Biomecânica da corrida: entenda como é feita avaliação e para que serve
Na busca por respostas para "como começar a correr?" —e já vimos aqui que não tem um jeito certo, mas o jeito de cada um—, me deparei com a avaliação biomecânica.
"Biomecânica é a forma como o corpo se mexe, como ele interage com as forças que a gente tem que passar", explica Raquel Castanharo, fisioterapeuta e mestre em biomecânica da corrida.
Ela resume a biomecânica em duas dimensões:
- A cinemática, relacionada aos ângulos que o corpo forma enquanto se movimenta;
- E a cinética, ligada às forças necessárias para realizar os movimentos.
Teoricamente, uma avaliação biomecânica da corrida visa identificar padrões nessas áreas que podem estar relacionados a rendimento e lesão. Se algo estiver inadequado, uma intervenção é aplicada para mudar aquele padrão.
Nas redes sociais, veem-se muitas dicas para corrigir ângulo de braço, de joelho e pisada, mas Castanharo afirma que entender as forças é mais relevante —como o impacto do pé no chão.
Os ângulos terão sua importância de acordo com as necessidades de cada pessoa, mas não numa regra rígida, principalmente se não têm relação com lesão.
Num primeiro momento, a avaliação biomecânica soa como uma resposta ao como começar do "jeito certo", para corrigir "defeitos" na forma de correr. Mas não é exatamente assim.
Segundo o treinador Ricardo Hirsch, biomecânica importa "muito pouco" para quem está começando na corrida. "Uma pessoa de 30 anos que começou a correr já desenvolveu 30 anos de gesto motor, o corpo está acostumado, e correr é natural nosso", diz.
Então, não haveria o que corrigir e qualquer tentativa de mudança num movimento já condicionado poderia ser prejudicial. Além disso, o corpo se molda conforme as variáveis.
"Se fizer avaliação num corredor, ele vai ter um tipo de corrida. Mas se ele correr na grama ou na esteira, o padrão muda; no sol forte, à noite com frio, tudo interfere no padrão de movimento", comenta o doutor em biomecânica Roberto Bianco, professor da Universidade Ceuma e da UFMA (Universidade Federal do Maranhão).
Como a avaliação biomecânica é feita
Na Clínica Raquel Castanharo, na zona sul de São Paulo, há uma esteira robusta e alta, mas antes de subir ali, a fisioterapeuta fez alguns testes de força e mobilidade comigo. Os resultados da avaliação, que dura uma hora e meia, são enviados posteriormente em PDF e, o da corrida, em vídeo.
A primeira parte foi no chão:
- Ficar num pé só e dar um pequeno salto, de ambos os lados.
- Agachar na posição de cócoras.
- Em pé, com os pés juntos, tentar tocar as mãos no chão.
- De frente para a parede, uma perna à frente e outra atrás, flexionar o joelho que está adiante, jogando-o para frente, além da linha do pé.
- Fazer elevação de panturrilha unilateral, dos dois lados.
A segunda parte foi numa maca:
- Deitei de barriga para cima, ela dobrou os dedos dos meus pés para cima com a mão e pediu para eu fazer força com eles para baixo.
- Pediu também para forçar a abertura dos dedos dos pés.
- Em seguida, com os dois joelhos flexionados, pés apoiados na maca, fiz força para levantar o quadril.
- Depois, deitada de lado, ela puxou para trás a perna que estava por cima, estendida, e fez pressão para baixo. Eu tive de forçar para cima, como numa abdução. Isso se repetiu com a outra perna.
- Já deitada com a barriga para baixo, a proposta foi dobrar o joelho, deixando a planta do pé para o teto, e levantar a coxa da maca. Dos dois lados.
Por fim, sentada numa cadeira, o objetivo foi levantar e sentar três vezes com apenas um pé apoiado no chão. O exercício é feito dos dois lados também.
