Não sabe arrotar? Sim, é um problema, mas pode ser tratado com botox

Sempre que falamos, comemos ou bebemos —principalmente bebidas gaseificadas— estamos engolindo ar, que pode se acumular no estômago e incomodar. Para evitar o desconforto, o arroto é um dos artifícios de que o organismo dispõe.

Arrotar ocasionalmente é normal, mas há pessoas que não conseguem liberar o ar dessa forma, o que configura uma disfunção que precisa ser tratada. O nome é um pouco complicado: disfunção cricofaríngea retrógrada, ou apenas DCF-R.

O problema ocorre na região do pescoço, entre a faringe e o esôfago, onde encontramos o esfíncter esofagiano superior, composto pelo músculo cricofaríngeo.

Quando ingerimos algo, esse músculo relaxa para deixar o alimento ou bebida passar.

Sem ingestão, ele mantém uma certa pressão, fechando-se, para proteger as vias aéreas de refluxo e impedir a entrada excessiva de ar.

Ao precisar arrotar ou mesmo vomitar, essa musculatura relaxa para que o ar ou conteúdo gástrico saia pela boca.

Mas na DCF-R, esse relaxamento no fluxo contrário, do estômago para a boca, não ocorre e o ar fica retido.

Ao falar em arroto, vem à mente aquele ato barulhento, mas não é só isso. A liberação de ar que deveria ocorrer naturalmente é geralmente discreta.

Pense em quando você toma um refrigerante com muito gás e logo em seguida já libera um arzinho pela boca. É esse alívio que as pessoas com DCF-R não sentem.

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Para elas, é como se fosse normal não arrotar. "Eu não via isso como um problema. Sempre achei que não tinha aprendido a arrotar, como se aprende a assobiar", conta o engenheiro Marco Enes, 46.

Marco vivia certa privação social para evitar passar mal
Marco vivia certa privação social para evitar passar mal Imagem: Arquivo pessoal de Marco Enes

Mas ele se recorda de sempre sentir o estômago estufado, todos os dias, o que restringia seus hábitos e vida social.

"Tinha que regrar a alimentação, não conseguia comer muito nem tomar nada gaseificado. Não podia tomar cerveja ou espumante em festa de casamento. Quando tomava, porque queria, sabia que ia passar mal depois."

Além do estufamento, outros possíveis sintomas são:

  • Dor no peito;
  • Náusea;
  • Regurgitação;
  • Dificuldade para engolir;
  • Sensação de um nódulo na garganta;
  • Ruídos no pescoço e tórax;
  • Soluços;
  • Flatulência;
  • Dificuldade para vomitar.
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Esses sintomas estão presentes em outras condições de saúde, o que faz a pessoa buscar soluções em vão. Camila Scheuermann, 37, gerente de projetos na área farmacêutica, chegou a consultar um cardiologista por conta de dores no peito e nas costas.

Ela também sentia enxaquecas —de quatro a cinco episódios por ano— e desenvolveu emetofobia, que é o medo excessivo de vomitar.

Por conta da distensão abdominal, sentia-se sem energia já na metade do dia e evitava sair à noite, porque as roupas ficavam apertadas. O quadro de desânimo foi até confundido com leve depressão.

Camila consultou diferentes médicos, sem sucesso, antes de descobrir disfunção
Camila consultou diferentes médicos, sem sucesso, antes de descobrir disfunção Imagem: Arquivo pessoal de Camila Scheuermann

Aos 26 anos, percebeu os ruídos na garganta, que outras pessoas não tinham, mas também não associou ao fato de não arrotar.

No ano passado, em mais uma pesquisa online sobre o tema, encontrou vídeos em inglês e um fórum na plataforma Reddit chamado No Burp, que significa "sem arrotar". Foi quando se identificou.

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"Vem aquele momento do choque, de encontrar o meu problema e saber que tem cura. Foi algo bem marcante", conta.

Pouco conhecimento

"Essa condição deve existir há muitos anos, mas não era diagnosticada. Foi o médico americano Robert Bastian que a descreveu em artigo publicado em 2019", diz o otorrinolaringologista Geraldo Druck Sant'Anna, da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre (RS).

