'Cuido da minha mãe e da minha filha': os desafios da 'geração sanduíche'

A convivência entre várias gerações permite uma troca de experiências única, mas isso, muitas vezes, pode significar uma sobrecarga para a geração que ocupa a posição de centralidade entre elas. Esses adultos de meia-idade comprimidos ao mesmo tempo por demandas de filhos e de pais idosos —e às vezes netos— são chamados de "geração sanduíche".

Dados do PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) de 2019 mostram que o número de familiares que se dedicavam a cuidados de indivíduos de 60 anos ou mais saltou de 3,7 milhões em 2016 para 5,1 milhões em 2019. Segundo o estudo, monitorar ou fazer companhia dentro do domicílio foi a principal atividade requerida pelos idosos, respondendo por 83% dos casos.

As mulheres costumam ser as mais demandadas para esse papel. Maria da Conceição Lafayette, professora do departamento de sociologia da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), cita três aspectos significativos responsáveis pelo fenômeno:

  1. O aumento da longevidade devido à melhoria das condições de desenvolvimento social e tecnológico.
  2. Diminuição da fecundidade, implicando na redução do número de filhos, gerando uma sobrecarga no cuidado com a geração mais velha.
  3. Continuidade dos papeis tradicionais femininos, que não se transformaram de forma significativa, apesar da entrada das mulheres no mercado de trabalho. Ou seja, continua-se com a expectativa de que seja a mulher a cuidadora da família na esfera doméstica.

"A mudança do papel feminino enquanto responsável pelo mundo da casa não acompanhou o novo papel da mulher definido com a sua participação no mercado de trabalho. Este ainda é um processo em construção, mas que tem impacto na esfera da afetividade, fazendo com que as mulheres ainda se sintam responsáveis pelas esferas afetivas atribuídas à família", complementa a socióloga.

Uma pesquisa do PNAD de 2022 indica que as mulheres dedicaram 9,6 horas por semana a mais do que os homens aos afazeres domésticos ou ao cuidado de pessoas.

Angeline Silva Vieira, 43, de Amargosa, interior da Bahia, entende bem o que é se sentir "ensanduichada". Divorciada, ela precisa cuidar sozinha da filha de 4 anos e também da mãe, de 69 anos, que tem demência com sintomas psiquiátricos como alucinações e delírios.

Angeline Silva Vieira com a filha
Angeline Silva Vieira com a filha Imagem: Arquivo pessoal

"Minha mãe está comigo há dois anos e logo que ela chegou em casa passei quase um ano sem dormir, pois ela tinha surtos que varavam a madrugada. Na época, achávamos que era apenas um problema psiquiátrico. Só após levá-la ao neurologista é que descobrimos que era um processo demencial", relata.

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Angeline conta que está esgotada física e mentalmente, e muitas vezes se sente desmotivada. "Praticamente não tenho nenhum momento de lazer. Minha filha não fica com ninguém, exceto comigo, e isso dificulta muito. Só me distraio quando vou à Salvador rever parentes. Não chega a ser momento de lazer, já que cuido de uma criança e de uma idosa de forma exclusiva, sem rede de apoio", desabafa.

'Geração sanduíche' deve ser cada vez maior

Um estudo sobre o assunto realizado pelas pesquisadoras Jordana Cristina de Jesus e Simone Wajnman, da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), reforça a observação feita por Lafayette e revela que os grupos mais sujeitas ao fenômeno são de mulheres entre 40 e 49 anos.

A análise traz um recorte com base nos dados do PNAD de 2008 e revelou que 10% das mulheres dessa faixa etária viviam essa situação. Mas com o envelhecimento da população, a tendência é que esse cenário seja cada vez mais comum. De acordo com os dados do Censo Demográfico de 2022, apresentado pelo IBGE, o número de pessoas com 65 anos ou mais cresceu 57,4% em 12 anos, passando de 14 milhões para mais de 22 milhões, correspondendo a quase 11% da população.

É a partir dessa idade que costuma surgir doenças neurodegenerativas como Parkinson, Alzheimer e outros casos de demência ou maior prevalência de doenças cardíacas e outras enfermidades limitantes que exigem suporte dos familiares.

Ao mesmo tempo, as pessoas "ensanduichadas" precisam lidar com filhos que ainda dependem em certa medida deles, seja um apoio financeiro ou psicológico completo ou parcial. A pesquisa da UFMG mostra que uma parcela significativa dos jovens tem demorado mais para obter sua independência financeira, adiando a saída da casa dos pais.

