'Mesmo sem correr, ensinei meus filhos a andar de bicicleta e jogar bola'
Do sonho de se tornar jogador de futebol profissional para uma cadeira de rodas. Edison José Ferreira, 62, sofre com uma doença genética rara e degenerativa que atinge os músculos e o impossibilita de fazer atividades do dia a dia, como tomar banho sozinho. Apesar das limitações, ele decidiu ser protagonista da própria história, começou a fazer faculdade aos 47 anos e abraçou a causa das pessoas com deficiência e dos idosos. Leia o depoimento dele:
"Aos 23 anos, comecei a notar uma fraqueza nas pernas enquanto jogava bola. Na época, sonhava em ser jogador de futebol e atuava na segunda divisão de times em Minas Gerais. A pedido do treinador fiz alguns exames e testes físicos e foi detectado um problema motor.
O médico explicou que a condição causa atrofia e fraqueza muscular progressiva com degeneração das fibras musculares, o que me impediria de ser um atleta profissional e me tornaria uma pessoa com deficiência física no futuro. Meu mundo caiu, parei de jogar e fui trabalhar como técnico em eletrônica.
Com o passar dos anos, outros sintomas se manifestaram, como a piora da fraqueza nos membros inferiores e superiores, dificuldade para sentar e levantar de cadeiras de altura padrão ou muito baixas, dificuldade para subir e descer escadas, perda de reflexo e falta de equilíbrio.
Se eu esbarrasse numa porta ou tomasse um empurrão, por exemplo, já me desequilibrava e caía. Sofri diversas quedas, uma das mais graves foi quando fraturei o joelho em três partes. Aos 40 anos, passei a usar bengala por prevenção e para ter mais segurança. Aos 55, me tornei cadeirante.
Durante anos, fiz fisioterapia para retardar o desgaste muscular e passei em diversos especialistas em vários hospitais na tentativa de identificar o que tinha.
Em um desses acompanhamento no setor de doenças neuromusculares da Unifesp, os médicos avaliaram que pelo meu biotipo muscular, o jeito de andar jogando as pernas e os quadris e a dificuldade em levantar do chão sem o auxílio das mãos e dos braços, poderia ter uma distrofia muscular do tipo Becker, uma doença degenerativa musculoesquelética.
Mesmo sem correr, ensinei meus filhos a andar de bicicleta
Em meio a esse processo, fui me reconhecendo como uma pessoa com deficiência, aprendendo a conviver e a me adaptar com o declínio muscular e as limitações na mobilidade.
Um dos desafios foi me reinventar nas atividades e brincadeiras com os meus dois filhos, a Tamires e o Fernando, quando eles eram crianças. Mesmo sem conseguir correr, ensinei-os a andar de bicicleta com a prática da marcha atlética. Jogava futebol com o Fernando sentado no gol, no chão. Eu era o goleiro e ele o atacante.
Uma outra mudança necessária foi adaptar os móveis da minha casa, tive que mandar fazer mesas, cadeiras, cama, vaso sanitário com uma altura maior do que a padrão. Minha mesa, por exemplo, tem 1,10 m de altura e a cadeira, 65 cm, o que me permite levar comida e bebida até a boca.
Aos 47 anos, um mapeamento genético confirmou o diagnóstico de distrofia muscular de Becker. Ao entender melhor a condição, descobri que meu avô materno sofria com muitas quedas, o pessoal no interior dizia que ele não conseguia subir no cavalo e o chamava de manhoso —ele provavelmente tinha a doença.
Me tornei um ponto de referência sobre a doença entre os meus familiares —em 2014, um primo descobriu a doença e faleceu aos 54 anos.
'Devemos tirar tudo de bom das coisas ruins'
Sempre tive o apoio da minha família, especialmente da minha esposa, a Maria do Carmo, com quem estou há 36 anos. Ela é a 'minha loteria', é quem cuida de mim e me dá toda assistência de que preciso. Mas a realidade fora de casa é outra.
Após sofrer preconceito, discriminação e não conseguir emprego na minha área devido às limitações físicas da doença, me tornei um ativista em temas relacionados às pessoas com deficiência e idosos, sempre buscando conhecimento sobre direitos, deveres, acessibilidade, inclusão social e tecnologia assistiva.
Aos 47 anos, ingressei na faculdade, posteriormente consegui uma bolsa uma bolsa de pesquisador do CNPq pelo Instituto de Tecnologia Social, na área de tecnologia assistiva, fiz pós-graduação e concluí o mestrado aos 58 anos.
O fato de conviver com uma doença rara, degenerativa, sem tratamento eficiente e sem cura nunca me impediu de buscar meu lugar na sociedade e de ter uma vida plena com desafios e realizações.
Devemos tirar tudo de bom das coisas ruins e ser protagonistas da nossa história, aceitando e respeitando nossas necessidades e limitações."
Saiba mais sobre a distrofia muscular de Becker
O que é. Uma doença genética e degenerativa musculoesquelética, que causa fraqueza muscular progressiva e atrofia dos músculos (principalmente os músculos de coxas e braços).
A incidência da distrofia muscular de Becker varia de 1 a 18 mil a 1 a 31 mil nascidos vivos do sexo masculino. É considerada uma doença rara.
Por que acontece? Devido a uma mutação em um gene chamado DMD que afeta a função de uma proteína muscular denominada distrofina.
A doença é ligada ao cromossomo X, ou seja, afeta principalmente meninos. A mãe tem a alteração genética, e embora na maioria dos casos seja assintomática, há um risco de 50% de transmissão para os filhos do sexo masculino.
Sintomas. Os primeiros costumam aparecer perto dos 10 anos, mas podem se manifestar mais tardiamente.
Os pacientes possuem uma lenta e variável evolução da fraqueza muscular até a perda da marcha e dependência da cadeira de rodas. Antes disso, apresentam dificuldade para subir e descer escadas, para se levantar da cadeira e pseudo-hipertrofia das panturrilhas (substituição do músculo por tecido gorduroso).
Diagnóstico. É realizado com base nas manifestações clínicas, tais como fraqueza muscular, pseudo-hipertrofia das panturrilhas e elevação das enzimas musculares no sangue (CPK ou creatinoquinase) —que podem chegar a 50 ou 100 vezes a mais do que o normal.
Vale ressaltar que o diagnóstico definitivo é realizado através de biópsia muscular e com o teste genético que detecta a mutação no gene DMD, responsável pela doença. O músculo cardíaco também pode ser afetado, sendo assim é recomendada uma avaliação cardiológica regular.
Tratamento. A doença não tem cura e o tratamento não interrompe a progressão da doença, mas pode ajudar na qualidade de vida do paciente. Nesses casos, é indicada a reabilitação neurológica com fisioterapia, terapia ocupacional e cuidados multiprofissionais. A fisioterapia motora é essencial para a manutenção da atividade muscular.
Embora haja novas perspectivas e evidências de eficácia de terapia genética para as doenças neuromusculares, como a distrofia muscular de Duchenne, ainda não há terapia específica para a distrofia muscular de Becker.
A expectativa de vida para pacientes com a doença é variável e depende de cuidados multiprofissionais e do envolvimento cardíaco e respiratório.
Fonte: José Luiz Pedroso, professor livre docente do Departamento de Neurologia da Unifesp.
*Este leitor de VivaBem mandou a sua história para o email da redação, aí nós entramos em contato com ele e o entrevistamos para escrever esta reportagem. Se você também tem uma boa história para nos contar, envie para vivabemuol@uol.com.br.
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