Ele trata câncer incurável com terapia-alvo: 'Como churrasco e vivo normal'

Em 2016, o engenheiro aposentado José Carlos Fogaça levava uma vida tranquila, mas cometia certos abusos: sempre que podia, tomava sua cervejinha e fazia churrascos com a família e os amigos.

Consciente de que seu estilo de vida não era o ideal, na época, com 69 anos, decidiu ouvir os conselhos de uma das filhas, que é médica, e checar a quantas andava a saúde do fígado.

E foi justamente esse exame que salvou sua vida, pois levou José a descobrir, de forma precoce, um câncer de pulmão. No exame, um pequeno ponto escuro chamou a atenção do médico —mas não no fígado e, sim, no pulmão esquerdo. "Era um nódulo pequeno que saiu na ponta da imagem por acaso", relembra o aposentado.

O câncer de pulmão é o quinto tipo de tumor maligno mais incidente no Brasil, de acordo com as estimativas mais recentes do Inca (Instituto Nacional do Câncer). É também um dos mais graves, já que leva à morte mais de um milhão de pessoas no mundo todo, todos os anos, de acordo com entidades internacionais que monitoram a doença.

A retirada e a 'volta' do tumor

A doença não era novidade na vida do morador do interior de São Paulo, que teve duas irmãs que morreram de câncer de mama e pâncreas, respectivamente. "Foi uma 'surpresa' bastante desagradável", afirma Tânia Fogaça, esposa de José. Ela conta que, embora o marido tenha sido fumante durante um período da vida, ele já havia abandonado o hábito há mais de 15 anos —muito antes de descobrir que estava com câncer— justamente buscando uma vida mais saudável.

José e a esposa, Tânia
José e a esposa, Tânia Imagem: Arquivo pessoal

De acordo com o Inca (Instituto Nacional do Câncer), os pacientes considerados de alto risco são fumantes ativos ou aqueles que tenham parado de fumar há menos de 15 anos. Isso porque o tabagismo é a principal causa para a doença e está envolvido em 90% dos casos diagnosticados.

Ainda em 2016, José passou por uma cirurgia para retirar o nódulo maligno e precisou remover metade do pulmão esquerdo. A recuperação, ele conta, foi ótima. "Não senti tanto o cansaço, me adaptei bem porque caminhava muito", afirma.

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Mas, no início de 2019, a doença voltou: dessa vez, havia sinais de nódulos na pleura, a membrana que reveste os pulmões (e o interior da parede torácica) e também nos brônquios. "Esse foi o pior momento", relembra Tânia.

"Ele precisou fazer uma cirurgia para remover esses nódulos e o médico voltou da sala dizendo que não havia conseguido tirar tudo porque estava muito perto do coração", conta a esposa.

A partir desse momento, o engenheiro soube que seria acompanhado por um oncologista para a vida toda, já que estava com metástases —processo em que o câncer "migra" do seu ponto de origem e atinge outros órgãos e tecidos do corpo.

Chave-fechadura

De acordo com Fernando Moura, oncologista e gerente médico do Programa de Medicina de Precisão do Hospital Israelita Albert Einstein, o câncer de pulmão caracteriza-se por uma multiplicação descontrolada de células que formam nódulos ou massas nos pulmões. A doença pode ser dividida em dois tipos: o de células não pequenas, considerados os mais comuns e que correspondem até 85% dos casos; e o câncer de pulmão de células pequenas, que representa cerca de 15% dos diagnósticos.

No caso de José, a doença era do tipo carcinoma de células não pequenas (CNPC), que podem ser subdivididos em:

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  • Adenocarcinomas: representam cerca de 50% dos casos e costumam se manifestar como nódulos isolados na periferia dos pulmões, que se iniciam nas células dos alvéolos. Tendem a crescer mais lentamente, podem ocorrer em fumantes e em não fumantes;
  • Carcinomas de células escamosas ou epidermoide: correspondem a 30% dos casos e costumam ocorrer nas regiões centrais dos pulmões, como os brônquios maiores. Estão relacionados ao tabagismo;
  • Carcinomas de grandes células: podem surgir em qualquer célula grande do pulmão e tendem a crescer de forma rápida.