Castanharo avaliou positivamente a mobilidade e a força, mas notou músculos travados, o que me impediu, por exemplo, de agachar totalmente de cócoras. Os pés estão pouco condicionados também, sem força para ficarem apoiados unilateralmente. "Tem evidência de que fortalecer o pé reduz o risco de lesão", ela diz.
Hora de correr
Numa avaliação padrão, a fisioterapeuta deixa a pessoa correr por dez minutos na esteira, mas nosso tempo era mais limitado e fiquei seis, dos quais um foi caminhando.
Antes, ela havia colocado sensores em cada um dos meus tênis para medir o impacto da minha pisada. O aparelho mede o pico de aceleração, quão rápido o pé chega ao chão, e faz uma inferência: quanto mais rápido, mais brusco e maior é o impacto.
Um pico de aceleração a partir de 8 é considerado alto impacto. O meu ficou na faixa de 5, com oscilações e diferença entre pé esquerdo e direito. Sem equipamentos, o impacto pode ser observado pelo som da batida do pé no chão: quanto mais alto, mais forte.
Os resultados são acompanhados em tempo real numa televisão à frente da esteira. Outra métrica é de frenagem, o que na corrida é um problema para o rendimento, uma vez que se quer aceleração para ir para frente. No meu caso, não havia comprometimento.
Já o visor da esteira mostrava a cadência, que é o número de passos por minuto, e o tempo de contato do pé com o chão, em milésimo de segundo (ms).
Eu corria a 8,3 km/h, minha cadência estava baixa (em torno de 135) e o tempo do pé com o chão era superior aos 300 ms considerados ideais.
Na mesma velocidade, ela pediu para eu encurtar um pouco a passada, quase nada, e vi a cadência subindo, chegando a 160, e o tempo do pé na esteira reduzindo. Segundo ela, essa é uma dinâmica que melhora com o tempo de treino.
"Quando você fica muito tempo com o pé no chão, desperdiça muita energia descendo, gasta mais para subir. Quando troca o passo mais rápido, gasta menos energia para correr, porque cada passo é mais eficiente", explicou.
No final, por curiosidade, corri descalça por 30 segundos para uma análise da pisada, característica não relacionada a rendimento e lesão. Nesse momento, foi interessante notar que, sem querer, minha pisada mudou: aterrissei com o antepé sendo que, naturalmente, pouso com o calcanhar. Uma adaptação apontada por Bianco.
Corra do seu jeito
Para uma pessoa iniciante na corrida, a avaliação biomecânica traz mais resultados curiosos do que um "diagnóstico" a ser resolvido. Cadência, ângulos, pisada e movimento do joelho não estão consistentemente associados a lesão, segundo os pesquisadores.
Segundo Castanharo, o corpo aprende a lidar com essas características para absorver bem o impacto da corrida, esse sim mais relacionado à lesão. No mais, o recado é: corra do seu jeito.
Além disso, biomecânica não é o mais importante. Numa avaliação completa, a fisioterapeuta ainda considera a carga de treino da pessoa, rotina de sono, manejo de estresse e investiga crenças que podem afastar a pessoa do esporte.
Você pode ter o músculo mais forte do mundo, a biomecânica mais perfeita, mas se tiver uma planilha de treino ruim, vai se machucar. Raquel Castanharo, fisioterapeuta
"Se você está em período de estresse e privação de sono muito longo, seu corpo não vai performar tanto quanto você gostaria. É mais sobre isso do que o pé torto", completa.
A avaliação importa mais quando alguma dor ou lesão já está instalada cronicamente (mais de três meses). "Se a pessoa tem queixa, por exemplo, de fratura por estresse recorrente, fascite plantar, vale investigar para ver se tem algo no padrão de movimento que aumenta o risco de lesão", diz Bianco.
Hirsch reforça que cada pessoa tem sua corrida e é preciosismo tentar moldar um padrão único. "Fazer isso pode contribuir para ter dor e lesão", afirma. "O corpo vai sentir mais ao se adaptar a um novo padrão mecânico do que se acostumar a correr da forma que faz e elevar o nível aos poucos. Não se pode criar barreiras para as pessoas começarem a correr."