Com câncer, ela não acreditava no médico: 'Falta de informação é uma droga'
Faltavam poucos dias para o Natal de 2015, e Vanda Pereira ia receber alta do hospital. Ela tinha acabado de fazer uma cirurgia para retirar nódulos de câncer da mama. Seria um momento de comemorar a vida em seus diferentes significados se não fosse o medo.
Medo da solidão. Medo de morrer. Medo de morrer e não ter ninguém por perto para tomar providências. Notícia terrível que revelou o desespero.
"Pelo amor de Deus, me deixa ficar aqui, não quero ir pra casa", suplicou à médica. Cada palavra de clamor deixava rastros de insegurança. Mas não tinha como permanecer no hospital.
Um choro doído embala essa lembrança enquanto conversamos por videochamada. Estamos a cerca de 400 km de distância, mas as lágrimas dela do lado de lá travam minha garganta do lado de cá.
É que pensar na morte, em como ela pode ser, dói. E dói pensar hoje que a história poderia ter sido diferente se informações sobre a doença estivessem ao alcance dela.
Eu nem imaginava que pudesse ter câncer. Por falta de informação, achava que era doença de rico. Vanda Pereira
Vanda tem 60 anos, é cozinheira e moradora de Shangrilá, bairro de Belford Roxo, na Baixada Fluminense.
O IDHM (Índice de Desenvolvimento Humano Municipal) de lá é 0,684, considerado médio segundo o Atlas do Desenvolvimento Humano. No quesito educação, o indicador fica em 0,598, uma classificação baixa.
"Não conhecia ninguém com câncer, nunca tinha ouvido falar que alguém tivesse morrido de câncer. Quando ouvia, era na televisão, falando de gente famosa", explica.
Por isso, quando recebeu a notícia de que estava com a doença, não quis acreditar. Levou um tempo para assimilar as palavras da médica, que diziam calmamente que iam cuidar dela. Palavras essas nas quais Vanda não acreditava.
"No caminho para a Central do Brasil (estação de trens no Rio), caiu a ficha que estava com câncer e tinha certeza que ia morrer, porque todo mundo morria." Essa certeza a acompanhou por muito tempo e ficava latente diante das dificuldades.
Uma vida marcada
Vanda tinha 16 anos quando sentiu uma saliência no seio. Não doía, mas foi levada ao médico pela mãe para investigar. Na época não tinha biópsia, ela lembra de pedirem uma mamografia e de o médico falar em operar. "Era uma coisa que me assustava, porque eles diziam algo como 'iam ver o que era'", conta.
O susto foi maior quando retornou da cirurgia e viu um curativo gigante com drenos saindo da mama. Sem saber o que era, gritou apavorada. Foi um mastologista que a tranquilizou, explicando que haviam tirado nódulos benignos do seio dela.
A partir dali, a jovem foi orientada a repetir exames anualmente, mas nunca imaginou que poderia ter câncer. Foi assim por mais de 30 anos, sempre acompanhada da mãe, até que a genitora que tanto idolatrava, que tinha cuidado tanto dela e com quem dividia a profissão, adoeceu.
À medida que a doença de Alzheimer apagava memórias, Vanda deixou de lado o próprio tratamento para se dedicar à mãe, retribuir todo o afeto que havia recebido até ali. Em 2012, a morte da mãe devastou uma filha sempre sorridente, que passou a conviver com a depressão.
Em tratamento psicológico e psiquiátrico, a cozinheira também não tinha cabeça para retornar sozinha aos exames de rotina. Também pensou que não tinha com o que se preocupar, afinal, pois nada tinha sido diagnosticado até então.
"Quando tive alta psicológica e da psiquiatra, fui fazer um check-up e no exame estava lá: BI-RADS 4, que hoje sei exatamente o que é", diz. Esse tipo de alteração indica suspeita de malignidade e precisa de biópsia para confirmação. Foi um ano de rastreio até constatar o câncer.
No caminho do tratamento
Vanda iniciou o tratamento pelo SUS no Instituto Fernandes Figueira, a cerca de 50 km de sua casa e a pelo menos duas horas de transporte público. Em fevereiro de 2016, seguiu para o Hospital Central da Polícia Militar, só dez quilômetros a menos de distância.
Mas para fazer radioterapia, tinha de ir a uma clínica em Petrópolis, a mais de 60 km de onde vivia. Precisava acordar 4h, pegar uma das duas únicas linhas de ônibus de Shangrilá até um ponto de encontro, onde uma van levava pacientes até o local.
Às vezes, o tempo era cruel e ela chegava ao ponto de encontro cinco minutos depois da saída da van. Nessas horas, a morte lhe vinha certa na cabeça e ela pensava em desistir.
O desafio exemplifica os achados de um relatório da Roche Farma Brasil em parceria com a consultoria AT Saúde: pessoas com câncer de mama que se trataram fora do município de residência ou de sua macrorregião de saúde sobreviveram até um ano a menos do que aquelas que ficaram no mesmo município.
