Com linfoma aos 22, ela fez 2 transplantes: 'Família impediu de desistir'
Com um caroço na garganta que só crescia, tosse e cansaço, a hoje secretária Milena Ferreira de Carvalho, 28 anos, recebeu várias vezes o diagnóstico incorreto de dor de garganta. Após buscar outro médico e fazer uma biópsia, veio o resultado: estava com linfoma de Hodgkin, tipo de câncer relativamente raro que acomete o sistema linfático.
Na maioria dos casos, esse tipo de tumor tem boa resposta com quimioterapia; mas há exceções. Milena precisou passar por dois transplantes de medula para controlar a doença. "No segundo transplante, eu quis desistir. Mas minha família não deixou", afirma. A seguir, ela conta como foi a sua jornada.
"Em 2016, notei uma 'íngua', um caroço no pescoço, que estava crescendo. Também sentia cansaço e tinha tosse. Procurei o médico em uma UBS próxima de casa e ele disse que era dor de garganta, me passou um antibiótico e só. Isso aconteceu algumas vezes e o quadro sempre retornava, mas o caroço parecia crescer cada vez mais. Após cerca de um ano, decidi que era hora de buscar outro especialista.
Dessa vez, o médico que me examinou achou o caroço muito estranho e me pediu uma tomografia. O exame mostrou um possível linfoma de Hodgkin. Não me assustei, pois na época eu nem sabia o que era isso. Fiz uma biópsia e só quando saiu o resultado é que comecei a entender: estava com mesmo câncer.
Fiz a pior coisa que qualquer pessoa pode fazer nessa situação: busque informações na internet. Fiquei muito assustada.
O oncologista recomendou fazer quimioterapia por quatro meses e depois terminar o tratamento com sessões de radioterapia. Eu estava confiante de que seria apenas isso, afinal, é um tipo de câncer com alta taxa de cura.
A ficha só caiu realmente quando fui para a primeira sessão de quimioterapia e vi todo mundo careca. As pessoas me perguntaram se era minha primeira sessão, afinal, eu ainda tinha cabelo. Ali eu entendi a gravidade da situação
No fim, os quatro meses se tornaram oito. Perdi muito cabelo.
Estava no último semestre da faculdade e resolvi não trancar, então, segui fazendo trabalhos e provas com o apoio dos professores. Percebi que muitas pessoas se afastaram nesse período, mas não me importei. O meu foco se voltou 100% para ficar boa, me curar e recuperar minha vida.
Eu estava noiva, em um relacionamento há oito anos, e ele também chegou ao fim durante a quimioterapia. No começo, me sentia apoiada. Contudo, quando o tratamento se prolongou, meu noivo se afastou, se tornou ausente, sequer me ligava para saber como eu estava após a sessão. Não me acompanhava nos compromissos médicos, comecei a sentir vergonha.
Decidi que, se era para sofrer, era melhor sofrer de uma vez e, assim, optei por colocar um fim na relação. No começo ele achou que que era brincadeira, chegou a pedir para voltar. Não voltei. Sofri muito, mas consegui superar. O meu foco era ficar boa.
Essa experiência, para mim, foi muito marcante, já que percebi que isso é, infelizmente, um padrão.
Quando ia para a quimioterapia, vi mulheres acompanhando mulheres, mas nunca um homem acompanhando a mulher. Por outro lado, elas estavam sempre ao lado dos maridos no tratamento. Ouvi muitas histórias de mulheres que foram abandonadas pelos companheiros durante o câncer.
Não era o fim
No final de 2019, seis meses após o fim do tratamento, o linfoma voltou. Eu fiquei decepcionada, afinal, fiz tudo direitinho e mesmo assim, não estava curada. Mas segui em frente e passei por uma segunda rodada de quimioterapia, extremamente forte, para receber um transplante de medula autólogo [feito com as células-tronco do próprio paciente].
Dessa vez, perdi todo o cabelo. O transplante em si foi fisicamente muito sofrido: tive uma complicação gastrointestinal muito séria, fiquei desnutrida, muito fraca e magra. Recebi uma medicação específica para que a doença não retornasse mas, no meio do tratamento, ela voltou.
A doença sempre voltava no mesmo lugar, no meu pescoço. Quando recebi a notícia de que ainda estava doente, em 2021, eu quis desistir. Estava depressiva, numa 'bad' muito forte.
Disse para os meus pais que não queria mais fazer tratamento nenhum, estava realmente triste e fiquei resistente. A única opção era fazer um novo transplante, dessa vez, com a medula de um doador.