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Charleide Piedade, 59, de Salvador, ajuda três gerações simultâneas: mãe, filhos e neto. A mãe, de 83 anos, mora sozinha, mas precisa de cuidados constantes. Apesar de ter dois outros irmãos, Charleide é a mais demandada quando se trata da mãe.

Charleide Piedade com o neto
Charleide Piedade com o neto Imagem: Arquivo pessoal

"Tem semana que preciso levá-la três vezes a consultas e exames. Além disso, costumo dormir quatro dias por semana com ela para dar um suporte mais de perto", conta. Em junho de 2023, a mãe dela foi diagnosticada com câncer de mama, fez a cirurgia e a partir de janeiro de 2024 vai começar a radioterapia, aumentando a necessidade de mais atenção.

Aposentada e viúva, Charleide ainda trabalha de forma autônoma no segmento de empréstimo consignado para complementar a renda. Ela mora com um dos filhos, de 32 anos. "Ele está para casar agora em 2024, mas ainda lavo, passo e faço a comida para ele levar todos os dias para o trabalho. Sou uma mãe muito presente e preocupada", ressalta.

Já a filha se mudou há pouco tempo para o Rio de Janeiro e, com um bebê de 1 ano e meio e voltando ao mercado de trabalho, tem contado com o suporte da mãe em alguns períodos do ano. "Logo que ela se mudou, passei quatro meses no Rio para ajudar com meu neto. Só em 2023 fui quatro vezes para lá", conta Charleide.

'Ensanduichados' precisam cuidar do emocional

Yuri Busin, psicólogo, mestre e doutor em neurociência do comportamento pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, aponta que todo esse comprometimento gera uma autocobrança, não só para dar conta dos familiares que precisam de suporte, como também da própria vida, do lazer, da carreira e do autocuidado. "Isso pode trazer sentimentos de ansiedade, injustiça, raiva e até movimentos mais rebeldes por se achar injustiçado", diz.

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O psiquiatra Rafael Manrique, diretor técnico no Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira, de Campinas, e coordenador da residência médica no Instituto Bairral de Psiquiatria, acrescenta ainda que a pessoa "ensanduichada" se encontra em uma situação de sobrecarga de trabalho e responsabilidade sem folga ou espaço de descanso, e sem tempo para se dedicar a atividades que dão prazer ou que ajudem sua própria saúde mental.

"Pessoas nessa situação não costumam praticar exercícios físicos e dificilmente conseguem cuidar de sua alimentação de forma saudável, fatores esses que, quando submetidos de forma crônica, acabam por desenvolver possíveis transtornos mentais, a mencionar transtorno depressivo, pânico, burnout, entre outros", alerta Manrique.

Em busca de equilibrar tantas demandas, Charleide não abre mão de se cuidar. "Sempre faço acompanhamento com um cardiologista, além de atividade física, como musculação, exercícios funcionais e andar de bicicleta", conta.

Charleide, à esq., com a mãe, a filha e o neto
Charleide, à esq., com a mãe, a filha e o neto Imagem: Arquivo pessoal

Manrique aconselha que as pessoas "ensanduichadas" procurem outros membros da família, quando possível, para dividir a tarefa, dando tempo para que o cuidador também consiga cuidar de si, seja na prática de atividades que promovam a saúde mental ou descanso adequado.

"O fator de risco aqui para transtorno depressivo mora na sobrecarga de trabalho. Logo, é ela que deve ser endereçada. No surgimento de sintomas como choro fácil, tristeza constante, falta de iniciativa para cuidar de si próprio, entre outros, faz-se necessária uma avaliação médica, de preferência especializada, de modo a tratar precocemente a depressão, caso diagnosticada", diz o psiquiatra.

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Ele ainda complementa que apoio com psicoterapia também se mostra essencial para se entender as questões individuais mais profundas e aliviar a sobrecarga psicológica.

Fatores socioeconômicos podem pressionar ainda mais a "geração sanduíche". Pessoas com poder aquisitivo menor possuem menos recursos tanto para obter ajuda profissional para cuidar dos mais idosos como contratar cuidadores, por exemplo, assim como acesso a serviços de qualidade, como creches e escolas.

"A mulher que se encontra nessa situação é, por muitas vezes, a provedora de dinheiro para o lar, desempenhando assim uma tripla jornada de trabalho ao mesmo tempo, cuidando de duas gerações e da saúde financeira da família", diz Manrique.

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