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Ela esperou 13 anos para fazer cirurgia de redesignação sexual pelo SUS

Yohana chegou a se inscrever três vezes no BBB para tentar ganhar algum dinheiro ou o prêmio do reality para pagar sua cirurgia de redesignação sexual Imagem: Arquivo pessoal

Bárbara Therrie

Colaboração para VivaBem

28/01/2024 04h05

Com o sonho de ter um corpo e um órgão genital que representassem a mulher que sempre foi, Yohana de Santana demorou 13 anos para fazer a cirurgia de redesignação sexual, tornando-se a primeira mulher trans a realizar o procedimento na Bahia pelo SUS.

Hoje feliz e realizada aos 48 anos, a professora de dança percorreu um longo caminho: brincou com as bonecas descartadas pelas vizinhas na infância, engravidou uma amiga de infância com quem teve uma filha e até se inscreveu no BBB para tentar ganhar o prêmio e fazer a cirurgia. A seguir, ela compartilha sua trajetória:

"Desde criança sempre me encantei pelo universo feminino. Brincava de casinha, de mamãe e de desfile quando ia na casa das minhas amigas. Sempre que elas descartavam alguma boneca, pegava pra mim, fazia roupinhas, penteados e brincava escondida na minha casa. Era o meu refúgio. Me via e me sentia como uma menina, mas não entendia por que a minha genitália era de menino.

Não tinha com quem conversar, desabafar, perguntar, não havia abertura para esse tipo de assunto. Meus pais eram muito rígidos, meu pai era ignorante, morria de medo de apanhar e sofrer algum tipo de opressão.

Durante minha adolescência, fui crescendo com esse medo e vivia um conflito interno sem saber a minha identidade. Não me identificava como gay e travesti e não sabia o que era uma pessoa transgênero, não se falava sobre isso na minha época.

Aos 16 anos, minha mãe me levou ao médico e pela primeira vez falei para alguém sobre como não gostava do meu pênis, como me incomodava, me constrangia, sentia vergonha. Fiz alguns exames e o médico prescreveu um tratamento com testosterona para eu desenvolver características masculinas, criar gogó, engrossar a voz, os pelos crescerem.

'Passei a me cobrar para ser o pai que a sociedade esperava'

Na adolescência, meu interesse por meninos aumentou, queria ter um namorado, mas não podia expressar meu desejo publicamente. Sofria pressão e cobrança da minha família para arranjar uma namorada, minha mãe dizia que tinha uma amiga de infância que gostava muito de mim. Entendi que se fosse por esse caminho, eles me deixariam viver em paz no meu mundo.

Aos 17 anos, tive minha primeira relação sexual com essa amiga, passamos a nos envolver e um tempo depois ela engravidou. Quando minha filha nasceu, cuidava dela com todo o meu amor, dava banho, trocava fralda, acordava de madrugada, brincava, a única coisa que não fazia era amamentá-la.

O nascimento dela me realizou como mãe, mas tive que abrir mão de ser quem eu era. Passei a me cobrar para me tornar o homem e o pai que a sociedade e as famílias tradicionais esperavam.

Imagem: Arquivo pessoal

Isso me martirizava, sofria muito. Fiquei oito anos com essa pessoa, fazia sexo por obrigação, era algo mecânico para mim. Sentia prazer ao me masturbar vendo vídeos de homens. Até tentei me separar algumas vezes, mas não queria ficar longe da minha filha.

Chegou um momento em que não suportei mais me esconder, me reprimir e decidi viver como a mulher que sempre fui. A primeira pessoa com quem conversei foi a minha filha, tinha medo que ela me rejeitasse, mas ela me apoiou e começou a me chamar de mãe naturalmente sem eu pedir.

Algumas pessoas respeitaram a minha decisão, outras não. Meu pai, por exemplo, se recusava a me chamar pelo pronome feminino.

Em 2003, aos 28 anos iniciei a minha transição de gênero, passei a usar blusa, saia, vestido, deixei o cabelo crescer, coloquei megahair, fiz trança. Comecei a tomar hormônios femininos. Mudei meu nome e o sexo no RG.

Vi uma reportagem na TV falando sobre um ambulatório que oferecia atendimento a pessoas transgêneros e que para ter acesso à cirurgia de redesignação sexual era necessário fazer um acompanhamento com endocrinologista, psiquiatra, psicólogo, entre outros profissionais.

'Me inscrevi em três edições do BBB para tentar ganhar o prêmio'

Em 2010, comecei a minha luta para conseguir a cirurgia, até consegui o atendimento multidisciplinar nos serviços de saúde da UFBA, onde fiz faculdade de dança, o problema é que não existia nenhum ambulatório trans na Bahia naquela época.

Uma alternativa era tentar fazer o procedimento em outro estado pelo SUS ou de forma particular na Tailândia, mas não tinha condições financeiras.

Meu desespero foi tanto que cheguei a me inscrever em três edições do BBB para dar visibilidade à minha história e tentar ganhar qualquer valor ou o prêmio do reality e conseguir realizar o meu sonho.

Imagem: Arquivo pessoal

Mesmo com a transição, o pênis ainda era um problema para a minha autoestima e intimidade. Fazia a técnica da aquendação para esconder o volume e buscava me envolver com homens que me entendessem e me respeitassem como mulher independentemente da minha genitália.

Após 13 anos de espera, dificuldades e burocracia, fui a primeira mulher trans a fazer a cirurgia de redesignação sexual na Bahia pelo SUS no Hospital Universitário Professor Edgard Santos, da Universidade Federal da Bahia, no dia 9 de agosto de 2023.

