'Acordei sem enxergar do olho direito e descobri esclerose múltipla aos 19'
Vitória Saccol, 22, foi diagnosticada com esclerose múltipla aos 19 anos após acordar sem enxergar do olho direito. Ela conseguiu recuperar a visão, mas descobriu que os tremores com os quais convivia há meses também eram sintomas da doença. "Fui a dois clínicos gerais, eles diziam que os tremores eram ansiedade e sedentarismo e me indicaram fazer exercício físico", conta a jovem.
A esclerose múltipla é uma condição autoimune, em que as células de defesa atacam o próprio organismo. A doença não tem cura e atinge o sistema nervoso central, formado pelo cérebro e a medula espinhal. Por isso, causa sintomas no corpo todo.
A perda da visão, como Vitória teve, pode acontecer após um surto —nome dado às crises da doença. "Isso significa que o cérebro tem uma inflamação", explica a médica radiologista Fernanda Rueda, do Complexo Hospitalar de Niterói (RJ), da Dasa. "Células de defesa que deveriam atacar agentes externos atacam parte do cérebro. Isso gera reação inflamatória e aquela região mais focal fica com lesão."
A VivaBem, Vitória conta como foi descobrir a doença e o dia a dia com a esclerose múltipla:
"Em 2019, passei por muito estresse com a separação dos meus pais, fiz o meio de campo entre eles. Já sofria de ansiedade e tive muitas crises até março de 2020. Foi quando o corpo relaxou, e a esclerose múltipla veio à tona.
Os primeiros sintomas foram tremor, dormência nas mãos e no abdome e cansaço sem motivo. Subir um lance de escada era difícil às vezes. Passava o dia sonolenta.
Fui a dois clínicos gerais, e eles diziam que os tremores eram ansiedade e sedentarismo e me indicaram fazer exercício físico. Também receitaram ansiolíticos e um regulador de humor. Na mesma semana, entrei na academia.
Os sintomas duravam 10, 15 dias e migravam. Comecei com formigamento no abdome, que passou para as mãos, depois tontura e fraqueza muscular. Até que perdi a visão do olho direito, que me levou a procurar o médico de novo.
Sou aquela pessoa que tenta melhorar sozinha e só depois vai ao hospital. Então, fiquei uns 15 dias com bastante dor no fundo do olho, mais uns 10 dias com a visão alterada. A gota d'água é que eu estava estrábica.
Fui ao oftalmologista em julho. Ele disse que poderia ser esclerose múltipla, porque estava com neurite óptica [inflamação do nervo do olho] e, em muitos casos, isso é decorrente da doença.
O diagnóstico
Fui à neurologista, ela ficou tão preocupada que fez uma carta à mão para eu ser atendida com urgência no hospital. Internei e depois de cinco dias recebi o diagnóstico de esclerose múltipla. Meu cérebro tinha mais de 20 lesões ativas, por isso eu estava com tantos sintomas.
Para ser sincera, não sei o que aconteceu na minha cabeça, mas encarei o diagnóstico muito tranquilamente. Não chorei.
Como sabia da suspeita, foi mais fácil preparar a cabeça. Mas não posso negar que foi difícil ter sido na pandemia. Recebi a notícia sozinha, tive que ligar por vídeo para os meus pais e contar. Depois, vê-los só pela janela do quarto.
Sequelas revertidas
Na internação, estava em surto. Eles são caracterizados por uma lesão ativa no sistema nervoso central, e os sintomas são consequências das lesões. Ou seja, dependendo de onde é a lesão, é onde surgem os sintomas.
Fiz a pulsoterapia, que é a alta dosagem de corticoide na bomba de infusão. Tomei por cinco dias, cerca de 6 litros de medicação. Foi uma dosagem bem alta, porque já fazia muito tempo que vinha com sintomas. O risco de não conseguir reverter minhas funções era alto, mas deu certo.
Quando tive alta, após 13 dias internada, comecei o tratamento com remédios imunossupressores, que tomo todos os dias. Eles mantêm a imunidade baixa, já que a doença é caracterizada por atacar o próprio corpo.
Tratamento errado
Entre julho e dezembro de 2020, tive mais quatro surtos. A minha doença estava bem ativa, porque o neurologista prescreveu um remédio que não tinha efeito, era pouco para o nível de atividade.
Fiquei seis meses tomando medicação errada. O surto que tive em dezembro de 2020 foi o pior, tinha 18 lesões ativas. Todo o meu lado direito do corpo estava comprometido.
