'Nadei por 24 horas, fui atacada por caravelas, mas concluí etapa de 62 km'
Alessandra Penariol Melo, 49, é filha de pai nadador profissional e sempre teve uma relação de amor com a água. "Aprendi a nadar antes de andar." Mas foi só quando se mudou para Salvador, em 2003, que descobriu sua paixão por braçadas no mar.
Em janeiro de 2024, ela fez um percurso de 62 quilômetros a nado, por quase 24 horas, indo do Porto da Barra até o Morro de São Paulo. Com 10 horas de prova, Alessandra passou por um cardume de caravelas, se queimou, teve uma reação alérgica grave e, mesmo com muita dor, terminou o percurso. A VivaBem, ela conta sua história:
"Sou atleta amadora, engenheira química e mãe de dois filhos: Pedro Henrique, 19, e João Vitor, 17. Sempre fiz natação, mas foi só quando me mudei para Salvador, há 20 anos, que comecei a nadar no mar.
Foi meu técnico Rodrigo Nova que me apresentou o nado no mar. A primeira vez que fiz uma prova da FBDA (Federação Baiana de Desportos Aquáticos) foi em 2003. Nadei o percurso Bonfim/Ribeira/Bonfim, em uma época em que a região não estava revitalizada como é hoje. Tinha até ratos na minha largada.
O tempo estava horrível, mas quando entrei no mar e vi a cúpula dourada da Basílica do Senhor do Bonfim brilhando, me arrepiei. Saí do mar dizendo que tinha amado aquela prova e que nunca mais voltaria a nadar apenas na piscina.
Na época, meu objetivo era nadar as provas do circuito da FBDA de maratonas aquáticas, que tinham de cerca de 4 km a 5 km de distância, para conseguir me classificar para a travessia Mar Grande/Salvador, de 12 km.
Nadei esse percurso pela primeira vez em dezembro de 2019. O dia estava lindo, céu azul, sem vento. Terminei em duas horas e meia. No dia seguinte, uns amigos nadadores fariam o mesmo percurso de maneira amadora e me chamaram. O dia estava péssimo: tinha chuva, ventos, o mar estava agitado. De 30 nadadores, só eu e mais uns colegas concluímos o trecho. Desta vez, demorei quatro horas e meia para chegar ao final.
Viver o mesmo trecho em condições completamente diferentes despertou em mim uma vontade de me tornar uma ultramaratonista de águas abertas, o que significa nadar trechos maiores de 15 km —seja para desafios pessoais ou em provas competitivas.
Em Salvador, existe uma associação que homologa nados de ultramaratonas chamada Boassa (Bay of All Saints Swimming Association) e existiam cerca de 10 trechos delimitados em que eu poderia nadar. Entre todos, amei o dos faróis, que sairia do Farol de Itapuã, passaria pelo Farol da Barra e ia terminar no Farol de Humaitá. O percurso tem 36 km.
Falei para o meu técnico e ele me disse que precisaria de tempo para me preparar, e outros recursos físicos para deixar meu corpo em forma. Passei a fazer fisioterapia, acompanhamento com um médico especialista em hidratação em água salgada e montei uma estrutura para que conseguisse tornar esse sonho realidade.
Em novembro de 2021, nadei essa prova. Larguei às 4h da manhã e terminei às 14h. Cheguei ótima no final. Percebi que eu poderia dobrar minha distância.
Nadar por 24 horas?
Decidi nadar o percurso do Porto da Barra até o Morro de São Paulo, que tem uma distância que varia de 62 a 85 km, dependendo da rota. A previsão, segundo meu ritmo de nado, era que eu conseguisse concluir em 24 horas.
Passei a treinar à noite no mar, nunca tinha nadado no escuro. Fiz um treino de 24 horas na piscina também, em que nadei 56 km.
Escolhemos o dia 18 de janeiro de 2024 para a realização da prova por conta da maré e da lua, que estariam no nível médio. Minha largada foi às 9 da manhã, mas cheguei às 5 da manhã na praia para me preparar e concentrar. Fiz reiki, cromoterapia, meditei...
Há um ano, comecei a fazer fortalecimento mental. Conseguia bloquear minha mente e parar de sentir dor, por exemplo, o que é muito importante nesses longos percursos.
A areia estava cheia: tinha equipe de TV, mais de 100 pessoas para me ver largar, minha família e minha equipe. Fizemos uma grande roda de oração e às 9 horas comecei a nadar. Os aplausos e os gritos me deram muita força.
Na água fico em paz. O vento estava na direção certa, meu ritmo estava ótimo, estava conseguindo nadar em linha reta, porque meus marinheiros foram ótimos guias. Minha família foi de catamarã até perto de onde eu estava. Eles pararam o barco, aplaudiram. Tudo isso foi me dando força.