O procedimento foi tranquilo, as únicas intercorrências do pós-operatório foram uma alergia ao curativo e um episódio de trombose na perna, mas no geral estou bem. Não tive nenhum problema de adaptação, a sensação é tão natural que é como se eu já tivesse nascido com vagina.

Digo que não fiz uma cirurgia de mudança de sexo, mas a correção de um órgão genital que representasse a mulher que sou. A cirurgia impactou diretamente na minha saúde física e mental. Me sinto muito feliz e realizada.

Já fui liberada para ter relações sexuais, mas ainda não estou preparada para isso. Esperei tanto tempo para realizar o meu sonho, que agora preciso encontrar a pessoa certa para que seja um momento especial."

Saiba mais sobre a redesignação sexual

A pedido de VivaBem, o urologista Ubirajara Barroso Jr., chefe da divisão de cirurgia urológica reconstrutora e urologia pediátrica do Hospital da UFBA (Universidade Federal da Bahia) tira 8 dúvidas sobre a redesignação sexual:

1. O que é a cirurgia de redesignação sexual?
Conhecida como cirurgia genital afirmativa de gênero, é um procedimento cirúrgico realizado no homem e na mulher trans a fim de tornar o órgão genital o mais parecido possível com o órgão típico do gênero identificado, ou seja, um falo masculino para o homem trans e uma neovagina para a mulher trans.

2. Quais os critérios para fazer a redesignação sexual?
A mulher ou homem trans precisa ter pelo menos 18 anos e vivência de pelo menos dois anos com o gênero identificado, incluindo o nome social. É necessário um acompanhamento multidisciplinar, incluindo a liberação da psicóloga/psiquiatra para a cirurgia.

Pelo SUS, há necessidade de acompanhamento psicológico ou psiquiátrico por pelo menos dois anos. Geralmente, quem chega à cirurgia já passou pela transição de gênero por meio de hormonização e cirurgias plásticas afirmativas.

3. Como é feita a redesignação sexual em homens trans?
Pode-se usar o tecido do próprio órgão sexual, procedimento conhecido como metoidioplastia. Ou confeccionamos um pênis por meio de retalhos do antebraço, pernas, abdome ou coxa, a chamada neofaloplastia.

O órgão genital feminino é muito parecido com o masculino, só que em miniatura, o clitóris assemelha-se à glande e há dois cilindros capazes de ereção, que são os corpos cavernosos. Na metoidioplastia, mobilizamos para fora os corpos cavernosos e fazemos um pênis, mantendo a capacidade de ereção e sensibilidade.

A vantagem é a preservação da ereção e a capacidade de urinar de pé, importante para muitos homens trans. A desvantagem é o tamanho que fica, na maioria das vezes, insuficiente para a penetração.

Na neofaloplastia, o tecido de outra parte do corpo é mobilizado à região do órgão genital e esculpido no formato de um pênis. A vantagem é o tamanho genital maior. A desvantagem é a sensibilidade menor que na metoidioplastia, e a necessidade de implante de prótese peniana inflável, já que não há tecido erétil com essa técnica.

4. Como é feita a redesignação sexual em mulheres trans?
A clitoroplastia é realizada por meio da redução da glande, preservando-se a sua inervação e vascularização e, consequentemente, mantendo a sensibilidade. A uretra deve ser reduzida e implantada no períneo na mesma posição das mulheres cisgênero (que se identificam com o gênero de nascimento).

A neovagina normalmente é realizada utilizando a pele do pênis que formará o canal vaginal. No entanto, quando esse canal falha, tecido intestinal pode ser utilizado.

5. Quanto tempo após a redesignação sexual a pessoa está liberada para ter relações sexuais e quais os cuidados?
Geralmente, o paciente está liberado para sexo com penetração dois meses após a cirurgia. Entre os cuidados para as mulheres trans, é necessária dilatação vaginal diária, de pelo menos 30 minutos, provavelmente por toda a vida, se não houver atividade sexual com penetração frequente.

6. É possível ter ereção e atingir orgasmos após a redesignação sexual?
No homem trans, a ereção é somente obtida a quem se submeteu a metoidioplastia. Na neofaloplastia, é necessária uma prótese para penetração. O orgasmo é possível tanto no homem como na mulher trans em 60% a 70% dos casos.

7. Por que a redesignação sexual é irreversível?
Porque na mulher trans os corpos cavernosos (tecidos eréteis) são amputados para a confecção da neovagiva. No homem trans, se a vagina for retirada (vaginectomia), também se torna um procedimento irreversível.

8. A redesignação sexual pode ser feita pelo SUS e pelo plano de saúde?
De acordo com o Ministério da Saúde, cinco hospitais do SUS estão habilitados para realizar cirurgias de redesignação sexual, e três unidades fazem acompanhamento em crianças e adolescentes de 3 a 17 anos.

Segundo a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), as filas de acesso para a redesignação sexual variam em mais de 10 anos.

Na rede privada, o procedimento não é barato, o que dificulta o acesso e faz com que pessoas busquem vias alternativas, em locais não confiáveis, incrementando a taxa de complicações. Por conta disso, muitas mulheres trans amputam o próprio genital, numa atitude desesperada de se assemelhar ao gênero identificado.

É preciso um olhar empático e acolhedor para as pessoas trans e saber da necessidade premente de realizar a cirurgia genital afirmativa.

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