E essa pessoa seria ninguém menos que meu pai, que era parcialmente compatível e os médicos julgaram que seria uma boa opção pela natureza da doença.
Nesse ponto, minha família foi fundamental. Eles simplesmente não me deram a opção de desistir. Havia muita fé espiritual de que ia dar certo. Mesmo assim, eu não queria, fui para a mesa de cirurgia praticamente amarrada (risos). Foram dias de angústia até saber se a medula havia 'pegado'. Fiquei muito, muito ansiosa, sofri muito psicologicamente, precisei tomar calmante. Eu só chorava.
Após 22 dias, recebemos a notícia de que a medula havia pegado. Foi um alívio enorme. Recebi festinha das enfermeiras no hospital, teve balão, apito, refrigerante, bolo.
Sai do hospital e, aos poucos, retomei a vida. Voltei a trabalhar e a praticar atividade física. Sigo até hoje em acompanhamento com uma médica hematologista, mas é apenas rotina, com exames de sangue para acompanhamento.
Sou muito grata à minha família e sei que, sem eles, eu não teria chegado até aqui.
O que é o linfoma de Hodgkin?
É um tipo de câncer que surge no sistema linfático, uma rede de pequenos vasos e gânglios que é parte tanto do sistema circulatório como do sistema imunológico.
A última estimativa do INCA (Instituto Nacional de Câncer) é de que o Brasil teria, entre 2023 e 2025, 3.080 casos de linfoma de Hodgkin, sendo 1.500 casos em homens e 1.580 em mulheres.
Um dos primeiros sinais da doença é justamente o aumento dos linfonodos, também conhecidos como gânglios ou ínguas, na região do pescoço, axilas ou virilha. Outros sintomas também são comuns, como tosse, cansaço, febre e perda de peso sem motivo aparente.
Entre os tratamentos disponíveis, dependendo do linfoma, é possível usar quimioterapia, radioterapia, imunoterapia, transplante de medula e anticorpos monoclonais biespecíficos (medicamento que ativa uma resposta imune no corpo).
Recentemente, a terapia com CAR-T Cell (que visa reprogramar geneticamente células do sistema de defesa do próprio paciente, caso dos linfócitos T, para reconhecer e combater seu tumor) também passou a ser uma opção de terapia para linfomas.
De acordo com Nelson Hamerschlak, coordenador do Programa de Hematologia e Transplantes de Medula Óssea do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, existem quatro subtipos de linfoma de Hodgkin, classificados de acordo com a célula afetada e também seu comportamento (se é indolente, ou seja, mais brando, ou mais agressivo). "Felizmente, a maior parte dos linfomas são potencialmente curáveis, mas alguns são apenas controláveis", afirma.
Médica do Hospital Brasília, a hematologista Andressa Lima Melo foi a responsável por acompanhar todo o tratamento de Milena. A especialista explica que a paciente faz parte de um pequeno grupo em que o linfoma de Hodgkin não responde à quimioterapia e acaba voltando. "Quando ela teve a primeira recidiva, o tratamento mudou. Entendemos que a quimioterapia não iria ajudar nesse caso", revela.
Após o primeiro transplante, Milena fez uso do anticorpo monoclonal, o que não impediu a segunda recidiva. Nesse ponto, ela fez uso de um medicamento específico para inibir o crescimento do tumor e prepará-la para um novo transplante. "Mas ela teve uma complicação gastrointestinal muito severa, ficou desnutrida e ficou internada por um mês", lembra a médica. "Era um caso muito delicado, porque não dava para esperar muito mais para transplantar, mas ela estava muito fraca", diz.
Em 2021, quando não havia mais tempo, Milena enfim recebeu a medula do pai. O risco de morrer após o procedimento chegava a 15%, afirma a médica. Nesse ponto, Melo afirma que o apoio da família de Milena foi essencial.
"Estávamos no meio da pandemia da covid-19 e a mãe dela internou junto. Essa mulher foi fundamental para o sucesso da filha. Ela estava extremamente confiante do começo ao fim e fez toda a diferença no tempo em que ficou no hospital", diz a hematologista.
Hoje, a médica diz que Milena não usa mais medicamentos imunossupressores (necessários para que o corpo não "ataque" o órgão transplantado) e faz seguimento de rotina. "Ela ainda não está de alta, mas está caminhando para ela", diz a médica, que não esconde o vínculo criado com a paciente.
"Não tem como, a gente acompanha desde o começo, conhece a família toda. E vale muito a pena, porque, ao final, vemos eles 'voando' e pensamos, poxa, olha que legal ela vivendo a vida."
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