Ela perdeu a visão, ele, a força: 'Esclerose múltipla uniu a gente'

A história do casal Ivan e Júlia é inusitada: os dois se conheceram por causa da esclerose múltipla, uma doença inflamatória, progressiva e autoimune que afeta o cérebro e a medula.

Os dois foram diagnosticados em momentos diferentes —primeiro ele e, depois, ela—, mas só se conheceram em um grupo de pacientes com a doença. Júlia Brunharo, 21, tinha acabado de receber o diagnóstico e estava preocupada, procurando ajuda sobre as medicações.

Ivan Souza, 42, já tinha passado pelo mesmo que ela, mas três anos antes. O servidor público tentou tranquilizá-la, pois já tinha usado o mesmo remédio que ela iria iniciar em breve. Falando quase diariamente sobre questões envolvendo a esclerose múltipla, a amizade foi crescendo pouco a pouco.

Na época, há cerca de 2 anos, a estudante estava em um relacionamento que passava por uma crise. Além disso, Ivan morava em São Bernardo do Campo, em São Paullo, e Júlia em Campo Grande, em Mato Grosso do Sul. Com o fim do namoro e a amizade crescendo, os dois foram ficando cada vez mais próximos.

Foi a esclerose múltipla e o medicamento que uniram a gente. Mas falávamos de tudo, sobre família, Deus, dos cachorros, tudo que aparecia na cabeça. A doença ficou em segundo plano, foi só o que nos apresentou. Júlia

'Engasguei e quase morri'

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Imagem: Arquivo pessoal

Em 2014, Ivan teve o primeiro sintoma da esclerose múltipla: o braço esquerdo ficou totalmente dormente e sem força. "Fiz vários exames e não descobrimos a causa", conta.

Após três anos, o servidor público começou a sentir dificuldade para engolir. Um dia, ele engasgou e quase morreu. Foi aí que ele decidiu ir atrás e, assim como vários pacientes, passou em diversos médicos até descobrir o que tinha, desde gastroenterologista, especialistas em cabeça e pescoço, neurologista, etc.

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Depois de fazer uma ressonância, um dos médicos comentou que poderia ser a doença. "Meu aniversário era dia 24 de novembro e, no dia 28, recebi o diagnóstico. Foi um presente de aniversário", brinca.

Desde então, Ivan iniciou o tratamento e nunca mais teve sintomas da doença. Ele toma um comprimido diário e, desde que conheceu Júlia, foi morar com a namorada em Campo Grande.

Júlia teve perda de visão: 'Só chorava'

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Imagem: Arquivo pessoal

Os sintomas de Júlia foram diferentes de Ivan: ela sentia muitas dores na perna direita e, em seguida, perdeu as forças. "Fiquei três meses com dificuldade para subir no ônibus, por exemplo, e ia procurar um ortopedista. Mas melhorou o incômodo e deixei passar", lembra a estudante.

Já em 2021, os sinais da doença pioraram. Júlia perdeu a visão do olho direito e sentia muita dor na região. Ela procurou o médico e, depois de fazer os exames, já foi internada no hospital.

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"Os exames descartaram outras doenças e o neurologista fechou o diagnóstico de esclerose múltipla", diz. Ela passou cinco dias internada para tomar a medicação até a visão voltar ao normal.

O primeiro tratamento indicado pelo médico envolvia a aplicação de uma injeção todos os dias, o que foi ficando difícil para Júlia ao longo do tempo.

Chorava muito. Não conseguia aceitar. Morava com uma tia-avó na época, ela tinha diabete e precisava de injeção todos os dias. Me cuidei a vida toda para não passar o mesmo. Pedi para o neurologista trocar a medicação e agora tomo um por via oral. Júlia

Aliás, Ivan e Júlia tomam o mesmo remédio que é adquirido na farmácia de alto custo gratuitamente —sem o SUS, o valor seria de R$ 9 mil a R$ 11 mil em cada caixa que dura um mês.

"Com fadiga, não dá"

A compreensão sobre as limitações da doença fez toda diferença na vida de Ivan e Júlia. Eles se entendem e sabem que não é "frescura" quando um dos dois não está bem, tanto na esfera sexual como na pessoal.

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Imagem: Arquivo pessoal

Assim que Ivan foi conhecer Júlia em Campo Grande, ele contou que não sabia como as coisas iriam acontecer. Mas, como os dois já eram amigos e tinham intimidade, aquilo não foi um problema.

A gente consegue identificar quando um não tá a fim. Não é porque a pessoa não está com vontade, é pela fadiga. É bem comum senti-la, principalmente em uma cidade que é quente, em dias de muito calor. Ivan

No começo, quando ainda não namorava Ivan, Júlia sentiu uma diminuição da libido. Mas o momento não era muito favorável: estava constantemente preocupada com a medicação e o antigo relacionamento passava por uma fase ruim.

Agora, juntos, os dois têm mais facilidade de compreensão. O casal também faz parte da Asmem (Associação Sul-mato-grossense de Esclerose Múltipla) —ela como presidente e, ele, como vice, encontrando apoio e dividindo experiências em uma comunidade que compartilha das mesmas lutas.

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Imagem: Arquivo pessoal

Esclerose múltipla pode afetar vida sexual?

Sim, se o paciente tiver uma lesão medular causada pela esclerose múltipla, ele pode ter uma disfunção erétil secundária à doença —isso ocorre principalmente com os homens.

Há um mecanismo que justifica a relação entre as duas coisas, conforme explica o neurologista Jefferson Becker, professor de neurologia na PUC-RS e coordenador de Relações Exteriores e Científico do BCTRIMS (Comitê Brasileiro de Tratamento e Pesquisa em Esclerose Múltipla).

A medula regula a questão gênito-urinária, sendo mais fácil de observar a alteração nos homens, pela questão erétil que é mais 'visível'. Mas provavelmente na mulher também sentem, de alguma forma. Jefferson Becker, neurologista

A fadiga é um sintoma frequente da doença e que, dependendo do paciente, impacta a vida sexual, segundo os especialistas.

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Em alguns pacientes é o sintoma mais incapacitante. Funciona como se você tirasse a bateria do paciente, então, ele pode não ter feito muita coisa no dia ou não ter feito praticamente nada que ele já se sente extremamente cansado. É bastante comum. Jefferson Becker, neurologista

A libido também pode ser impactada, não pela doença em si, mas por uma questão psicológica e principalmente depois de receber o diagnóstico, conforme explica Frederico Lacerda, neurologista e professor de medicina da Faculdade Pitágoras de Eunápolis (BA)

A libido tem forte ligação com a relação do casal. A doença também leva a acometimento da coordenação e sensibilização do órgão sexual. Aquela região pode ser menos sensível e também, portanto, o paciente ter uma perda da responsividade durante o ato sexual. Frederico Lacerda, neurologista

Mas os médicos explicam que com o controle da doença, ou seja, com o tratamento adequado, a tendência é que esses incômodos na vida sexual reduzam. Também é importante buscar ajuda com os médicos e, se for o caso, auxílio psicológico.

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