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Equilíbrio

Cuidar da mente para uma vida mais harmônica


Após testar 20 remédios, ela tratou depressão com spray nasal de R$ 2.000

A ilustradora Mariana faz tratamento com o remédio Spravato desde 2021 Imagem: Arquivo pessoal

De VivaBem, em São Paulo

30/11/2023 04h00Atualizada em 30/11/2023 19h30

A ilustradora Mariana Marques Spolidorio, 30, foi diagnosticada com depressão aos 16 anos, mas desde a infância já convivia com alterações de humor. No seu caso, o tratamento é difícil, porque ela tem o tipo resistente da doença, quando os medicamentos comuns não ajudam.

Seu quadro só melhorou há dois anos, quando passou a usar o Spravato, um remédio inovador em forma de spray nasal com cloridrato de escetamina, substância derivada da cetamina —ou ketamina, usada como anestésico desde os anos 1960.

A medicação é fabricada pela farmacêutica Janssen e foi aprovada em novembro de 2020 pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

Mesmo considerado bastante promissor, o preço do remédio ainda é uma barreira para acessá-lo: o spray é vendido por até R$ 2.329,32, segundo dados da CMED (Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos).

Indicado para casos de depressão resistente

Mariana lida com os altos e baixos da doença desde a adolescência. A depressão é considerada resistente quando não há melhora após o uso de dois antidepressivos de famílias diferentes em doses terapêuticas ideais e pelo tempo adequado.

Psiquiatra e professor do britânico King's College London, Mario Juruena prefere o termo "depressão de difícil tratamento". "Ao usar o termo 'resistente', você pode acabar rotulando a pessoa: 'Você é resistente ao tratamento'. E a culpa não é dela", diz, reforçando que as causas da condição ainda não são totalmente conhecidas —assim como as da própria depressão.

De acordo com a ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria), um terço das pessoas com depressão não melhora mesmo após mais de um tratamento. No caso de Mariana, foram mais de 20 remédios. "Foi tanta coisa que até já perdi a conta."

As crises da ilustradora pioraram aos 20 anos, incluindo pensamentos suicidas. "Eu tive anos melhores e anos muito ruins. Até chegar ao ponto de parar de trabalhar aos 24 anos, porque tinha sintomas tão intensos que não conseguia sair da cama."

Quando decidi buscar o Spravato, eu tomava oito medicamentos todos os dias, mas eles não eram suficientes para resolver o problema. Passava semanas em estado enorme de depressão, não conseguia fazer as coisas para mim nem para ninguém. Mariana Marques Spolidorio

Mariana falou com o seu psiquiatra sobre a escetamina nasal, e ele conseguiu incluí-la em um grupo de estudo sobre o remédio. Mas a ilustradora foi selecionada para usar outra substância durante as pesquisas. A saída foi viabilizar o uso do Spravato com o convênio.

A ilustradora começou o tratamento em novembro de 2021. A primeira fase é chamada de indução e dura um mês, com duas aplicações semanais —é necessário um intervalo de 48 horas entre elas. Depois, vem a manutenção. Foram nove meses de uma sessão por semana. Por ser uma medicação forte, o tratamento é feito em clínica ou hospitais para monitorar os sinais vitais do paciente.

"Hoje, eu aplico de 15 em 15 dias. Não tenho esperanças de me livrar dessa medicação. Mas, sinceramente, eu não ligo de ter que ir lá, ficar duas horas", diz a ilustradora.

Os primeiros indícios de melhora vieram após três meses. "Chegou o dia em que eu falei: 'acho que estou começando a melhorar'. E você fica até suspeita, acha que é coisa da cabeça. É muita expectativa ou uma mudança está acontecendo? Mas as crises ficaram cada vez mais espaçadas, tranquilas de lidar. Por isso que eu sempre falo para quem aplica ter paciência, porque muita gente desiste."

Médicos dizem que pacientes apresentam melhora dos sintomas da depressão já no primeiro uso da escetamina Imagem: iStock

Tire as dúvidas sobre o remédio

Quem pode usar o Spravato?

O Spravato não é um remédio para todos, nem a primeira escolha de tratamento contra a depressão. As indicações são para dois perfis de pacientes:

Quem trata depressão resistente, com pensamentos suicidas ou não;

Quem tem depressão moderada a grave com ideações suicidas, mesmo que a doença não seja resistente —mas estudos não apontaram a efetividade do remédio na prevenção ou redução de ideações suicidas.

