazer o oitavo semestre — que acabou perdido por causa de seus problemas de saúde.
"Para estudar ainda está um pouco complicado, porque a memória e a concentração ainda não voltaram por completo. Fui a uma neurologista que disse que pode ser pelo trauma, mas estou me sentindo mais preparada a cada dia",
Estudante confundiu sintomas com efeitos do anticoncepcional
Barbara tinha sofrido com trombos no passado, mas nunca soube que eles faziam parte de uma doença autoimune. Segundo ela, a descoberta foi adiada porque os trombos causados pela doença nunca causaram maiores complicações.
"Eu tive (trombo) venoso em 2018, mas foi superficial, no braço e no pé. Achei que era do anticoncepcional, fui ao hospital três vezes, e eles passaram uma pomada chamada Trombofob, que desfaz trombos superficiais. Depois disso, interrompi o uso da pílula, mas voltei esse ano, uns três meses antes da internação", conta.
Não existe confirmação de que o anticoncepcional está conectado aos novos trombos da estudante, mas ela explica que o medicamento "pode ter agravado" a situação, já que há registros de mulheres que usam o método e tem tromboembolismo.
"Agora não posso mais usar certos anticoncepcionais e não posso deixar de tomar anticoagulante e tenho que tomar cuidado com quedas e com machucados", diz.
Agora, a estudante aguarda por mais um passo muito importante na recuperação: um braço biônico. Bárbara chegou a abrir uma vaquinha para conseguir o valor do aparelho, mas encerrou a arrecadação mais cedo após ganhar ajuda de empresas envolvidas com a tecnologia.
A prótese imita os movimentos feitos por um membro biológico e pode ajudar Barbara a realizar seu sonho: ser cirurgiã.
A minha vontade se mantém firme, eu não desanimei. Fiz os testes pra ver se era viável colocar a prótese, porque sobrou muito pouco, mas é viável. Fiquei muito impactada porque cheguei no hospital com uma falta de ar e perdi meu braço, mas acho que lidei de uma forma tranquila e não me deixei cair em depressão, porque é a história da minha vida."
Síndrome é rara e tem diagnóstico difícil
Helena Visnadi, hematologista no Hospital São Luiz Anália Franco, explica que a SAF é uma doença autoimune rara, não hereditária e muito mais comum em mulheres. Seu diagnóstico é muito complexo e surge normalmente já depois das complicações, como no caso de Bárbara.
"Tem paciente que chega com histórico de abortos de repetição, a gente vai investigar e acha essa síndrome. Mas também existem essas tromboses simultâneas, como a dela, que a gente pode classificar como SAF catastrófica", explica.
A médica também deixa claro que um primeiro episódio de trombose não é suficiente para que a doença seja cogitada. Normalmente, o protocolo que verifica a presença de anticorpos da SAF começa apenas na segunda ocorrência — ainda mais quando existe o uso de medicamentos como anticoncepcional, que aumenta os riscos para o problema.
"E é importante que o episódio não seja 'provocado', que não aconteça depois de uma cirurgia ou de uma imobilização — como uma perna engessada. A questão é quando vem a trombose do nada", detalha Visnadi.
Depois de um primeiro positivo para a SAF, o exame ainda é refeito seis semanas depois dos trombos para realmente fechar um diagnóstico, o que torna o processo de tratamento ainda mais lento.
No caso de Bárbara, a médica afirma que os anticoagulantes serão uma obrigação pelo resto da vida. Os medicamentos "afinam" seu sangue e impedem que o problema volte.
"A SAF tem a particularidade de que além do trombo venoso ela também dá trombo arterial, que é mais complexa. Além disso, a doença também pode ser secundária e estar ligada a outras doenças autoimunes. Então quando ela é descoberta fazemos exames para vários outros problemas, como lúpus, por exemplo", diz.
Apesar das complicações, mulheres com a mesma doença ainda podem fazer uso de certos anticoncepcionais, desde que eles não tenham hormônios combinados. Ou seja, pílula apenas de progesterona e o DIU não são totalmente proibidos — apesar de ser imprescindível consultar um médico.
"O que nós definimos como fator de risco é o tabagismo e a obesidade. Além disso, é necessário um cuidado quando for fazer uma cirurgia, por exemplo, de planejar direitinho o uso de anticoagulante, interromper um tempo antes, e evitar atividades físicas de muito impacto também, que possam causar trauma", completa Visnadi.