Vanda não desistiu, porque também encontrou no caminho pessoas que a ajudaram com carona e um local para dormir que fosse mais próximo. Em uma dessas longas viagens, a van retornou de Petrópolis sem ela. "O desespero foi muito grande. Eu falava 'eu sabia' e brigava com Deus. Por que eu?"
A resposta veio na figura de uma mulher que era recepcionista numa casa de apoio a pacientes com câncer em Petrópolis. Convidada por ela a conhecer o local naquele dia, Vanda se intrigou. Viu cores, música e alegria. Ninguém parecia em tratamento de câncer.
"Eu não acreditava, porque elas tinham cabelo, cílios, sobrancelhas e eu não tinha nada disso", recorda numa voz engolida pelo choro. Mas ela se deixou ser acolhida e saiu dali no fim da tarde dizendo que voltaria. Como os serviços ali oferecidos eram pagos, ela recorreu à patroa, que deu o dinheiro para fazer o tratamento.
Segundo as instruções, a radioterapia demandava hidratar a mama com creme ou óleo de girassol. Vanda foi na segunda opção, mas depois de uma semana, a pele ficou sensível.
"Eu lavava, mas não tirava todo o óleo. Comecei a fazer radioterapia e minha pele criou bolha, começou a fritar, ficou em carne viva. E de novo pensava: 'não tem jeito'. Doía, estava muito mal e falei que não queria mais fazer o tratamento ou preferia morrer logo."
'Só por hoje'
A equipe médica insistiu, explicou, acolheu. Mas Vanda era só resistência. "A falta de informação é uma droga, porque ele era médico, sabia o que estava falando, mas eu não acreditava."
Ela ficava na casa de segunda a sexta e todos os dias "as meninas" iam buscá-la para fazer o tratamento. "Só por hoje", elas diziam. E de dia em dia, ela foi melhorando. Até ali, ela diz ter se tornado uma pessoa má. Não entendia por que as pessoas ao redor estavam sorrindo quando ela estava morrendo —ou pelo menos, era o que achava. E odiava cada bom humor.
Depois de tantos desesperos que foram aliviados com informação e acolhimento, Vanda finalmente chegou a um ponto de paz. "Fui percebendo que não ia morrer, que estava vivendo."
Envolvida com as atividades da casa, chegando ao seu momento de superação, a mulher que tinha perdido e odiado o riso voltou a esbanjar alegria. Decidiu que precisava buscar mais informações e passou a aceitar convites para contar sua história em eventos, ainda em Petrópolis.
Mas precisava fazer a diferença onde moro. Porque se tivesse tido informação, não teria passado por tanta coisa.
Em um desses encontros, conheceu o Instituto Nosso Papo Rosa, que atua para disseminar informações sobre câncer de mama. Assídua dos eventos da organização, Vanda se tornou embaixadora, com a missão de espalhar conhecimento sobre a doença.
Redenção
De volta a Shangrilá, ela decidiu oferecer um culto de ação de graças por estar viva. Em casa, colocou caixas de som gigantescas do lado de fora e o bairro inteiro ouviu seu testemunho.
"A partir dali, as pessoas começaram a me procurar no caladinho, pedindo pelo amor de Deus que eu não contasse que a filha, a mãe, o fulano estava com câncer", diz.
Ali, ela compreendeu ainda mais a necessidade de informação no local e com o título de embaixadora tem ajudado sua comunidade. "Meu sonho é ter uma caminhada do Outubro Rosa em Belford Roxo. E se depender de mim, ninguém mais sofre em Shangrilá ou em Belford Roxo por falta de informação."
Acesso à informação
Pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha, encomendada pela Gilead Oncology, mostrou que 69% das brasileiras se consideram bem informadas sobre câncer de mama. Mas mulheres pretas e pardas dizem ter mais dificuldade de acesso à informação (35%) do que as brancas (20%).
O desafio se estende pelas regiões Norte e Centro-Oeste do Brasil, onde cerca de 49% das mulheres reconhecem que têm conhecimento limitado ou insuficiente sobre a doença.
"Os pacientes não têm acesso à informação porque as consultas são rápidas, os médicos não explicam e a pessoa não pergunta", diz a oncologista Sabrina Chagas, especialista em cuidados paliativos e vice-presidente do Instituto Nosso Papo Rosa.
Ela percebeu mais essa escassez quando começou a realizar eventos para lançar o livro "Como estamos? O desafio do câncer de mama", em que relata a jornada do pai, também médico, diagnosticado com câncer de mama em 2015.
Maria Julia Calas, ginecologista, mastologista e presidente do instituto, também viu muitos mitos sendo difundidos a respeito da doença. "A pessoa acha que bateu mama, que foi porque separou do marido, dizem que não pode falar a palavra câncer", comenta.
Foi para contribuir com uma visão mais correta acerca da doença, ajudar pacientes, familiares e a população geral que as médicas fundaram o instituto. "A sociedade precisa quebrar preconceitos e tabus com relação à pessoa com câncer. Em muitas coisas ditas, em vez de apoio, se vê agressão emocional", afirma.
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