Por que não há remédio para anorexia, mas tem para bulimia ou compulsão?
Há décadas, um enigma tira o sono de pesquisadores em transtornos alimentares: por que pacientes com anorexia nervosa não respondem a medicamentos psiquiátricos como quem tem compulsão alimentar ou bulimia?
Caracterizada por privação de comida, distorção de autoimagem e IMC (Índice de Massa Corporal) menor ou igual a 17,5, a anorexia é uma das condições que mais matam no mundo, e também uma das mais desafiadoras.
Desde os anos 1970, diferentes drogas foram testadas para tratá-la, sem sucesso. Ensaios clínicos randomizados avaliaram o efeito dos antidepressivos clomipramina, amitriptilina e fluoxetina; dos antipsicóticos pimozida e sulpirida; e de outros agentes, como cipro-heptadina, lítio, tetra-hidro-canabiol, clonidina, natrexona, hormônio do crescimento, zinco e cisaprida. Mas não houve diferença significativa em comparação ao placebo na fase aguda do transtorno, aponta uma revisão da revista Comunicação em Ciências da Saúde.
Ainda segundo o texto, existe um potencial benefício da fluoxetina na prevenção de recaídas após a recuperação do peso, mas ainda não há fármaco eficiente em etapas mais críticas do transtorno.
O mesmo não ocorre com o transtorno de compulsão alimentar (caracterizado pela perda de controle do que se come) e com a bulimia nervosa (em que há episódios de compulsão seguido de medidas compensatórias como vômito, atividade física exaustiva e jejum prolongado).
De acordo com um artigo publicado na Revista de Psiquiatria Clínica, da USP, antidepressivos, principalmente os da ordem dos tricíclicos e dos ISRS (Inibidores Seletivos de Recaptação da Serotonina), têm eficácia comprovada nas duas condições.
O que explica dificuldade?
Especialistas da área têm algumas hipóteses. Uma delas diz respeito ao estado de desnutrição em que pacientes na fase aguda se encontram. Embora isso ainda esteja sendo investigado, cogita-se que a falta de alimento leve a uma deficiência tão grave de macro e micronutrientes que o corpo tem dificuldade de responder aos psicofármacos.
Os sinais dessa fragilidade extrema são inúmeros. A nutricionista Fabiana Fontes, da Clínica Reviva, de Fortaleza (CE), cita o exemplo do ferro, que ajuda a transportar oxigênio pelas hemácias para todos os órgãos e tecidos do corpo. "Quem tem anorexia frequentemente tem falta desse mineral, e sente fraqueza constante."
Até mesmo o coração começa a bater mais lento, acrescenta o psiquiatra Fábio Salzano, vice-coordenador do Programa de Transtornos Alimentares do IPq-USP (Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo). Se o batimento cardíaco normal de uma pessoa oscila entre 60 bpm e 100 bpm, o de pacientes com anorexia pode chegar a 28 bpm. "O risco de uma parada é enorme", diz o médico.
O comportamento rígido e a aversão à comida é outro agravante. "Há casos de pacientes que precisam se alimentar por sonda, tamanha é a repulsa com qualquer tipo de alimento", diz o psiquiatra Luiz Fernando Petry, do Centro de pesquisas clínicas Trialtech, de Curitiba (PR).
Como o trânsito do trato intestinal também fica lento, a sensação de saciedade demora mais a aparecer, facilitando o aumento dos períodos de jejum e fortalecendo o ciclo de abstenção alimentar, diz a psiquiatra Miriam Garcia Brunstein, coordenadora do Programa de Atendimento e Pesquisa em Transtornos do Comportamento Alimentar em Adultos do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
A dismorfia corporal, que faz a pessoa não perceber o peso que realmente tem, é outro complicador. Segundo Salzano, trata-se de uma percepção equivocada da realidade que não é a mesma identificada em quadros de esquizofrenia, não podendo, portanto, ser tratada com antipsicóticos. "Como a gente não sabe exatamente o mecanismo que leva a essa consciência errônea do real, fica mais difícil desenvolver um remédio", diz.
Há ainda fatores socioculturais envolvidos na dificuldade de tratar a anorexia. Não por acaso, pacientes com a condição também têm mais dificuldade em responder à psicoterapia. Brunstein lembra que a privação de comida é reforçada positivamente em nossa cultura. Já a ingestão de altas quantidades de alimento (presente na compulsão e na bulimia) e o vômito (comum entre pacientes bulímicos) são mal vistos. E aí, quando se elogia um comportamento, a tendência é que o paciente tenha mais resistência a abandoná-lo.
Mas, então, como é possível tratar a anorexia?
De modo interdisciplinar, explica Salzano. Diferentes profissionais da saúde entram em cena para compreender o paciente nas mais diferentes esferas. Fisioterapeutas ou educadores físicos podem auxiliá-lo a perceber o próprio corpo por meio de exercícios e o uso de uma fita métrica. Psicólogos e psiquiatras podem contribuir no equilíbrio psíquico. Nutricionistas, na reeducação alimentar.
Aliás, é dessa mesma forma que outros transtornos alimentares são tratados, devido ao seu caráter multifatorial. A diferença é que no caso da anorexia, a medicação psiquiátrica tem menor relevância no combinado de estratégias.
Com remédio ou sem remédio, dificilmente haverá uma receita única para superar o transtorno, acreditam especialistas. O tratamento da anorexia é uma corrida contra o tempo que sempre envolverá diferentes frentes do cuidado.
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