Ela tem depressão desde os 10 anos e, aos 25, descobriu ser autista
Hadassa Bernardo, 27, sempre teve dificuldades nas interações sociais, sensibilidade a ambientes barulhentos e o paladar bastante seletivo. Entender o porquê disso só foi possível há dois anos, quando ela descobriu ser autista.
A descoberta veio porque Hadassa tem depressão resistente, difícil de ser tratada com os remédios comuns. Ela foi diagnosticada aos 10 anos e aos 15 teve a indicação do primeiro antidepressivo. Foram mais de dez tentativas de tratamento desde então, todas sem sucesso.
"Até que vi o texto de uma médica de família, em que ela falava que ter depressão há muitos anos sem melhora não era tão comum, que podia ser algo além disso", lembra Hadassa.
A jovem se consultou com essa médica, que levantou a suspeita do TEA (transtorno do espectro autista) e a encaminhou para uma psiquiatra especializada. Hadassa foi diagnosticada na primeira consulta com a profissional, após testes e "muita conversa", principalmente sobre a sua infância.
Hadassa é autista de nível 1, em uma escala que vai até 3 e é determinada pelo grau de suporte, sendo o último o de maior necessidade.
No autismo, o cérebro funciona de maneira atípica. Não há alteração das suas estruturas, mas sim da comunicação e interação dos neurônios —que organizam como as células cerebrais se falam e comandam o resto do corpo. Isso causa comportamentos específicos, como alterações sensoriais e da fala.
Com o diagnóstico, entretanto, veio o alívio. Descobrir o autismo significou a esperança de melhorar da depressão.
Naquela época, eu estava muito mal e bem desesperançosa, já tinha tentado muitas opções de tratamento e não tive melhora. Quando descobri que sou autista, pensei que eu me sentiria melhor da depressão, após ter ajuda com o TEA. Hadassa Bernardo
Histórias como a dela não são raras. Muitos diagnósticos de autismo podem acontecer durante a investigação de questões psicológicas, em especial nos adultos —é importante pontuar que a pessoa já nasce autista, ninguém desenvolve o transtorno ao longo da vida.
A taxa de comorbidade psiquiátrica é muito elevada no autismo. E é bastante comum para essas pessoas terem o diagnóstico ao tratar condições como ansiedade e depressão. Daniela Bordini, psiquiatra coordenadora do Ambulatório de Cognição Social Marcos Mercadante, centro especializado em TEA da Unifesp
A psiquiatra explica que conviver com os desafios do autismo sem recursos pela falta de diagnóstico causa sofrimento e favorece transtornos psiquiátricos. É o que Hadassa sente. "As dificuldades diárias, mesmo coisas simples da vida, iam me deprimindo", diz.
Por isso, o amparo psicológico é essencial no tratamento. "Muitos adultos chegam já desistindo de tentar interagir, ficam mais isolados e muitas vezes adoecem", alerta Bordini.
A pessoa passa a vida toda sem entender o que a forma como se sente significa e até sem desempenhar as suas funções. A maioria apresenta inabilidade social e sofre muito bullying, é alvo de críticas. Há todo um desgaste emocional. Daniela Bordini, psiquiatra
Desenvolver estratégias para o dia a dia
O tratamento de Hadassa para o autismo não inclui medicação. Ela faz terapia para criar estratégias e lidar com as dificuldades do transtorno. "A cada sessão descubro algo novo de como o autismo me afeta, e como criar estratégias para melhorar a minha qualidade de vida." Esse autoconhecimento tem sido importante.
Hadassa tem dificuldades em tarefas do dia a dia, porque pensa em todas as etapas para executá-las. Falta impulso e disposição mesmo para aquelas mais simples, como escovar os dentes.
As pessoas que não são autistas não pensam que você tem que pegar a escova, colocar a pasta, depois escovar os dentes e enxaguar a boca. Torna-se uma atividade cansativa para mim, porque penso em todas as etapas como tarefas. Hadassa Bernardo
Na terapia, ela viu que a motivaria fazer algo prazeroso nesses momentos —como ouvir podcasts ao escovar os dentes.
Outra estratégia é contra a falta de ânimo antes de sair de casa. "Eu penso que preciso me arrumar, tomar banho, me vestir. Fazer isso é difícil, porque tem muito passos. Só de tomar banho eu me canso", explica. "Com a psicóloga, entendi que posso me arrumar mais cedo para ter tempo de descansar antes de ir ao evento."