Recebi alta no fim da tarde do dia 24 de dezembro e foi a última vez que internei. Em janeiro de 2021, mudei de neurologista, que trocou o remédio para um mais forte, pelo menos até eu estabilizar. Desde então, só tive dois surtos, estabilizei muito.
Controle emocional
Acho que ter controle emocional é essencial em 101% dos casos de esclerose múltipla. Conheci muita gente nas redes sociais que recebeu o diagnóstico e vê como o fim do mundo. Aí, não consegue se estabilizar enquanto não aceita.
Esclerose múltipla junto com o estresse e a ansiedade são coisas que não dão certo. Nos momentos em que estou bem estressada os sintomas aparecem. Inclusive, meu último surto foi em setembro depois de uma crise de ansiedade que não consegui controlar.
Sempre surge a neurite óptica com algum sintoma. Nesse surto, tive espasmos faciais do lado direito, que nunca tinha tido. Durmo bem e acordo com sintomas. A cada vez que a neurite surge, o nervo ocular se degenera. Sempre consegui reverter a visão, mas o meu grau do óculos aumenta e desenvolvi enxaqueca crônica.
Também tenho bastante fadiga e tremor às vezes. Sou designer de sobrancelhas e as minhas clientes sabem, já são acostumadas. Costumo tremer bastante. Me irrita, mas vou me adaptando e aprendi a trabalhar assim.
'A gente não sabe o dia de amanhã'
Não sou ligada a nenhuma religião, mas acredito em Deus. E, no dia do diagnóstico, falei para o meu pai: 'se Deus tá me dando essa cruz, é porque consigo carregar'.
Não foi me dada outra opção. Sempre lidei de forma tranquila e explico isso para as pessoas que descobrem a doença. Falo para ler, pesquisar. Tento levar da maneira madura, entender como meu corpo funciona e adaptar a rotina.
Por exemplo, trocava o dia pela noite. Sabia que precisava começar a dormir bem, comer bem e fazer exercício, porque é uma doença muscular e preciso ter resistência muscular. Comecei fazendo essas três coisas e tratando o meu psicológico. Acertei a medicação da esclerose múltipla e tratei as principais causas da doença. Estabilizei.
Não vou dizer que nunca pensei que posso ficar de cadeira de rodas. Às vezes eu penso, a gente não sabe o dia de amanhã, por quais traumas vai passar. Mas vou fazer o possível para não acontecer e não posso passar o resto da minha vida pensando nisso."
Entenda a esclerose múltipla
O que acontece? O mecanismo mais conhecido da esclerose múltipla é a perda da bainha de mielina, estrutura que protege os neurônios. Por isso, a doença é chamada de desmielinizante.
Os neurônios organizam como as células do cérebro se falam e comandam o resto do corpo por meio de impulsos nervosos, mas esse trabalho é prejudicado sem a bainha de mielina.
"O neurônio é como se fosse um fio elétrico, e a bainha é a sua capa. Quando se perde ela, o fio elétrico fica sem proteção, e a transmissão dos impulsos fica prejudicada, mais lenta ou até bloqueada. Daí surgem os sintomas", explica o neurologista Alfredo Damasceno, presidente do Comitê Brasileiro de Pesquisa e Tratamento da Esclerose Múltipla.
Quais são os sintomas? Os sintomas dependem da região afetada do cérebro ou da medula espinhal. Os mais comuns são:
- Perda de força;
- Dormência;
- Tremor;
- Alterações de visão (como o estrabismo e a neurite óptica);
- Formigamento nas pernas e mãos.
A neurite óptica sempre é causada pela esclerose múltipla? Não, mas é um alerta para investigar se a pessoa tem a doença. Outras condições têm relação com esse quadro, como a neuromielite óptica e infecções virais.
A esclerose múltipla é comum em jovens? Sim. Segundo o neurologista Alfredo Damasceno, cada vez mais jovens descobrem ter a doença.
Os primeiros sintomas costumam surgir a partir dos 20 anos. No entanto, o diagnóstico pode vir apenas depois se esses sinais se resolvem em poucos dias e são ignorados pela própria pessoa.
Sequelas são sempre revertidas? Isso depende da gravidade e do tempo das lesões, além da repetição dos surtos. "Vemos que alguns pacientes acumulam sequelas ao longo do tempo, por isso a importância de não tratar só o surto, mas manter tratamento de base para evitar surtos frequentes", alerta a médica radiologista Fernanda Rueda.
Quais as causas dos surtos? Nem todos os gatilhos são conhecidos, mas sabe-se que jovens têm mais risco para crises. Fatores genéticos, ambientais (como a deficiência de vitamina D), tabagismo e alto estresse também influenciam na piora da doença.
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