'Achei que viveria só mais 10 anos', diz mulher com diabetes há 73 anos
Fome, perda de peso, sede. Esses foram alguns dos sintomas que Carmen Wills, 92, sentiu antes de quase entrar em coma por causa do diabetes em 1950, quando recebeu seu diagnóstico do tipo 1 da doença. Ela é a mulher mais velha do país a conviver com a doença.
De acordo com o Ministério da Saúde, quase 7 milhões de brasileiros têm a doença. Já a OMS atribui o alto nível de glicemia no sangue como o terceiro fator determinante para mortes prematuras. O que mostra que o diabetes é muito mais sério do que muita gente pensa.
Para VivaBem, Carmen contou como foi o diagnóstico em uma época em que o diabetes era pouco conhecido, a evolução de seu tratamento e como convive, há 73 anos, controlando o açúcar em seu sangue.
"Fui diagnosticada com diabetes há 73 anos, na década de 1950. Estava passando muito mal, com alguns sintomas como sede, muita fome, perda de peso, desidratação. Quando procurei ajuda médica estava quase em coma. Não tinha mais condições nem de falar.
Fui atendida no Hospital dos Servidores do Estado, no Rio de Janeiro. Minha irmã era nutricionista-chefe da unidade, trabalhava como enfermeira, e já suspeitava que meu problema era diabetes.
Passei por uma consulta com o endocrinologista no mesmo dia. Ele imediatamente me pediu um exame de glicemia e constatou que, sim, meu problema era diabetes.
Fiquei um mês internada. Foi necessário adequar minha dieta com a quantidade de insulina que eu precisava. E, na época, isso tomava tempo. Não tínhamos tantos recursos como temos hoje. Quem tinha diabetes dependia de uma dieta restrita para conseguir controlar a glicemia.
Mesmo sabendo da delicadeza do problema, não fiquei mal com o diagnóstico. Na verdade, fiquei aliviada. Acreditava que estava com câncer. Como imaginava algo pior, mantive o bom humor.
Apesar do alívio, acreditava que, por conta do diabetes, iria durar só mais uns 10 anos, que era a expectativa de vida da época.
Não tínhamos muito conhecimento da doença. Comecei a ler mais sobre a doença e, no primeiro livro que ganhei, havia figuras de pessoas que tinham que amputar os pés, com problemas no rim, precisando de transplante. Esse era o prognóstico. Me cuidava para não ter que passar por aquilo.
Diziam que não tinha cura, mas logo no começo procurei algumas pessoas que oravam para interceder por mim. Eu tinha vontade de me curar. Queria me livrar daquilo. Mas como não tive essa resposta, me acomodei e segui tocando minha vida com disciplina. Aprendi a ter mais respeito pela vida.
Para acompanhar a doença, ia ao laboratório fazer exame de sangue uma vez por mês. As coisas não eram como são hoje. Esse era o único recurso que tínhamos, além do exame de urina onde usava-se um reativo direto no tubo de ensaio para saber se havia muito açúcar ali: se após aquecido o xixi ficasse vermelho era porque estava alto. Esse exame eu fazia todos os dias.
Mudança de vida
Meu diagnóstico chegou quando eu tinha apenas 19 anos. Estava terminando o curso científico e me preparando para o vestibular de medicina. Mas não posso culpar apenas o diabetes pela minha mudança de planos. Meu coração atrapalhou também: me apaixonei e me casei aos 21 anos. Então, segui carreira em pedagogia.
Fui aconselhada pelos médicos a não engravidar, pois poderia ser prejudicial tanto para mim quanto para os bebês. Eu e meu marido tentamos evitar, mas após três anos de casamento, engravidei. Não existia pílula anticoncepcional, dependíamos da tabelinha, que é inadequada e não funciona perfeitamente.
Apesar dos alardes, correu tudo bem com a gestação —as duas que tive. Precisei fazer cesárea nas duas situações, porque as crianças cresciam demais devido aos altos índices de glicemia no meu corpo.
Minha irmã nutricionista, a mesma que me deu meu diagnóstico, foi pioneira da nutrição no Brasil. Ela preparou meu cardápio e cuidava de mim. Me ajudou muito. Nunca fui de comer demais e não era muito interessada em doces. Não foi muito complicada essa parte para mim.
Algumas atividades, por outro lado, eram desafiadoras por eu ser portadora de diabetes. Não fui fazer o vestibular, por exemplo. Andava com uma balança na bolsa para poder pesar minha comida. Controlar as injeções eram ainda mais complicado. Era necessário ferver a seringa todas as vezes antes de aplicar a insulina. Não existiam opções descartáveis. A seringa era de vidro. Carregava comigo também um fogareiro, para ferver e desinfetar agulha e seringa para aplicar insulina quando eu precisava.
Evolução do tratamento
Como fui diagnosticada há muitos anos, demorou para que as tecnologias chegassem para os cuidados do diabetes. Não faz tanto tempo assim que elas evoluíram.
Primeiro surgiram as tirinhas que usávamos na urina para ver a quantidade de glicose. Depois, a opção de furar o dedo e fazer o mesmo com o sangue. Isso ajudou bastante no controle diário da doença.
Também precisamos falar da própria evolução da insulina. A chegada da caneta, com uma agulha pequena e com a dosagem correta que o médico receitou é recente. Existem diversas novas tecnologias, mas parei de testar porque estou acomodada no meu sistema. Mas elas são ótimas para jovens e eu apoio muito.
Controle há 73 anos
Tenho 92 anos e já vivo com o diabetes há mais de sete décadas. Faço exercícios, vou ao pilates e, quando dá, uso a academia do prédio. Faço aquilo que é recomendado para idosos.
Cuido da minha alimentação, mas não sou muito rigorosa no controle de carboidratos. Já não estou mais muito a fim de fazer cálculos na hora de comer, vou pelo olho mesmo.
Não fico parada, não. Fico um pouco no computador porque tenho um grupo de estudos da Bíblia pelo Zoom, mas também cozinho, lavo roupa, arrumo as coisas em casa... Estou sempre me mexendo. Sou agitada demais.
A insulina salvou minha vida, sem ela não teria como sobreviver. Quando saí do hospital após meu diagnóstico achava que não precisaria mais dela. Mas aprendi que não era bem assim."
Diabetes como deficiência
Levimar Araújo, presidente da SBD (Sociedade Brasileira de Diabetes), é o primeiro a ocupar o cargo tendo diabetes. Ele faz uso de insulina há 42 anos e disse que, há alguns anos, o diagnóstico da doença era quase uma sentença de morte.
O paciente com diabetes tipo 1, antes da descoberta da insulina, vivia no máximo 3 meses, e com uma dieta extremamente restrita. Quase uma inanição. Foi a insulina que aumentou essa expectativa de vida. Levimar Araújo, presidente da SBD
Ele está trabalhando, junto ao Congresso Nacional, para que as pessoas com diabetes tipo 1 sejam consideradas deficientes crônicos.
"A primeira causa de amputações por problemas vasculares em 2022 foi consequência do diabetes. A doença também é uma das principais causas do transplante de rim", explica.
Carmen Wills tem uma medalha de 50 Anos de Diabetes oferecida pelo Programa Medalhistas do Joslin Diabetes Center (EUA), o maior e mais conceituado centro de estudo e tratamento de diabetes no mundo. E daqui a 2 anos, ela estará lá para ser agraciada com a medalha dos 75 anos de diabetes.