Para esses pacientes, as opções de tratamento devem se basear no estágio da doença —além, claro, no estado geral de saúde do paciente. Mas a recomendação de American Cancer Society, organização que se dedica a combater o câncer, é de que o câncer do tipo CNPC que esteja disseminado —ou seja, com metástase— passe por exames para determinar a existência ou não de mutações genéticas.

"A biologia do câncer é muito complexa. São várias pequenas doenças dentro de um guarda-chuva maior", explica Marcelo Petrocchi Corassa, líder da unidade de Câncer de Pulmão e Tumores Torácicos da BP - A Beneficência Portuguesa de São Paulo e médico oncologista que acompanha José desde a sua recidiva.

O sequenciamento permitiria ao aposentado fazer a chamada terapia-alvo, que consiste no uso de medicamentos associados às mutações genéticas que causam o câncer de pulmão —um esquema de ação chamado por Corassa de "chave-fechadura". Atualmente, as mais conhecidas mutações para câncer de pulmão são as alterações nos genes KRAS, EGFR, ALK, ROS1, BRAF, RET, MET e NTRK.

A grande vantagem desse tipo de tratamento é que ele é mais personalizado e direcionado para a causa da doença, reduzindo os efeitos adversos que o paciente teria com outras terapias, como a quimioterapia ou a imunoterapia. "Em alguns casos, dependendo da natureza do tumor, esses tratamentos podem até mais prejudicar do que ajudar", afirma o especialista.

Mesmo cético quanto ao resultado, José se submeteu ao sequenciamento de seu tumor —e aí teve uma segunda surpresa: o câncer que crescia em seu organismo era causado pela mutação ALK, considerada rara e que acomete cerca de 4% dos pacientes com câncer de pulmão de não pequenas células.

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De acordo com Corassa, esse tipo de mutação não tem nenhuma relação com o período em que José fumou anteriormente. Na verdade, os portadores dessa alteração genética que desenvolvem a doença tendem a ser não fumantes ou são considerados "light smokers", que fumaram pouco na vida.

Tratamento para toda a vida

Desde 2019, José, hoje com 76 anos, faz uso de um medicamento que inibe a expressão do gene ALK, os chamados "inibidores de ALK". São oito comprimidos diários (quatro pela manhã, quatro à noite) que ajudam o corpo a controlar a doença e que, segundo ele, não causam efeito adverso importante.

Da esquerda para a direita: Vitor (filho mais novo), José, Tânia, Valéria (filha do meio), os netos Arthur e Pedro, Vânia (filha mais velha) e a neta Isabel.
Da esquerda para a direita: Vitor (filho mais novo), José, Tânia, Valéria (filha do meio), os netos Arthur e Pedro, Vânia (filha mais velha) e a neta Isabel. Imagem: Arquivo pessoal

"Me sinto ótimo, tenho vida normal. Jogo meu golfe, como meu churrasco", afirma. O único "senão" é o desconforto gástrico que o medicamento causa, um efeito comum. "Minha barriga fica bastante inchada, mas nada que me impeça de viver com qualidade", diz.

Corassa lembra que esse tipo de medicação não é a cura, mas sim o controle da doença. "Se ele parar, a doença vai voltar", diz. Em média, os inibidores de ALK conseguem "represar" o câncer por dois anos. Mas José segue saudável tomando há quatro. "Ele só vai parar se tiver algum efeito colateral sério. Ou quando parar de fazer efeito", explica o médico.

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Quando isso vai acontecer, é um mistério. "Ele come bem, dorme bem. Para nós, parece até curado", afirma Tânia. Do seu lado, José prefere não pensar nesse "prazo de validade" que o remédio tem. "Não penso sobre isso, apenas aproveito o tempo que tenho", afirma.

Errata:

o conteúdo foi alterado

  • O nome do entrevistado é José Carlos, e não José Henrique. A informação foi corrigida.

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