O uso é analisado com cautela para quem tem:

  • Arritmias graves;
  • Histórico pessoal ou familiar de aneurisma;
  • Histórico de AVC (acidente vascular cerebral) nos últimos seis meses;
  • Está grávida ou amamentando, pois ainda não há estudos para esses grupos.

"Além disso, existe um risco de dependência pela substância, então pacientes com histórico de dependência química devem ser avaliados antes de fazer. Alergia à cetamina também é uma contraindicação", alerta o psiquiatra Leandro Valiengo, coordenador do Serviço de Neuromodulação do IPq-USP (Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo).

Quais são os efeitos colaterais?

  • Dissociação (a sensação de "estar fora do corpo");
  • Tontura;
  • Sonolência;
  • Náuseas;
  • Aumento da pressão arterial.

Mariana descreve a experiência como "viajar por dimensões", que traz uma sensação boa.

"De 20 a 40 minutos, entra em um negócio que é difícil explicar, como um buraco, e parece que eu estou viajando por dimensões. Depois, meu corpo vai voltando e sinto moleza. Saio baqueada, parece que tomei uma anestesia. No dia seguinte, me sinto caída, deprimida e com dor de cabeça", afirma a ilustradora.

Não é permitido dirigir no dia da aplicação e o paciente deve voltar acompanhado para casa. No dia seguinte, algumas pessoas costumam ter sono e dor de cabeça.

Como funciona a escetamina nasal?

A aplicação é feita nas duas narinas pelo próprio paciente. Após o uso, a substância vai direto para o cérebro, daí a sua ação ser mais rápida. Isso é diferente dos antidepressivos orais, que seguem o trajeto: trato gastrointestinal, fígado e sangue até as respostas chegarem ao cérebro.

Há a ativação de receptores cerebrais que trabalham em um efeito cascata. A principal ação é o aumento do glutamato, um neurotransmissor (mensageiro químico do cérebro) que aumenta as conexões cerebrais. Antidepressivos comuns agem em sistemas da serotonina e dopamina, por exemplo, substâncias ligadas à sensação de bem-estar.

O aumento do glutamato traz benefícios importantes para restabelecer os neurônios e as suas conexões. É o caso da neuroplasticidade, a capacidade do cérebro de expandir conexões, e o crescimento vascular.

É um mecanismo muito inovador e diferente do que se conhecia, porque repara e restabelece o cérebro atrofiado. O cérebro parece ser revitalizado, os neurônios ficam mais fortalecidos, ativados e conseguem restabelecer as sinapses nervosas. Sayra Catalina, psiquiatra do Hospital São Lucas da PUCRS

Tem pessoas que não respondem ao tratamento?

Sim. Pacientes com depressão há muito tempo, em estágios bastante cronificados, podem ter menos sucesso com o tratamento, segundo Catalina.

É importante priorizar um protocolo completo, com terapia e mudanças no estilo de vida. Além de usar antidepressivos complementares, o tratamento indicado na bula.

Mariana, por exemplo, toma quatro medicações, entre estabilizadores de humor, remédios para enxaqueca e contra as dores da fibromialgia. "São coadjuvantes. Estou tentando reduzir, mas leva um tempo."

Alguns pacientes vêm aplicar com a ideia de a medicação ser algo milagroso, mas é preciso tomar os outros remédios de forma adequada e ter intervenções como a psicoterapia. É necessário trabalhar outras questões da vida e de crenças. Sayra Catalina, psiquiatra

Ele participou de estudo clínico com a substância

Rogério*, que pediu para não ser identificado, foi diagnosticado com depressão em 2012. Até 2016, ele tomou pelo menos três antidepressivos diferentes. Nada funcionava.

Não pensava em suicídio, mas acordava, tomava banho, comia alguma coisa e voltava a dormir, o que eu acho que também era uma forma de suicídio. Rogério

Os sintomas pioraram em 2017, ano em que ele terminou o casamento e ficou desempregado. Foi quando decidiu procurar um novo psiquiatra e acabou sendo convidado pela médica para participar de um estudo da Janssen com a escetamina intranasal. Não pensou duas vezes.

Durante o ensaio clínico, ele ainda não podia saber se estava no grupo de voluntários que iria receber a escetamina ou o placebo, substância sem nenhum efeito no corpo. Mas Rogério diz que, desde a primeira dose, já pressentia ser um dos sortudos da primeira turma.

Rogério conta que sentiu mudanças no humor já após a primeira sessão do Spravato Imagem: iStock

"Depois da primeira sessão, todo o medo e desespero que eu sentia já foram diminuindo. Pensei 'poxa, tem saída para tudo'. Você fica lúcido. Parece que passa a respirar vida de novo", relembra.