Para a prova ter validade, não podia encostar no barco e ninguém podia encostar em mim. A minha hidratação acontecia a cada 30 minutos. Minha equipe apitava e colocava na ponta de uma vara 125 ml de suplementos, que variava de carboidrato, combinação para dar energia, fortalecer os músculos e articulações, e água, que eu tomava, no mínimo, 250 ml. Toda essa movimentação levava cerca de, no máximo, dois minutos.
Problemas no mar
Estava tudo bem até o anoitecer. O pôr do sol foi lindo e tinha comigo uma equipe de 20 pessoas: 13 no barco guia e sete na lancha rápida. Tinham marinheiros, meus técnicos, o juiz da federação, socorrista, fotógrafa.
Sem luz, teríamos um caiaque que ficaria 10 metros na minha frente abrindo o caminho, para tirar as sujeiras que poderia encontrar e me machucar. Mas o mar estava agitado e não conseguimos fazer o caiaque ter estabilidade. Segui sem ele.
Às 19h eu já tinha completado 35 km de prova. O pessoal no barco brincava que eu ia chegar muito cedo na praia, que estava muito rápida, que não teria ninguém lá para ver.
Mas aí aconteceu um acidente: fui queimada por caravelas. Devo ter nadado uns 5 minutos em meio a um cardume. Comecei a gritar, disse que estava queimando. Tive uma reação alérgica tão forte que todo meu corpo começou a formigar. Sentia dor do fio de cabelo ao dedão do pé.
Me sentia dentro de uma fogueira, mesmo na água. O veneno ataca as extremidades: pés, mãos —meus instrumentos de trabalho— e a cabeça. Passei uma hora e meia vomitando muito. Todo meu suplemento estava indo para a água.
Mesmo em meio a todas essas adversidades, não pensei em desistir. Tinha assinado um documento e se o juiz achasse que eu não tinha mais condições de continuar, teria que sair da água. Ele conversou comigo, disse que estava com dor, mas que queria seguir. Ele pediu para que eu fosse devagar.
Inchei, fiquei desfigurada. Me apoiei na minha fé para conseguir nadar as quase 10 horas que ainda tinha pela frente. A prova mudou completamente. Meus tempos de hidratação passaram a ser de 10 a 15 minutos. Eu precisava boiar e ingerir o suplemento aos poucos para não vomitar. Queimada dá pra nadar, desidratada, não.
Às 3 da manhã, mesmo toda lascada, cheguei à marca de 50 km. Precisei de 5h20 para completar os últimos 12 km por causa da dor. Quando faltavam 5 quilômetros, meu técnico trouxe meus filhos para o mar. O meu mais velho, Pedro Henrique, com autorização do juiz, ficou dentro do barco guia gritando comigo e dando forças. Uma hora ele até disse: 'Bora, mãe. Foi mais difícil me criar' [risos].
A regra diz que, para a prova valer, eu tenho que sair do mar sozinha, ficar em pé, virar para o barco e levantar os braços. Eu avisei ao juiz que não conseguiria, porque meus pés estavam doendo muito. Ele entendeu e eu saí do mar engatinhando.
Chorei muito quando cheguei. Agradeci e meus filhos me levaram no colo para a pousada. Eles me deram banho, me colocaram na cama, onde fui medicada. Só consegui voltar a andar no sábado à noite —a prova começou na quinta-feira de manhã.
Ainda estou me recuperando. Meu trato respiratório ainda está todo queimado. Estou usando pastilha anestésica para falar, porque ainda dói muito.
Concluir a prova foi maravilhoso. Nunca imaginei que teria tanta repercussão, foi emocionante. Agora estou buscando patrocínio para o meu próximo desafio: nadar os sete oceanos, em provas que variam de 14 a 42 km, mas que são muito difíceis.
Tudo isso porque, um dia, quero ter histórias incríveis para contar aos meus netos."
Não se engane: esforço do tipo é coisa de atleta
O primeiro grande impacto que a história da Alessandra causa é o fato de ela ter nadado por 24 horas seguidas. Como o corpo aguenta? "É tudo baseado na intensidade. Provavelmente, ela treinou um ritmo que causava menos desequilíbrio em seu corpo, por isso conseguia se manter nadando por tanto tempo", diz Guilherme Dilda, médico do esporte.
Segundo ele, a equipe de apoio e a nutrição adequada foram fundamentais para que Alessandra concluísse a prova com sucesso.
O objetivo principal com os alimentos é não sobrecarregar o corpo, fornecendo principalmente carboidratos de absorção rápida, para que o corpo não perca tempo com a digestão.
E, claro, há riscos. "A privação de sono é um deles, mas como estamos falando de uma atleta, ela deve ter feito o descanso adequado antes. Há também a questão da cinetose, que é a náusea causada pelo movimento, já que o mar tem um ritmo diferente do corpo", explica Dilda. Ele também destaca que o contato da boca e da língua com a água salgada, por longos períodos de tempo, pode causar lesões.
"Se há uma avaliação médica adequada, a pessoa tem risco cardiológico baixo e treinou para isso, o ser humano consegue, sim, fazer esforço em situações extremas como essa", completa o médico.
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