Ela compartilha essas descobertas nas redes sociais. Em um dos vídeos, disponível abaixo, Hadassa conta como foi ir sozinha à Festa de São João, em Campina Grande (PB), a sua cidade, e o que fez para se sentir bem.
Autistas têm grande dificuldade de fazer algo pela primeira vez, já que eles gostam de previsibilidade e de rotina. Eu fico muito nervosa de fazer algo pela primeira vez, porque dá para prever pouca coisa. Mas estou tentando lidar com esse nervoso me expondo. Hadassa Bernardo, em vídeo publicado nas redes sociais
'Espero que caminhos se abram com a minha melhora'
Mesmo avançando no tratamento do autismo, Hadassa ainda convivia com o desânimo da depressão. Na fase mais aguda, ela conta não ter disposição para nada, inclusive fazer terapia.
A tristeza estava sempre presente. Hadassa Bernardo
"Tudo era muito difícil. Comer era difícil, porque não sentia fome. Dormir era difícil, porque tinha muita insônia. Encontrar os amigos, receber visitas. Você até quer, sabe que seria bom ver alguém, mas não tem força. Até mesmo para fazer o que é recomendando para melhorar, como terapia e atividade física", comenta.
Sem sucesso com os antidepressivos comuns, o seu psiquiatra lhe recomendou um remédio considerado inovador: um spray nasal exclusivo para a depressão resistente chamado Spravato.
O ativo do remédio é o cloridrato de escetamina, derivado da cetamina (muito usada para sedação e controle da dor). A substância atua no papel do glutamato do cérebro, melhorando a comunicação entre os neurônios.
Até pouco tempo, o glutamato era um neurotransmissor pouco investigado. Mas hoje sabemos que, com o seu aumento, percebe-se a restauração de vários danos causados pela depressão, como restabelecer as ligações sinápticas comprometidas. Sayra Catalina, psiquiatra do Hospital São Lucas da PUCRS
Cada spray custa mais de R$ 2.000, e o preço é uma barreira. Em reportagem publicada no VivaBem em novembro, uma mulher disse que um mês de tratamento sairia por mais de R$ 20 mil. O caminho é tentar a liberação via planos de saúde ou judicializar o pedido, já que o remédio ainda não está disponível no SUS (Sistema Único de Saúde).
A mãe de Hadassa entrou na Justiça em novembro de 2022, já que a jovem não tem plano de saúde. A decisão favorável veio logo, 13 dias depois, mas o remédio só chegou em agosto deste ano. "Eu na maior expectativa, estando mal, precisando da medicação e sem ter acesso."
O uso do Spravato é feito em clínicas ou hospitais, para monitorar os sinais vitais e intervir rápido em emergências. O protocolo começa com duas aplicações semanais, segue para uma até serem feitas a cada 15 dias, fase atual de Hadassa. Ela termina o tratamento em janeiro, e aí os médicos avaliarão a necessidade ou não de mais medicação.
A escetamina entra para te dar fôlego de começar o que você sabe que vai ser bom contra a depressão, mas não tem ânimo de fazer. Hadassa Bernardo
Em outubro, ela notou algo que não sentia há anos: ânimo. "Percebi que fazia uns dias que eu não estava triste e tinha um pouco de ânimo. Não estava mais tão difícil manter a rotina." Tem sido assim desde então. Ela segue firme nos cuidados, com terapia, exercício físico, sono de qualidade e comendo bem.
Hadassa chegou a cursar jornalismo, mas não terminou. Conta que a depressão sempre a impediu de executar o presente e planejar o futuro. Também nunca trabalhou, pela dificuldade de manter uma rotina. Agora, pela primeira vez, vive a expectativa de traçar planos e confiar em cumpri-los. "Após o fim do tratamento, espero não precisar de medicações que sou refém há mais de 10 anos."
Quero também conseguir estudar, trabalhar, me sentir mais bem do que mal e sem aquela tristeza constante. Hadassa Bernardo
"Com a saúde, a gente consegue correr atrás de outras coisas e ter momentos de lazer. Eu espero que caminhos se abram com a minha melhora", diz Hadassa.
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