Medicina indígena fora de aldeias traz riscos: 'Tivemos de chamar o Samu'
Ayahuasca, jurema, toé, kambô, sananga, rapé, yopo, argireya, mambe, ambil, tabaco. Essas e outras plantas de propriedades medicinais usadas há muito tempo por povos indígenas estão circulando cada vez mais nas grandes cidades. Os cogumelos, que são fungos, também.
Na maioria das vezes são oferecidas em retiros xamânicos e centros de terapias alternativas. Mas o que se sabe sobre elas? São seguras? Quais os riscos de usá-las em contextos urbanos, administradas por pessoas que não são pajés ou xamãs indígenas?
Algumas plantas são mais conhecidas, outras nem tanto. Especialistas orientam que o principal é que as pessoas que estejam administrando essas substâncias conheçam seus efeitos e indicações.
Por se tratar de plantas da medicina tradicional indígena, o mais seguro, certamente, é que o uso seja feito dentro dessas tradições, e aplicadas por pessoas experientes, indígenas ou não. Mas nem sempre é o que acontece.
Mistura perigosa
Após melhorar de um quadro depressivo utilizando microdose de cogumelos psicodélicos (do tipo Psylocibe cubensis), a empresária Ana Paula Paz, 40 anos, de Florianópolis, decidiu conhecer alguns rituais xamânicos.
"Fui a uma casa de 'rezo' para beber ayahuasca, já tinha experimentado a bebida, mas em um grupo religioso". Ela acabou participando de um trabalho que não deu muito certo.
Os responsáveis pelo grupo [que não eram indígenas] resolveram misturar ayahuasca e cogumelos alucinógenos e entraram em um surto psicótico, tivemos que chamar até o Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência).
Ana Paula Paz, empresária
Esse é um exemplo de que práticas desse tipo exigem cuidados. "O uso indígena, justamente por ser tradicional, possui séculos de experimentação", observa o médico Carlos Segre, responsável técnico do Instituto Alma Viva, dedicado à pesquisa, atendimento e educação sobre medicina psicodélica.
Transportar os conhecimentos indígenas para outros contextos sem tradição pode deturpar o sentido terapêutico dessas substâncias, observa o médico. "Limites e doses foram estabelecidos pelos indígenas ao longo de anos para segurança, cura e significado."
'Tratamentos em saúde mental fracassaram'
A tendência de expansão do uso dessas medicinas fora das aldeias está fortemente ligada à retomada dos estudos científicos com substâncias psicoativas de uso indígena, como a ayahuasca e os cogumelos mágicos.
Para o médico Carlos Segre, o renascimento psicodélico é um movimento que está ganhando força principalmente pelo fracasso dos tratamentos ocidentais em saúde mental.
É esperado que uma grande quantidade de pessoas com formação duvidosa crie comunidades para tratamentos com essas substâncias sem consistência e cuidados adequados.
Carlos Segre, médico
Para ele, a grande quantidade de pessoas com problemas de saúde e desencantadas com tratamentos médicos disponíveis se tornam solo fértil para isso.
Rapé com ayahuasca
Enquanto cresce o uso das chamadas medicinas da floresta nos centros urbanos, preservar o conhecimento e as plantas medicinais se tornou um desafio cada vez maior para os povos indígenas, ameaçados por problemas como invasão e desmatamento.
A vontade de se engajar em alguma questão indígena levou a empresária carioca Laura Nedel, 42 anos, a encontrar o rapé (mistura em pó de tabaco e outras plantas).
Muito usado nas cerimônias de ayahuasca dos povos originários da Amazônia brasileira, o rapé virou moda em trabalhos xamânicos por todas as regiões do país. Mais recentemente, conquistou também popularidade internacional.
Laura tem uma empresa de produtos naturais, a Biodose, e se interessou em trabalhar com o rapé. Ela conta que procurava um tipo mais difícil de encontrar, uma mistura de tabaco com um cipó chamado mariri, usado para preparar a bebida ayahuasca.
Preocupada com a qualidade e com a falta de estudos sobre o produto, a empresária resolveu buscar os indígenas da Amazônia. Foi assim que conheceu o povo Shanenawa, da aldeia Morada Nova, em Feijó, no Acre. "Acabei criando uma relação com eles."
A conexão com o povo indígena se deu por meio do contato com Andressa Shanenawa, neta de uma anciã, a detentora das medicinas usadas na comunidade, a pajé Runi, uma senhora de 85 anos.
"Começamos a comprar todos os rapés deles", conta Laura. Com o contato frequente, a relação evoluiu para uma amizade. Ela recorda que uma vez, por questões de saúde na aldeia, os Shanenawa pediram dinheiro emprestado.
Depois mandaram uma mensagem agradecendo com um convite para conhecer a aldeia no Acre. "Já tinha vontade de visitá-los havia muito tempo", diz a empresária.
Farmácia da selva
Na aldeia Shanenawa, no Acre, Laura Nedel participou de rituais com ayahuasca, conheceu o feitio do rapé e andou pela mata com Runi, a pajé da aldeia. Ela conta ter ficado impressionada com o manejo de uma infinidade de plantas.
Além de aprender que o uso das medicinas indígenas exige respeito e uma série de cuidados, o contato com as plantas e com a medicina Shanenawa causou tanto impacto que a empresária decidiu se engajar em uma causa da aldeia.
"A neta da pajé me falou da vontade deles de fazerem uma farmácia na comunidade para manterem vivos os seus conhecimentos", explica. "A pajé da aldeia é uma senhora de 85 anos, dependendo da situação de doença que aparece, ela precisa entrar na floresta e ficar dias atrás de uma planta, isso pode custar a vida de alguém"
Laura ajudou os indígenas a criar uma campanha de financiamento coletivo para a construção de um centro de medicina indígena, com um viveiro de plantas medicinais. A ideia é reunir esses "remédios da floresta" que se espalham por um longo território.
Tem muitas pessoas utilizando as medicinas da floresta nas cidades, mas a maioria não sabe muito sobre a importância do cultivo, do cuidar, de pedir permissão para o uso ou mesmo de onde vem esses remédios naturais.
Andressa Shanenawa, neta da pajé Shanenawa
Sonho antigo
"Esse projeto não é um sonho só meu, mas da comunidade e principalmente das minhas matriarcas". A indígena explica que a aldeia atualmente tem duas pajés, a sua avó Runi e a outra chamada Machi, de 68 anos.
Preservar, organizar e levar essas medicinas para as cidades também é uma forma de mostrar para a sociedade que precisamos cuidar da Amazônia, defende a indígena.
No caso do rapé, observando a forma como os indígenas lidavam com as plantas para o preparo do produto, a empresária Laura Nedel conta que ficou óbvio que não deveria se aventurar a fazer em casa, como, aliás, muitas pessoas estão fazendo. "É coisa de indígenas, se vamos usar melhor que seja o deles."
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