Do PS à tela: como funciona a consultoria de médicos em roteiros de séries
"Você é médica?", me perguntou um cardiologista. "Não, sou jornalista formada em 'House [a série]'", respondi. Este é um diálogo real na vida desta repórter. Fãs de séries médicas se sentem parte dos ambientes hospitalares. Eles conhecem doenças, sintomas e jargões usados nos corredores dos hospitais. E para que as produções de TV sejam tão assertivas, os roteiristas contam com uma ajuda qualificada: médicos consultores.
O cirurgião torácico Marcio Maranhão é o autor do livro "Sob Pressão: A Rotina de Guerra de um Médico Brasileiro" (Globo Livros), que inspirou tanto o filme, lançado em 2017, quanto as cinco temporadas da série da TV Globo que leva o mesmo nome. Ele trabalhou lado a lado com os roteiristas para que as produções levassem a realidade dos hospitais para as telas.
"A série e o filme nasceram do encontro entre a minha indignação e desejo de contar as histórias que vivi na saúde pública —e da Conspiração Filmes e TV Globo de produzirem uma série médica brasileira autêntica", disse em entrevista a VivaBem.
Antes de participar da criação dos roteiros, Maranhão apresentou a realidade da saúde pública no Brasil para a equipe. "Visitamos as emergências de alguns hospitais públicos e emprestei minha percepção dos problemas. Estava dedicado a fazer a tradução dos acertos e fracassos do SUS, e como isso impactaria nos roteiros", disse.
Já a cirurgiã geral de trauma Cecilia Fernandes Martins caiu de paraquedas na consultoria médica para roteiros. Ela participou da produção de "Sutura", thriller médico exclusivo do Prime Vídeo, da Amazon, que deve estrear em 2024, com Cláudia Abreu e Humberto Morais no elenco.
"Meu cunhado e minha irmã também são médicos e moram em Ribeirão Preto [interior de São Paulo]. E quando a cunhada da minha irmã a procurou para ser consultora de um roteiro, ela me indicou. Conversei um pouco para entender como poderia ajudar e, aos poucos, fiquei imersa nesse universo", contou para VivaBem.
Emergência x texto
A realidade dos hospitais é muito diferente da dos roteiristas, o que cria um desafio para o profissional da saúde: transformar as vivências do dia a dia em uma linguagem que faça sentido para o audiovisual. E para isso, tanto médicos quanto roteiristas têm que ceder —o que acontece de forma bem harmoniosa.
"Foi intenso. Um aprendizado e um desafio. Ao longo do trabalho fui conquistando a liberdade necessária para apontar o que achava relevante na área da saúde e os limites que a realidade impunha à ficção", conta Maranhão.
Segundo ele, algumas questões médicas eram inegociáveis, ainda mais falando de assuntos importantes como falta de sangue nos hemocentros, transplantes de órgãos e a própria pandemia de covid-19.
Sempre que a ficção recorria a alguma licença poética que pudesse prejudicar o entendimento da população sobre esses temas, o poder de veto prevalecia. Este compromisso era de todos os envolvidos no processo criativo. Marcio Maranhão, médico e consultor da série "Sob Pressão"
Em "Sutura", série cujo foco é mais o drama do que a realidade médica, a licença poética é mais ampla. "Tinha liberdade para falar e existia uma preocupação de que a parte médica da série fizesse sentido, mesmo como plano de fundo. Algumas cenas e atuações foram adaptadas para se tornarem mais verídicas e realistas", conta a cirurgiã.
A cirurgiã, que também esteve presente no set de filmagens, adaptou alguns procedimentos médicos na hora da gravação. "Em uma cena, o personagem precisava usar luvas, ou mudar o movimento, colocar gorro, máscaras. Situações que fui vendo na prática e fiz orientações para que não fugissem da realidade", explica.
Esse cuidado, além de ficar bem na tela, também traz resultados positivos para a saúde pública.
O cirurgião torácico conta que quando "Sob Pressão" colocou no ar episódios sobre doação de órgãos, foi pedido para que a Aliança Brasileira pela Doação de Órgãos e Tecidos monitorasse as visitas em seu site para entender como o recado estava chegando nos espectadores. "Em uma única semana, identificamos 11 mil visitantes, o que representava, na época, um terço da fila dos pacientes que aguardavam por um transplante", diz.
Quando o assunto foi doação de sangue o resultado também foi positivo. "Promovemos duas vezes campanhas em vários municípios e conseguimos arrecadar mais de 900 bolsas de sangue em um único dia", conta Maranhão, que tinha como parte de seu compromisso dar luz a temas importantes, mas que ficam escanteados.
Ficção de encher os olhos
Se por um lado os roteiristas bebem do conhecimento dos médicos, os profissionais da saúde também ficam impactados com a vida em um set. A intersecção de carreiras, e a realidade que o audiovisual leva para as telas, deixa até quem está acostumado sem palavras.
"Para mim, o mais legal foram os dias de gravação. Ver como as próteses funcionam, o coração sangrando... Foi muito bacana ver a ideia que estava no papel ganhando vida. Achei a produção muito realista", lembra a cirurgiã Cecilia.
O inusitado, aos olhos de Marcio Maranhão, foi ter que pensar a medicina ao contrário. "Em um episódio, o desfecho desejado era a morte de um paciente. Tive que pensar na contramão de tudo que havia estudado", recorda.
E quando as coisas são de mentirinha, dá até para se acostumar. "O cirurgião que me auxiliava comentou num suspiro: 'Na ficção é mais fácil, né?'", brinca o médico.