O conhecimento sobre a DCF-R é tão recente quanto pequeno. Não se sabe quão frequente é na população nem a causa dessa falha muscular.

João Pedro Resende Cantarini, otorrinolaringologista da Meu Doutor Novamed Barra da Tijuca (RJ), destaca a hipótese de um problema na comunicação entre os nervos e os músculos que controlam o relaxamento do músculo cricofaríngeo.

"Isso pode ser causado por uma variedade de fatores, incluindo lesões nervosas, doenças neurológicas ou outras condições médicas", diz. Porém, mais pesquisas são necessárias para compreender melhor a DCF-R.

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Uma forma de identificar a disfunção é por meio do exame esofagomanometria de alta resolução, que mede a pressão dos esfíncteres esofagianos e pode revelar o relaxamento incompleto do músculo em resposta a injeções de ar no esôfago.

Botox para arrotar

Enes só foi entender o que tinha no ano passado ao encontrar informações no mesmo fórum do Reddit que Camila acessou. "Tudo começou a fazer sentido", lembra. Ali também tinha um grupo de brasileiros que se conectaram e compartilharam nomes de profissionais que tratavam a disfunção.

Em abril deste ano, o engenheiro foi de Porto Alegre a São Paulo para realizar o tratamento, que consiste na aplicação de toxina botulínica no músculo disfuncional. Feita com anestesia geral, a aplicação dura cerca de 15 minutos e a pessoa recebe alta no mesmo dia.

Mas o resultado do engenheiro não foi o esperado, porque ele sentia que precisava forçar a saída de ar e ainda vivia estufado. Em setembro, recorreu ao médico Sant'Anna, que fez o procedimento pela primeira vez.

"De um dia para o outro, passei a ser uma pessoa normal", descreve Enes. "No dia seguinte, vi que tinha dado certo e para mim foi uma baita novidade." Nada de barriga estufada, tudo de vida social. "Posso tomar cerveja com os amigos sem preocupação de passar mal depois", comemora.

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Camila fez o procedimento na Alemanha, onde mora, há um ano. No primeiro dia já conseguiu arrotar e conta que o ato foi frequente no primeiro mês, involuntariamente. Entre os cuidados pós-cirúrgico, Sant'Anna indica uma dieta mais leve nos primeiros dias "para ver se não vai engasgar".

Bárbara Belmont, otorrinolaringologista do HUAC-UFCG (Hospital Universitário Alcides Carneiro da Universidade Federal de Campina Grande), ligado à rede Ebserh (Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares), alerta que a cirurgia, como todas, não é isenta de riscos e contraindicações.

"Ainda que de maneira transitória, pode causar dificuldade para deglutir alimentos sólidos, problemas respiratórios, alterações na voz e aspiração laríngea, com risco de pneumonia. Portanto, cada paciente precisa ser avaliado de forma individualizada", afirma.

A proposta de tratar a DCF-R com botox veio da experiência com outras condições. Há distúrbios em que os músculos da garganta e da boca ficam descoordenados durante a deglutição, podendo causar engasgos. Outros dificultam engolir e há casos de contração do esfíncter esofágico após um AVC.

"O botox pode ser usado para relaxar os músculos que estão causando obstrução ou estreitamento, permitindo que os alimentos e líquidos passem mais facilmente", explica Cantarini.

Resultado é para sempre?

No estudo de Bastian, com 51 pessoas e acompanhamento de seis meses, todas conseguiram arrotar após a injeção. Mas 11 delas ficaram menos capazes ou incapazes de arrotar novamente, e outros sintomas retornaram entre oito e 20 semanas após a aplicação.

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Quatro dos pacientes que perderam a capacidade de arrotar refizeram o procedimento e recuperaram a habilidade, com sintomas resolvidos. Após três meses, um deles precisou de nova aplicação, totalizando três.

Nem Marco nem Camila precisaram refazer o procedimento até agora, mas a experiência com a toxina em outras condições —como para rejuvenescimento facial— mostra um benefício temporário.

"Pode haver recorrência dos sintomas alguns meses após a aplicação inicial, podendo ser necessárias novas aplicações ou outros procedimentos adicionais", comenta Belmont.

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