No início, o tratamento acontecia três vezes por semana, mas as aplicações semanais foram espaçadas ao longo do tempo. Agora, quase seis anos após ter recebido a primeira dose, ele realiza uma sessão por mês.

Não há protocolo sobre o tempo de uso do Spravato. Médicos ouvidos pela reportagem trabalham com abordagens individualizadas. É possível, inclusive, fazer sessões únicas após crises da doença.

Os efeitos desse uso prolongado da substância são estudados. "Algumas pessoas estão em acompanhamento desde 2018 e vamos ter hipóteses mais consistentes sobre os efeitos colaterais pelo uso de longo prazo. Mas tem que se levar em conta que a depressão não tratada já traz muitas consequências ao paciente, com prejuízos cognitivos e de funcionalidade", alerta a psiquiatra Sayra Catalina.

Vida após o tratamento: 'É incrível você sentir a felicidade'

O que acontece após usar o Spravato? Pacientes entrevistados contam que conseguiriam criar uma rotina mais saudável Imagem: iStock

Rogério diz não ter mais um quadro de depressão profunda. Também vê melhoras em vários aspectos: no sono, na produtividade e até na vida amorosa. O publicitário também credita o avanço a tratamentos que recebeu nos últimos anos, incluindo terapia, que ele faz uma vez por mês desde 2021.

"Além do remédio, acredito que a terapeuta não tem um dedo, mas uma mão inteira nisso", diz ele, que destaca a relação com a alimentação e atividade física, além do apoio da namorada.

Mariana conta que o tratamento a fez "voltar à vida". Pela primeira vez em muitos anos, há ânimo para planejar o futuro, criar uma rotina, comer bem, fazer exercícios e terapia. "É incrível você sentir a felicidade. Saber que está há dias sem sentir depressão. Este foi o ano que mais viajei na minha vida."

Eu sinto que posso planejar uma vida daqui pra frente, ter metas, coisa que nunca tive, porque ter depressão é não ter futuro. Mariana Marques Spolidorio

Alto custo é barreira: 'Daria mais de R$ 20 mil por mês'

Rogério tem direito vitalício ao medicamento por ter participado do ensaio clínico da farmacêutica. "Se não fosse isso, não teria como pagar nem a embalagem do remédio."

Mariana teve a liberação do convênio, mas precisou judicializar um novo pedido ao mudar de plano de saúde neste ano. Ela ficou quatro meses sem a medicação. Voltou ao tratamento do zero em agosto, de novo à fase de indução. "Eu nunca arquei financeiramente, porque não tinha condições. No início, fui fazer as contas e daria mais de 20 mil reais por mês", conta a ilustradora.

"Foi um período horrível, porque eu não aguento ficar mais de 15 dias sem a medicação. Começo a ter uma recaída gigantesca, é todo dia chorando, tendo ideação suicida. Achei que ia ser internada. Só não fui porque meu médico é fortemente contra a internação", lembra. "É um medicamento que pode mudar vidas e eu queria que fosse acessível para mais pessoas."

VivaBem procurou a Janssen, que produz o Spravato, para perguntar se há interesse em solicitar a incorporação do remédio ao SUS. Em nota, a farmacêutica afirma que participa de discussões, com associações setoriais e órgãos do governo, "voltadas à ampliação e sustentabilidade de acesso às terapias inovadoras".

No entanto, destacou o que chama de "desafios do sistema de saúde do Brasil na saúde mental", incluindo a ausência de um PCDT (Protocolo Clínico e Diretriz Terapêutica) para a depressão, assim como a falta de orientações oficiais exclusivas para a depressão resistente.

"Isso faz com que, por exemplo, a recomendação de opções terapêuticas baseadas em evidências, bem como a escolha de tratamento dentro do arsenal terapêutico para condições como essa, não sejam assertivas, o que pode prejudicar pacientes mais cronificados que precisam dessa via de tratamento", diz a nota. Por fim, lembra que psicoterapia e mudanças no estilo de vida são peças "fundamentais para a remissão dos sintomas".

*Nome alterado a pedido da fonte.

Procure ajuda

Caso você tenha pensamentos suicidas, procure ajuda especializada como o CVV (www.cvv.org.br) e os Caps (Centros de Atenção Psicossocial) da sua cidade. O CVV funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados) pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente. São mais de 120 postos de atendimento em todo o Brasil.

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