Dor e cansaço inesgotáveis: doença rara é desafio para diagnóstico precoce
Uma dor que leva às lágrimas e paralisa, porque dificulta levantar da cama e realizar tarefas rotineiras. Uma queimação nos pés e nas mãos, como se estivessem em chamas e o único alívio fosse imergi-los em água gelada. Mas no banho durante o inverno, a água aquecida cai como agulhas sobre a pele.
São essas as sensações experimentadas por pessoas com doença de Fabry, caracterizada pela ausência de uma enzima importante no organismo. Hereditária, rara e progressiva, a condição afeta de um a três em cada 100 mil nascidos vivos. No Brasil, a estimativa para 2023 é de 983 casos.
A empresária Monica Cristine Slongo Fich de Almeida, 34, foi diagnosticada em 2004 junto com outros membros da família: o pai e sete irmãos dele, a irmã e primos dela.
Ela se recorda de sentir dor desde os 6 anos de idade.
Na escola, não conseguia acompanhar os colegas em brincadeiras que exigiam movimento corporal. Lembra também do pai chegando em casa carregado pelos colegas de trabalho, porque a dor o impedia de caminhar. O tio era acusado de andar "torto de bêbado". Mas era tudo por causa da doença.
Além das dores pelo corpo e cansaço inesgotável, os sintomas incluem:
- Febre
- Dores abdominais
- Diarreia
- Constipação
- Inchaços pelo corpo
- Manchas arroxeadas
Em consultas médicas, Monica era desacreditada. Fingimento, problema de cabeça, querer imitar o pai ou chamar atenção eram as conclusões dos profissionais. Na adolescência e no começo da vida adulta, encontrar um emprego era desafiador, porque ninguém entendia a necessidade de se ausentar quinzenalmente para fazer o tratamento no hospital.
A história se repete na família da técnica social Simara Regina Lovizon, 46, em que se tem conhecimento de nove pessoas com doença de Fabry, incluindo ela e os dois filhos. Guilherme, o filho, tem 24 anos hoje e recebeu o diagnóstico aos 6.
Trabalhando como motorista, por vezes ele não consegue liberação da empresa para fazer o tratamento. Pegar muitos atestados médicos não é visto com bons olhos. E por mais que se explique, é difícil as pessoas acreditarem em uma doença invisível.
Consequências graves
Os sintomas costumam aparecer entre os 6 e 10 anos de idade e são resultado da deficiência de uma enzima no organismo, a alfa-galactosidase A.
Ela é responsável por eliminar toxinas das células, mas, sem ela, compostos gordurosos se acumulam e as células passam a funcionar mal.
Como as células estão em cada pedacinho dos nossos órgãos e corpo, eles também começam a sofrer, se debilitar e emitir aqueles sinais de alerta. Um zumbido no ouvido pode surgir com a progressão da doença e levar à surdez.
"O grande problema é quando afeta os órgãos nobres: rins, coração e cérebro. No sistema nervoso central, leva principalmente a quadros de derrame", explica Ana Maria Martins, especialista em genética clínica e diretora do Centro de Referência em Erros Inatos do Metabolismo da Unifesp.
Sem tratamento, o quadro evolui lentamente e reduz a expectativa de vida. Problemas cardíacos e principalmente renais podem surgir, o que demanda hemodiálise.
Desafio do diagnóstico
A variedade de sintomas confunde a condição com outras, como lúpus, dores do crescimento, artrite reumatoide e esclerose múltipla. E esse é um dos desafios para identificá-la. Mas diferente delas, a doença de Fabry provoca uma dor característica, neuropática, periférica e constante, que não melhora ao longo do dia, explica Martins.
Em paralelo caminha a falta de conhecimento dos médicos sobre doenças raras. Durante uma investigação do quadro clínico, é preciso saber que doença de Fabry existe para considerá-la ou descartá-la do rol de possibilidades.
Para Monica, foi uma "nota de rodapé" lida na faculdade pelo médico que mudou os rumos da família dela. Em 2004, quando o especialista ouviu as queixas do pai de Monica e viu manchas na pele da tia dela, lembrou da "passada" que deram sobre a doença de Fabry no curso de medicina.
Simara também fala de um diagnóstico por acaso. Um nefrologista fazia acompanhamento de hemodiálise em um familiar da mãe dela. Após uma especialização nos EUA, ele notou que os sintomas da mulher eram iguais aos das pessoas com Fabry vistas lá e resolveu fazer o exame. A partir dali, os demais foram chamados para o teste.
Tratamento essencial e caro
A reposição da enzima por meio de infusões na veia é primordial para o bem-estar de quem tem a doença. Em maio deste ano, o primeiro medicamento que trata doença de Fabry foi incorporado ao SUS, mas não é o mesmo que Simara e Monica precisam.
"Se a medicação está em dia, faço tudo que uma pessoa normal faz, praticamente não tenho dor", diz Monica. Há períodos, no entanto, em que a medicação não está em dia.
Como o remédio dela não está disponível na rede pública de saúde, a via judicial é o caminho para o estado fornecê-lo gratuitamente.
Ela só conseguiu a medicação dois anos após o diagnóstico, e o pai dela morreu de complicações da doença em 2007 antes disso. "Às vezes o estado manda, às vezes não. Já fiquei seis meses sem", conta.
Se tivesse de pagar pelo medicamento, a empresária teria de desembolsar R$ 22 mil em cada frasco. Por mês, ela precisa de quatro. Simara enfrenta a mesma saga e chegou a ficar um ano sem a medicação.
"Sem remédio, coisas corriqueiras como levantar da cama é uma luta para a gente. Quando a gente fica sem tratamento, fica muito mais cansada, com dores", descreve. Já para o filho dela nunca falta, porque aos 8 anos de idade ele entrou em um estudo clínico do medicamento, que é disponibilizado até hoje.
A médica Ana Maria Martins diz que a medicação vai agindo aos poucos conforme o tempo. Com seis meses de tratamento, a pessoa já sente a queimação nas mãos e pés diminuir e a intensidade da dor reduzir. "Quanto mais cedo tratar, melhores serão os resultados, porque tem menos tempo de doença e menos depósito de gordura", explica.
Mas começar o tratamento e interrompê-lo é pior. "O depósito acontece muito mais rápido", diz, e a evolução da doença acelera.
Doença mais grave em homens
A doença de Fabry está associada ao cromossomo sexual X, que carrega o defeito da enzima. Como do ponto de vista biológico os homens têm apenas um cromossomo X na determinação do sexo, ele tem o único com a "receita errada", explica Martins.
Já a mulher tem dois cromossomos X, então é como se um "compensasse" o efeito negativo do outro. Quando a doença se manifesta nelas, o quadro pode variar de poucos sintomas até casos mais graves parecidos com os dos homens.